Navegando Posts publicados em setembro, 2011

Deixar-se Embrutecer

Entretanto, se consagrarmos um quarto de nosso tempo
cessando nossos esforços pessoais
a deixar tranquilamente o espírito da Natureza impregnar o nosso,
poderíamos reconsiderar a lista de nossos desejos e, ao fazê-lo,
assegurar igualmente a cooperação da Natureza
para obter o que almejamos.
Paul Brunton

Músicos, poetas, escritores, atores, artistas plásticos têm a noção exata do espaço para a respiração. Este pode ser até infinitesimal, mas está sempre a existir. É a pausa a intermediar a frase musical, é a vírgula para quem escreve, o respirar para o ator, o traço a interligar com leveza a feitura do desenho. Habituamo-nos, desde o aprendizado, a essa interrupção momentânea, que possibilita retomadas. Na excelência, grandes poetas, escritores, compositores, intérpretes, atores e artistas de artes visuais sabem conduzir de maneira inefável o espaço que leva à palavra ou o som àquilo que segue ou, ainda, a separação a levar à harmonia das cores.  Não por outro motivo são eles reverenciados por quem se irmana ao conteúdo transmitido. Quando há a simbiose plena música-poema, tem-se então a magia. Entre tantos exemplos, Schubert, Fauré e Debussy souberam extrair o maravilhamento do texto poético em música inefável  e conseguiram estabelecer  momentos absolutos em que palavra e som encontram o sentido transcendente da respiração. Sob outra égide, a do leigo, qual não é o prazer na leitura de um belo poema ou de um texto impecável, onde todos os contornos desse “tempo imaginário” podem ser captados?

O respirar essencial à vida, possibilita, sob outra égide, um controle mais acentuado em determinadas atividades devido às peculiaridades. Brevíssimas interrupções ou pausas fazem parte de seus glossários. Contudo, essa respiração tem sido aniquilada cada vez mais acentuadamente pelos meios de comunicação. Antigamente, na passagem de uma propaganda para outra, tinha-se uma fração mínima de silêncio no rádio, e a separar um anúncio de outro na televisão, igualmente uma fração de segundo em que a tela ficava escura antes da publicidade seguinte. A rede de maior audiência teve no passado, inclusive, mínimas vinhetas representadas por charges articuladas intermediando as propagandas. Pouco a pouco, devido ao princípio fundamental do lucro e do tempo “precioso”, as propagandas foram sendo prensadas umas às outras, sem mais o  infinitesimal instante de separação entre elas. Esse processo converteu-se numa absoluta constante e torna-se aflitiva a sucessão de publicidades díspares – tantas delas verdadeiras câmaras da inconsequência  -, completamente dissonantes umas das outras. O generoso leitor, se prestar atenção,  observará essa assertiva, que chega a ser até um desrespeito ao ouvinte ou ao telespectador. Se necessidade há de se encaixar um número determinado de publicidades, não poderiam as empresas de comunicação eliminar essa verdadeira fusão, possibilitando a passagem de um e de outro anúncio numa sequência natural não tensa? Não bastaria encurtar determinados tempos de créditos ou outros artifícios?

Para aquele que vê e ouve há ainda outra agravante. Quantas não são as vezes em que já se está a ouvir ou a ver determinada propaganda e, na realidade, ainda se acredita tratar-se da anterior? Nem um flash tem tamanha “eficácia”. Algumas empresas de publicidade têm o bom senso de deixar a logomarca do anunciante por meio segundo que seja ao final da mensagem. A mínima fixação já faz o frequentador distinguir perfeitamente os “anúncios” transmitidos. Contudo, algo que fica evidente, até cômico, poder-se-ia afirmar, refere-se à publicidade de remédios. Ao final, em prestissimo veloce, o locutor de rádio ou a tarja em flash afirmam que “se persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado” ou “esse medicamento não deve ser utilizado em caso de sintomas da dengue”. Ou ainda, em termos telefônicos, “sua mensagem está sendo encaminhada para a caixa postal e estará sujeita à cobrança após o sinal”.

