Don Quixote de La Mancha, Livro III, cap. XXI
Luca Vitali, o excelente artista plástico, mora hoje no Guarujá. Sempre que vem a São Paulo visita sua cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. O prazer de estarmos juntos para uma conversa descontraída em um dos cafés do bairro torna-se uma constante.
A certa altura me pergunta o porquê dos ditos populares açorianos frequentarem meus blogs em forma de epígrafe. Não é a primeira vez que fazem tal observação.
Se considerarmos a arte e todas as suas categorias ou a literatura como perenidades, o povo, essência essencial, tem sempre de ser lembrado. Ao longo dos séculos, é a manifestação popular que subsiste e transpõe gerações. Geralmente sofrido, tendo de gerar a riqueza dos países, essa massa anônima, tanto no campo como nas cidades, recebe todas as agruras da natureza e pior, o tacão do Estado através de impostos abusivos, mormente a ele destinados e, tantas vezes, a exploração dos poderosos. Porém, a tradição tem de continuar e assiste-se anualmente em todo o planeta à perenização das festas populares, das venerações às figuras sacras, da descontração e do recolhimento interior coletivo em datas especiais. Permanece na história das histórias das civilizações esse pulsar, que é ainda uma das salvaguardas da humanidade.
Em posts anteriores já mencionara o impacto que a tournée que realizei em 1992 por três ilhas do arquipélago dos Açores me proporcionou. No meu imaginário, o Arquipélago está como um dos paraísos possíveis, tão grande foi a minha empatia com as terras percorridas e com aquele povo singular. E de pensar que aquelas ilhas estão numa primeira terça parte, se considerada for a distância Lisboa-Nova York. Sob outro aspecto, fica em região por onde passa uma fenda que se estende do Círculo Polar Ártico à Antártida. Abalos sísmicos por lá são constantes, assim como ondas, por vezes, gigantescas. Presenciei uma delas aproximar e defrontar-se com estrondo sobre uma falésia em Angra do Heroísmo.
O arquipélago dos Açores foi descoberto em 1427, quando os marinheiros portugueses já vislumbravam o além-mar por ordem precisa do Infante D. Henrique (1394-1460). Pertencentes a Portugal, as nove ilhas ocupam 2.300km2, sendo a maior São Miguel, com seus 747km2, e a menor, Corvo, com apenas 18km2. Os Açores foram povoados paulatinamente. A população do arquipélago não chega a 250.000 habitantes, mercê de imigrações acentuadas, mormente para os Estados Unidos. No Brasil, em séculos anteriores a imigração açoriana se fez presente, principalmente em Santa Catarina.
Daquelas terras visitadas para recitais e palestras trouxe quantidade apreciável da literatura açoriana, traduzida em romances, livros de arte e de história. Entre as obras acalentadas, o Adagiário Popular Açoriano (Armando Cortes-Rodrigues. Adagiário Popular Açoriano, Angra do Heroísmo, Antília – Secretaria Regional da Educação e Cultura, 2 volumes, 1982).
Há muitos termos que se apresentam como sinônimos parciais. Adágio, provérbio, ditado, dito popular, rifão e outros mais. Há, contudo, determinadas nuanças interpretativas. Como exemplo, provérbio tem carga a exprimir veracidade a ser considerada, enquanto o adágio contém, por vezes, um certo sentido imediato e jocoso. Como observa Francisco Carreiro da Costa, autor do prefácio do Adagiário Popular Açoriano, “os adágios são um prodigioso manancial para o estudo das tradições populares”. Os ditados populares, de origem anônima e constituídos de frases curtas, são atemporais, pois impossível precisar o nascimento de determinados rifões. Depositados durante anos, decênios ou séculos, os adágios podem sofrer alterações em um ou outro termo, mas restringem-se ao conteúdo essencial, a ser transmitido através da oralidade.
Apesar de profundo parentesco com o adagiário do continente, o popular açoriano é rico em peculiaridades, com distinções, por vezes tênues, entre ditos populares nas várias ilhas. Estudos aprofundados foram realizados ao longo das últimas décadas a respeito do adagiário açoriano, inclusive teses acadêmicas. Há debruçamentos pormenorizando-os em Portugal, nos Açores e no Brasil. O espaço a que me proponho semanalmente no blog impede-me de detalhar essa profícua literatura de estudos, que poderá ser acessada via internet.
