Síntese da Existência em Cartas Especiais

“Moi aussi, ce matin, j’ai taillé mes rosiers.”
Et peu importe, d’un tel message,
s’il chemine ou non des années durant,
s’il parvient ou non à tel ou tel.
Là n’est point l’objet du message.
Pour rejoindre mes jardiniers

j’ai simplement salué leur dieu,
lequel est rosier au lever du jour.
Antoine de Saint-Exupéry

Ideias nos inundam sem que as provoquemos. Basta olhar situação até rotineira para que, intuitivamente ou pelo acaso, associemos uma visão a outra imagem que,  como um flash, perpassa  nossa mente. Estava a digitar um texto quando, repentino, surge junto à janela a figura de Lourival, o bom jardineiro, que estava a podar a denominada “unha de gato”. Veio-me a mente a história de Saint-Exupéry, à maneira de uma parábola, sobre um jardineiro, motivo para as derradeiras conclusões do autor de Citadelle, obra que tem sido tema constante desde os posts de 2007.

Sempre morei em casa; portanto, durante quase toda a existência convivo com a presença periódica desse prestador de serviços indispensável.  No mesmo imóvel já estou desde 1965 e foram muitos os jardineiros que mensalmente frequentaram a casa para as podas e arranjos nos pequenos espaços. Basicamente o essencial permanece, mas a cada mês é uma nova muda que agrada à minha mulher, Regina, um cuidado especial com as plantas que crescem rápido, a fim de se ter a possibilidade do descanso do olhar e não a impressão de descaso ou abandono.

Duas árvores eu plantei: um jasmim-manga (1968) que floresce a partir de Outubro, a perfumar os espaços graças às belas flores amarelo-róseas e, ao fundo da casa, em outro pequeno espaço, a pitangueira, cuja muda recebi das mãos da excelsa pianista Antonieta Rudge em 1971. Esta árvore frutífera nos dá a sensação agradável de atravessar as quatro estações (vide Pitangueira Documentada – Eugenia Michelli, 28/09/07).

O jardineiro, independentemente do trato das acarinhadas orquídeas que se agarram aos troncos das duas árvores ou dos vasos que abrigam outras plantas, sabe podar no momento certo as duas representações botânicas maiores da casa. O jasmim-manga tem sua poda nesta altura do ano, período em que todas as folhas caíram, mas que serão úteis, após secas, para adubar o ciclo da renovação. Quanto à pitangueira, há sempre a necessidade da poda de galhos que sobem em linha retilínea de uma parte do tronco. Os jardineiros chamam-nos de “cavalo”, se bem que essa palavra esteja mais ligada a enxertos. O corte desses “cavalos” faz-se necessário para que a força da árvore não seja diminuída.

Os textos reunidos de Citadelle de Saint-Exupéry, que constituiriam uma das obras primas da literatura francesa do século XX, consagram a missão do jardineiro em sua função simples, mas transcendental, como um dos eixos paradigmáticos do livro. Aquele jardineiro idoso, que estava a regar uma muda de carvalho, indagado pelo senhor do império imaginário, responsável pela vida e morte de seus súditos, responde que aguava a planta para que as gerações futuras pudessem usufruir da sombra e da imponência da árvore. Já ao final de Citadelle, Saint-Exupéry retoma o tema, a apontar a figura do jardineiro como personagem derradeiro das longas reflexões a respeito das condições do homem até seu destino final. A esperança da renovação da vida e do interior do homem.

Veio-me, pois, a última das narrativas a preceder as considerações que finalizam Citadelle, de dois velhos amigos jardineiros que, trabalho terminado, tomavam chá, participavam das mesmas festas e pouco se falavam durante o passeio antes do cair da noite. Apontavam  para as plantas,  flores,  árvores e o céu. Poucas confidências ou troca de informações,  pois o essencial se resumia no prazer de assistirem ao maravilhamento dos jardins bem cuidados. Contudo, um deles, ao aceitar o convite de comerciante, partiu para o desconhecido. Atravessou desertos, oceanos, presenciou guerras, sobreviveu a tempestades, naufrágios e durante anos, de jardim em jardim, foi aos confins do mundo, como um tonel no mar, segundo o autor. Em “O Pequeno Príncipe”, a flor do deserto já não teria dito ao personagem central que o vento faz os homens caminharem e que a eles faltam as raízes, pois estas os provocam?  Pois um dia, o jardineiro que permaneceu estático, “velhice do silêncio”, na imagem de Exupéry, recebe carta do antigo companheiro na função. Pede ao senhor do império para que a leia. Na carta, apenas “Esta manhã eu podei minhas roseiras…” e toda a essência da existência lá estava encerrada.

O jardineiro, após a frase a tudo revelar, durante três anos se informaria sobre geografia, oceanos, guerras entre impérios, tempestades. O senhor berbère, narrador dos textos reunidos de Citadelle, certo dia convoca o jardineiro, dizendo-lhe que estaria a enviar um embaixador para o outro lado do mundo e que o idoso responsável pelos jardins poderia escrever  carta ao amigo distante. Dias para que o cuidadoso homem das plantas rascunhasse, a deixar os jardins entregues às pragas. Prontos os garranchos, entrega-os ao senhor e, à la manière de uma prece, apenas “Esta manhã, eu também podei minhas roseiras…”, e o senhor do império,  na excelsa pena de Saint-Exupéry refletiria: “E eu me calei, após ler a mensagem, a meditar sobre o essencial que se me vislumbrava mais claramente, pois os dois amigos distantes te celebravam, Senhor, juntando-se a Vós, acima das roseiras, sem vos conhecer”.

Citadelle expõe pungentes contatos humanos em forma de parábolas. A recorrência ao jardim, plantas, árvores e flores estaria a indicar a renovação que deveria sempre ser o desiderato  rumo ao aperfeiçoamento. A enciclopédia moral encerrada no livro  poderia parecer ingênua nesta atualidade que soube voluntariamente esquecer os princípios essenciais da existência.  Àqueles que leram a obra, a releitura sempre trará o olhar mais aprofundado. Aos que não a conhecem, a possibilidade de reflexões expressivas sobre o destino do homem, de seu caminhar pelas terras na busca hipotética de um dia ter consciência dos valores da humanidade.

The presence of a gardener pruning the plants in my house reminded me of a passage of Saint-Exupéry’s The Wisdom of the Sands, in which two gardeners, with their daily work, offer something of themselves to the world, thus giving a meaning to their lives. The very essence of existence is contained in their words “this morning I pruned my roses”.