A duração do som, a estabelecer relações da trama musical, proporciona aos músicos a noção mais acurada da supressão desse respirar que deveria ser vital na publicidade, fosse outro o entendimento de profissionais ligados a essa área e a da difusão. Sob outro aspecto, a ascensão desmesurada de um tipo de “música” de massa de altos decibéis não faria parte dessa necessidade de se evitar o silêncio e a pausa, de suprimir a respiração e de tornar tudo ofegante?

Um outro aspecto, consequência da inexistência do mínimo instante a separar uma publicidade da outra, residiria na formação, mormente das crianças. Assoladas pela inundação de propagandas essenciais para as empresas de comunicação, apreendem desde tenros anos essa ausência absoluta da pausa, da respiração como essência. Ouvem e veem cenas que se sucedem sem a menor conexão. Não teria isso influência futura no desenvolvimento do miúdo? Seria plausível entendermos positivamente. Esse problema,  acredito, deveria ser tema de profissionais das áreas da educação e psicologia.

Encontrar Luca Vitali é sempre motivo de alegria. Tomamos um curto e falei-lhe do presente post. Apenas ouviu. Dias após, seu lápis mental transformava em charge minhas elucubrações.

 

A reflection on today’s frenzied world of advertising, that forces us to divide our attention into a nonstop - time is money - multitude of small slices and may have an impact on our ability to process information.

 

 

O Pensamento de Daniel Barenboim

A entidade musical  apresenta pois,
essa estranha singularidade de demonstrar dois aspectos,
de existir alternativamente sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música
comanda a sua própria existência
e os seus efeitos na ordem social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

Não poucas vezes tenho me posicionado sobre o músico completo, aquele que, sendo compositor ou intérprete, desenvolve, por vocação ou por aperfeiçoamento voluntário, a arte de pensar a música e o mundo. Acrescentaria, sob  conditio sine qua non, a categoria do teórico competente que, ao ter praticado um instrumento ou em outra situação, debruça-se acuradamente sobre a escrita musical, a evolução da música através da história e a análise tanto musical como social, atingindo a aura da confiabilidade. Só não pode existir, em termos da arte musical, o subterfúgio, o verniz que encobre a falta do conhecimento aprofundado.

Daniel Barenboim é uma exceção no meio musical. Não apenas um dos mais competentes pianistas de nossos tempos, como notável regente e pensador. Suas interpretações ao piano são referenciais e fogem do livre arbítrio tantas vezes pernicioso. Apesar de seu repertório tecladístico preferenciar uma parcela fundamental das criações franco-austro-germanicas, não há uma só de suas gravações que deixe de transmitir a veracidade possível da partitura e a emoção nela contida. Sob outro aspecto, sob sua batuta o denominado grande repertório já foi visitado e suas incursões nas óperas de Richard Wagner ou nas obras dos contemporâneos Pierre Boulez e Elliott Carter são provas de versatilidade competente, que está sempre a surpreender. Seus conceitos sobre Spinoza, Adorno e Wagner evidenciam o pensador arguto e seus diálogos com o intelectual palestino Edward Said resultaram em livro Parallèles et Paradoxes – avec Edward Said (Paris, Le Serpent à Plumes, 2003).

O livro La Musique Éveille le Temps, de Daniel Barenboim (Paris, Fayard, 2008), aponta para aspectos fulcrais do pensamento do intérprete. Alguns outros textos foram agregados à obra. Pode-se aquilatar o grau de profundidade de seus conceitos sobre música, mormente a complexa área da interpretação em sua essência essencial, naquilo que resultará após intenso debruçamento. Não se atém o livro unicamente à interpretação, e Barenboin discorre sobre seu comprometimento profundo  com J.S.Bach; sua confessa admiração pela criação de Mozart (entrevista); suas lembranças de aprendizado e amadurecimento; homenageia o extraordinário regente Furtwängler; traça seu relacionamento musical com Pierre Boulez; aborda Wagner e a ideologia; e não deixa de rememorar a intensa ligação com o pensador palestino Edward Said e aspectos concernentes à política e ao entendimento entre os homens que professam atávicos e divergentes princípios religiosos, deles decorrendo tanta incompreensão no mundo atual.