Sempre que um tema do cotidiano penetra em seara mais descontraída ou a necessitar de qualquer conceituação, instintivamente lembro-me desse precioso Adagiário Popular Açoriano. Primeiramente pela riqueza e, a seguir, pela proximidade tão evidente entre os ditos populares dos Açores e os frequentes no Brasil. O autor da coleta, Armando Cortes Rodrigues, organizou-o alfabeticamente, o que proporciona o prazer de se apreender as diferenças ocorridas nessas frases nas ilhas espalhadas pelo Atlântico Norte, numa latitude idêntica à continental portuguesa. A metodologia empregada torna mais fácil a busca temática. Sob aspecto outro, o Adagiário reflete bem “a idiossincrasia, os costumes, as tradições e preconceitos morais dos Açorianos”, segundo Francisco Carreiro da Costa.
Faz-se necessária a exemplificação, a traduzir a atávica observação do povo açoriano naquilo que lhe é familiar. Insular, em terras sujeitas a constantes tremores, tem mais acuradamente o senso da percepção. Selecionamos alguns entre os milhares mencionados nos dois volumes.
Adágios advindos do captar meteorológico:
Abril chuvoso,
Maio ventoso
e Junho amoroso,
fazem um ano formoso. (Flores)
Baleia no canal,
terás temporal. (S. Jorge)
Dia de Maio,
dia de má ventura,
mal amanhece,
logo escurece. (Santa Maria)
Em Janeiro dá a capa ao marinheiro
e em Maio, tira-a. (Pico)
Em Maio,
a chuvinha da Ascensão
dá palhinhas e dá grão. (Terceira)
Em Outubro, Novembro e Dezembro,
quem come do mar,
tem que jejuar. (Pico)
Névoa pela manhã,
sereno hoje,
sereno amanhã. (S. Jorge)
Nuvens paradas, cor de cobre,
é temporal que se descobre. (Pico)
Trovão no Verão,
Água na mão. (Flores)
De ordem moral:
A boca que mente,
Mata a alma. (Pico)
Antes morte
Que vergonha. (Terceira)
Antes uma saia velha
De boa fazenda
Do que uma saia nova…
Nosso Senhor nos entenda. (Flores)
Chuva goteira,
mulher trameleira,
põem um homem na rua. (S.Miguel)
Do amor, que não convém,
nasce o mal e pouco bem. (S.Miguel)
Mais vale honra
do que riqueza. (Corvo)
Ninguém diga o que não sabe
nem afirme o que não viu. (Flores)
Quem perde a honra, por causa do negócio,
perde o negócio mais a honra (S.Jorge)
Viúva honrada,
Porta fechada. (S.Jorge)
Da mesa, do alimento e da bebida:
Antes um naco de pão com amor
do que galinha com dor. (S.Jorge)
Da tigela à boca
se perde a sopa. (Flores)
Disse o leite ao vinho:
- Venhas em boa hora, amigo. (S.Miguel)
Em cima de comer,
nem carta ler. (S.Miguel)
Em cima de melão,
de vinho um tostão. (Santa Maria)
Em Janeiro,
um porco ao sol,
outro no fumeiro. (S.Miguel)
Sabe da panela
quem mexe nela. (Flores)
De ordem do cotidiano jocoso:
Divertido ! Divertido !
deu a mulher no marido. (Pico)
Mula que faz him
e mulher que fala latim
raramente há boa fim *. (S.Miguel)
(* “Na linguagem popular micaelense fim é sempre feminino”)
Mulher barbuda,
de longe a saúda. (Faial)
De categorias várias:
Bem toucada,
não há mulher feia. (S.Miguel)
Dinheiro compra pão,
não compra gratidão. (S.Miguel)
Enquanto há dívidas,
não há herdeiros. (S.Miguel)
Mais vale muito saber do que muito ter. (Santa Maria)
Mulher de janela,
nem costura nem panela. (S.Miguel)
Não há oiro
sem fezes. (S.Jorge)
Quem menos sabe, mais finge saber. (Santa Maria)
Gostaria imenso de inserir tantos outros ricos adágios que se espalham em diversas categorias do viver. O espaço de um blog pressupõe determinados limites. Fica, contudo, nessa diminuta exemplificação, o pulsar do povo insular que permanece através dos séculos, nessa ladainha repetitiva e saborosa que está sempre a sofrer acréscimos. Diferentemente dos modismos das frases que têm vida breve e geralmente oriundas dos meios televisivos, o que realmente se pereniza é essa fala incisiva, ingênua, despretensiosa e, sobretudo, anônima. A única certeza, o adágio não morre.