Como bem afirma o autor no Prélude, “Não se trata de um livro para músicos, nem para leigos; ele é destinado, preferencialmente, ao espírito curioso e desejoso de descobrir paralelos entre a música, a vida, e essa sabedoria que se torna audível para a escuta pensante”. Num primeiro capítulo Barenboim aborda temas recorrentes e que fazem parte de suas preocupações, como som, silêncio e pensamento. Já teria afirmado que “A relação entre a vida e a morte é a mesma que existe entre o silêncio e música – o silêncio precede a música, sucedendo-a”. O conceito, a envolver o nascimento do som e a sua extinção, magnificamente tratado por Vladimir Jankélévitch nos três livros a abordar a obra de Debussy, adquire, nas intenções de Barenboim, a práxis absoluta através de suas interpretações, que se tornaram paradigmáticas. Traduz-se nesse sentido de entender o encadeamento das frases musicais, dando a cada nota o próprio sentido da individualidade. Para Baremboim, “o último som não é o fim da música e se a primeira nota está ligada ao silêncio que a precede, a última deve estar ligada ao silêncio que segue”. E a partitura conteria toda a complexidade, onde cada nota deverá ter o espírito solidário, ao transferir para aquela que a sucede a missão sequencial. A inteligibilidade das notas que desfilam nessa concepção fraterna fá-lo entender que “se o tempo for muito rápido, o conteúdo advirá incompreensível, pela incapacidade do músico de tocar todas as notas claramente, ou então, do ouvinte de entendê-las; se, ao contrário, for muito lento, também será incompreensível, pois nem o intérprete, tampouco o ouvinte captarão todas as relações entre as notas”.

Pormenoriza as categorias da leitura de um livro e da escuta musical, aquela a possibilitar as associações que se estabelecem através do texto, e esta a necessitar, a partir de cada nota, da tomada de consciência das leis físicas do som, do tempo e do espaço. A acuidade do ilustre  intérprete na captação de todos os elementos sonoros que formam o léxico da partitura vertido para a interpretação aproxima-o do enunciado constante da epígrafe do post.

Barenboim entenderia como equívoco o posicionamento de intérpretes “persuadidos de que a música do passado é atemporal, universal e fonte infinita de inspiração, ao acreditarem que, limitando-se à estreita seleção de obras dos séculos precedentes, terão um conhecimento mais aprofundado”.  O pianista-regente estaria atento à curiosidade que todo músico deve ter em relação à criação contemporânea, que pode, sob outra égide, vir a explicar as obras do passado.

Dedica um capítulo a J.S.Bach J’ai été nourri de Bach. Ter-se alimentado desde a tenra infância de conteúdo essencial da obra de Bach, mormente do Cravo Bem Temperado, deu a Barenboim o sentido sinfônico, pois a polifonia que dela emana estabelece a possibilidade da diferenciação das vozes, a propiciar a leitura tridimensional, como afirma. Como curiosidade mencionaria que Barenboim escreve ter estudado o Cravo Bem Temperado ainda menino, sob influência de seu progenitor. O mesmo se deu em relação ao meu irmão João Carlos, que trabalhou os 48 Prelúdios e Fugas da magistral obra também sob a indicação de nosso pai, gravando nos decênios seguintes a integral de J.S.Bach para teclado. Sob outra égide, meu professor de matérias teóricas e ilustre músico Louis Saguer, não orientaria durante três anos em Paris o seu aluno no sentido de analisar com profundidade, a cada semana, um prelúdio e fuga do C.B.T.? A monumental obra do Kantor seria  paradigma para Barenboim, ensinando, entre outras lições, a independência absoluta de cada um dos dez dedos e a percepção decorrente, que tem tudo a haver com o sinfônico, segundo o  pianista-chefe de orquestra. Essa confessa admiração não teria resultado no futuro regente? Ainda hoje, periodicamente Daniel Barenboim apresenta em público os dois livros do Cravo Bem Temperado, exemplo que, hélas, não parece ter guarida nas novas gerações de pianistas. Nesse capítulo, destaca a prevalência, entre os três elementos básicos da música – harmonia, ritmo e melodia –, da harmonia, eixo paradigmático da composição tonal.

Um dado significativo enunciado por Barenboim e que vem ao encontro de posições que professei em 2001 e ratificadas pelo ilustre musicólogo e saudoso amigo François Lesure, quando de minha gravação para o selo belga da integral para teclado de Jean-Philippe Rameau, diz respeito à interpretação histórica. Escreve o notável intérprete: “Penso que se ocupar unicamente de hábitos históricos e querer reproduzir a sonoridade de práticas musicais mais antigas é restritivo e não é sinal de progresso”. Lesure escrevera que o anátema lançado pelos puristas não tem mais sentido. Barenboim afirma que “a visão puramente acadêmica do passado é perigosa, pois ela está ligada à ideologia e ao fundamentalismo, mesmo na música”. François Lesure afirmaria que “não é o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. O pianista-regente, ao afirmar que não tem “nenhum problema filosófico com alguém que toque Bach e o faz soar como Boulez, mas sim com aquele que busca imitar o som daquela época”, não estaria a engrossar a legião de músicos conscientes contra a intolerância? Respeita determinados músicos fabulosos que se dedicam à execução histórica, mas aderir ao que ele denomina “movimento” de cunho  ideológico, cerceia a criatividade humana. Todavia, Barenboim está ciente que tem de haver responsabilidade nessa compreensão interpretativa de obras do passado.

Na entrevista concedida à Christine Lemke-Matwey sobre Mozart, um de seus paradigmas musicais, Barenboim discorre sobre a criação, os meios empregados pelo compositor e a extrema fluidez de sua música. Jocosamente, afirma: “Vinte quatro horas com Mozart seriam como um mês com Brahms – e eu nada tenho contra Brahms”. Dessa entrevista em torno de Mozart, uma observação que seria farol de orientação durante a trajetória do pianista-regente. Ao tocar aos 13 anos a Sonata op. 111 de Beethoven diante de júri respeitável na Academia Santa Cecília, em Roma, teve nove votos a favor e um contra, este do grande pianista Arturo Benedetti Michelangeli. O músico italiano teria-lhe afirmado que uma criança não podia saber o que fazer com aquela música. Considera Barenboim: “Fiquei, pois, permanentemente confrontado com a ideia de que é necessário ter grande experiência de vida para ser um bom músico”.

A admiração inconteste de Barenboin pelo filósofo Spinoza fá-lo discorrer sobre princípios do pensamento do autor de Ética - lido pelo pianista quando ainda em seus treze anos -, e a influência duradoura sobre sua maneira de entender a vida e a interpretação. Entende como fundamento essencial do legado de Spinoza o ultrapassar a contradição entre finito e infinito.

Capítulos são dedicados à estreita ligação com o pensador palestino Edward Said, que resultaria na fundação, em 1999, da West-Eastern Divan Orchestra, arquitetada a partir de músicos provenientes de países conflitantes do Oriente-Médio e cuja ação tem repercussão no mundo inteiro, mormente por ser Barenboim de origem judaica, o que provocaria um sem número de incompreensões, apesar da aceitação inconteste por parte daqueles que sonham ainda com uma paz duradoura entre árabes e judeus. Barenboim receberia em 2008 o passaporte palestino.

Em La Musique Éveille le Temps há capítulos fulcrais em que Daniel Barenboim  focaliza com  argúcia características de individualidade na regência do grande Wilhelm Furtwängler, que servem ainda como referências. Discorre sobre sua amizade com Pierre Boulez, compositor que ele admira e que é um de seus escolhidos quando do repertório orquestral contemporâneo. Em sendo Barenboim um dos grandes regentes das óperas de Richard Wagner, um capítulo a ele é dedicado.

Na atualidade é cada vez mais rara a incursão de um intérprete de imenso valor no campo do pensar música. A agitação hodierna quase que impede a reflexão sobre música e temas humanísticos. É, pois, relevante um livro como La Musique Éveille le Temps, ao menos para músicos e leigos de espírito curioso, como sugere o próprio Barenboim. Sob o título “A Música Desperta o Tempo” o livro foi lançado no Brasil pela Martins Fontes em 2009.

On the book “La Musique Éveille le Temps” (Music Quickens Time), written by Daniel Barenboim, pianist, conductor and – exception among musicians – also an intellectual who discusses non-musical issues. In this book he talks about the West-Eastern Divan Orchestra – with Israeli and Palestinian musicians – he co-founded with his late friend, Edward Said, presents topics on Spinoza, Bach, Mozart, Boulez, Furtwängler and, above all, reflects on the duality sound-silence and on how people perceive the universal language of music.The book is an exceptionally talented musician’s foray into the world of sound and the interconnections between music and life.

 

Rememorando outra Viagem de ônibus

Que a imaginação te engorde e a matemática te emagreça.
Agostinho da Silva

Conversava com meu amigo Luca Vitali. O arguto artista lera os últimos posts de uma só vez. Disse ter gostado dos dois sobre as ferrovias, mas provocou-me: “Certamente você deve ter também outras experiências com ônibus de longo percurso, pois lembro-me de um seu post bem anterior.” Uma delas já abordei (vide Experiência que Marcou – Caminho para Varna, 18/07/2009); mas, ao continuar a nossa conversa, lembrei-me de uma cheia de situações inusitadas. Fomos direto a um curto e prolongamos ideias.

Quando na Bélgica, por várias vezes fui a Paris de comboio. Nos anos 90, de Gent a Bruxelas em trem comum, e de lá a capital francesa em TGV. Hoje há confortável linha direta a ligar Gent a Paris. Em 1999, Christiane, uma amiga que trabalhava na Rode Pomp, disse-me que eu deveria fazer ao menos uma vez a viagem em autocar e assim conhecer outras paisagens e também as auto-estradas que atravessam os dois países. Aquiesci e realizei uma dessas viagens, que normalmente duram quatro horas.

Estou a me lembrar que o ônibus saiu bem cedo, quase que lotado, e que cerca de 80% dos viajantes eram árabes do norte da África, pois suas figuras são marcantes. Há dignidade nesses semblantes, muitos deles sofridos. Alguns vestiam roupas próprias de suas regiões, os homens com toucas ou taeias e as mulheres com lenços ou xales. A linha rodoviária por autocar, Gent-Paris, não era diária, daí o afluxo. Christiane, de extrema gentileza, preparou-me alguns sanduíches e uma garrafa de água. E lá saímos em direção à Gare du Nord, eu tendo ao meu lado um jovem francês descontraído, de pequena estatura, tez bem avermelhada, olhos claros. Trajava jaqueta e boné bem surrados e imensa vontade de conversar. Como eu estava sempre a ler e por vezes olhava a paisagem, o companheiro de viagem interrompia a sua fala por determinado tempo, a me proporcionar transitório alívio.

Na fronteira dos dois países o ônibus parou e alguns guardas alfandegários franceses, armados até os dentes, subiram, a olhar com arrogância os passageiros. A certa altura, bruscamente, retiraram o jovem que estava ao meu lado e o levaram com certa truculência ao posto da polícia de fronteiras. Da janela deu para acompanhar policiais segurando com firmeza os braços do infortunado, atravessarem as duas pistas e entrarem no posto. Em nenhum momento senti-o culpado, tal a descontração e a informalidade de uma pessoa absolutamente comum.

Algo de muito estranho deveria estar a passar, pois o viajante lá permaneceu por cerca de duas horas. Não apenas não tínhamos permissão para descer, como nada respondia o policial que ficara à porta do autocar. Inútil dizer que a toilette do autocar serviria como último recurso para básicas necessidades. Após o longo interrogatório, vi o jovem atravessar a auto-estrada escoltado pelos gendarmes, sem que apertassem, dessa vez, os braços do moço. Qual não foi o meu espanto quando um dos agentes entrou no ônibus a impor, de maneira a não deixar quaisquer dúvidas, a nossa saída do veículo, com todos os nossos pertences, inclusive a bagagem do amplo porta-malas. Como estava a ler e a anotar, fui o último a descer, ficando pois no fim de uma extensa fila no posto alfandegário situado na pista em direção a Paris. Tudo, mas tudo, foi revistado. Após uma hora de investigação minuciosa e inóspita, pois bagagens, documentos e as roupas eram verificadas, calculei que ainda teria de esperar uma outra boa hora. Dirigi-me a um dos policiais e mostrei uma carta da Bibliothèque National de Paris, pois teria uma reunião no Centre de Documentation Claude Debussy no dia seguinte. Leu-a sem me olhar, deixou-me livre daquele entrave e não revistou minha bagagem. Ao solicitar permissão para ir ao toilette do posto alfandegário, o policial imediatamente afirmou que teria de me seguir. “Com todo o respeito, não há um certo exagero por parte do senhor?”, disse-lhe. Desconcertado, deixou-me ir não apenas ao toilette como retornar ao ônibus com todos os meus pertences. Exausto, adormeci uma boa meia hora. Ao acordar, senta-se ao meu lado o jovem viajante a sorrir. Afirmou-me que pensaram ser traficante e que estivesse com drogas. Teve de ficar completamente nu. Fizeram-lhe mil perguntas, pois o posto recebera aviso de que aquele ônibus estava com entorpecentes. Perguntei-lhe pelo desfecho. “Tive medo, sofri humilhações, mas não me bateram”, foi a resposta sempre em tom humorado. Contou-me que estava a retornar à França unicamente para buscar novo emprego, após ter permanecido um ano na Bélgica.

Permanecemos quatro horas nesse posto de fronteira. Foi quando abri minha sacola de mão e retirei meus três sanduíches médios. Ofereci um a ele, que imediatamente o devorou. Estava na metade de meu primeiro sanduíche quando o jovem me perguntou se eu iria comer o terceiro. Entreguei-lhe. Antes que terminasse o meu “primeiro”, os dois outros já tinham sido deglutidos por meu companheiro de viagem. Abri a garrafa de água gaseificada de 750cc, mostrei-a ao rapaz e ele nada disse. Após uns goles que acabara de dar, afirmou-me que estava com sede. Passei-lhe a garrafa quase cheia e bastaram alguns segundos para que a esvaziasse. Ainda faltava a barra de 100g de excelente chocolate belga. Ofereci ao alegre vizinho de trajeto, que com forte pressão dos dedos cortou-o e ficou com mais de metade da barra. Da parte que sobrou tirei dois pequenos pedaços, guardando o restante. Minutos após, nova pergunta “O senhor ainda vai comer o chocolate”? Nem respondi, apenas entreguei-o ao voraz “companheiro”. Tenho a certeza que, se café houvesse, teria eu sorte se ficasse com o restinho do fundo de xícara.

O ônibus ainda fez uma parada rotineira em um desses postos de conveniência no meio do trajeto. Chegamos em Paris após oito horas de viagem. Ao se despedir, o sorridente jovem ainda observou “Gostei muito de nossa conversa. O senhor é um velho simpático”. Estendeu-me a mão, cumprimentamo-nos, sorri desconcertado e lá foi ele em busca de seu destino. Fiquei a pensar, que conversa? Eu só entregava a ele o que me era pedido e o moço não parava de falar… e de comer. O certo é que tive tempo de sobra para ler e fazer a revisão dos temas da reunião parisiense. Do que a caridosa amiga Christiane me deu em Gent, bem mais de três quartos ficaram com o vizinho de assento.

Na capital francesa, o fato foi motivo de boas risadas quando narrei pormenores dessa viagem inusitada. Ao final dessa lembrança, Luca, que tem sempre um lápis ou pincel na mente, observou que a viagem de ônibus é a mais solidária, e as pessoas muitas vezes se confraternizam. Dei-lhe inteira razão. Sob outro aspecto, se a viagem fosse sem percalços, não estaria aqui a me lembrar dessas situações inusitadas. Luca me surpreenderia dias após com o desenho que serviu de ilustração. O choque a aguçar nossa memória e imaginação.

My adventures on the road from Gent to Paris with a weird and hungry seatmate.