Portugal e sua Música de Concerto
Les chiens aboient et hurlent à la lune,
sans qu’on puisse en supposer la cause…Brehm, vol I, p. 349
Viens ici! Tais toi! Que vois tu?
Des ombres? Chopin? Debussy?
Viens ici. Tais-toi. Ce sont des Amis à nous.
Francisco de Lacerda (Epígrafes para a 14ª das 36 Histoires… Mon Chien et la Lune)
O repertório para a tournée programada para este fim de ano em terras lusíadas teve determinantes precisas. A cirurgia do polegar da mão direita (Rizartrose) em Junho deste ano mereceu recuperação cautelosa. A conselho do Dr. Heitor Ulson, notável cirurgião da mão, fiz-me obediente, a evitar repertório de impacto para os seis meses subsequentes à operação. Confesso que a melhora foi admirável, assim como aquela a suceder a cirurgia do polegar da mão esquerda no ano de 2010.
Há muito tempo não apresentava em público a magistral obra de Francisco de Lacerda (1869-1934), Trente-six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste, uma das mais absolutas criações destinada ao universo lúdico. Gravei-as em 1999 para o selo belga De Rode Pomp, juntamente com obras precisas de Claude Debussy. Os dois foram amigos. Quando Lacerda obteve o primeiro prêmio em concurso patrocinado pela Revue Musicale de Paris, em 1904, Claude Debussy presidia o certame. Danse Sacrée – Danse du Voile foi a obra agraciada. Debussy entusiasmou-se pela composição premiada e teria solicitado a Lacerda a utilização de um de seus temas, assim como o título Sacrée, para a primeira de suas duas Danças bem conhecidas, Danse Sacrée – Danse Profane, compostas para harpa cromática ou piano e conjunto de cordas, no mesmo ano da premiação da composição do colega açoriano. A seguir, o amigo e editor de Debussy, Jacques Durand, faria a transcrição da criação debussiniana para piano solo, com a anuência do compositor. Segundo o eminente musicólogo e saudoso amigo François Lesure, Manuel de Falla teria apresentado essa transcrição em Madrid no ano de 1907. Nessa tournée estarei a apresentar não apenas as 36 Histoires… de Lacerda, como sua Danse Sacrée-Danse du Voile, assim como as duas Danças de Debussy.
Deve-se a J.M. Bettencourt da Câmara a redescoberta de pequenas peças de Francisco de Lacerda, que estavam depositadas no Museu de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira do Arquipélago dos Açores. Essas miniaturas deveriam integrar trinta e seis trechos idealizados pelo compositor. Bettencourt da Câmara reagrupou-os e, em 1986, a Fundação Calouste Gulbenkian publicaria a coletânea na coleção Portugalea Musica. Em 1997 seriam republicadas pelo Governo Regional dos Açores (Colecção “Fontes Musicais Açorianas”, vol. II, 1997), no âmbito da integral para piano.
Se em 1904 Debussy presta homenagem ao talento de Lacerda, durante a longa elaboração das Trente-Six Histoires… (1902-1922) o músico açoriano não deixaria de pensar em seu ilustre colega. Inúmeras peças demonstrariam essa confessa admiração. No dossier de Francisco de Lacerda depositado no Museu de Angra do Heroísmo constatei que o compositor nascido na Ilha de São Jorge fez inúmeras anotações em duas obras impressas de Debussy e pertencentes ao universo lúdico: Children’s Corner e La Boîte à Joujoux. Sob outra égide, o fato de Lacerda ter-se dedicado à regência, tendo sido um dos mais ilustres chefes de orquestra de seu tempo, dava-lhe pouco tempo para a dedicação plena à composição. Seria ainda Debussy que mencionaria em carta o talento que estava represado mercê da regência.
Francisco de Lacerda é o compositor das pequenas peças. Tanto as Trovas para canto e piano, como as outras obras para piano, assim como a pequena produção orquestral têm a excelsa qualidade do multum in minimo, pois é extraordinária a capacidade de síntese de Lacerda, que em poucos compassos estabelece seu paradigma para a forma. Considero a coletânea uma das mais perfeitas criações escritas para o universo lúdico infantil. O acabamento esmerado, a tendência à de-dinamização, a qualidade timbrística e o prazer do despojamento quando, ao suprimir notas de um acorde, Lacerda deixa apenas uma, a buscar a extinção, são atributos inerentes desse grande músico. A apresentação das Trente-Six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste terá data show preparado pelo ilustre professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Seis desenhos de Luca Vitali, bem conhecido de nossos leitores pelas sensíveis ilustrações de tantos posts, integram a apresentação visual de Pedrosa Cardoso. Essa ideia só foi possível mercê da presença, em muitas peças, de um conteúdo programático, com frases especiais configurando situações. Frise-se que todas as pequenas histórias contemplam a fauna. Aves, mamíferos, anfíbios povoam a coleção. Inexiste a ferocidade, mas a descontração, o humor, a tragédia e a contemplação penetram as “mentes” dos simpáticos personagens. Apenas um é humano, Anaclèto, le simple.
Fixada a obra mestra para a programação em Portugal, dois notáveis compositores vieram prestar homenagem a Francisco de Lacerda. De França chegou-nos, de François Servenière, Trois Musiques pour endormir les enfants d’un compositeur e, de Portugal, da pena de Eurico Carrapatoso, Six Histoires d’enfants pour amuser un artiste, a partir de poemas de Violeta Figueiredo. As duas séries estarão a ser apresentadas em primeira audição. Sinto-me profundamente honrado em poder contar com a presença dos dois compositores no primeiro recital da digressão. De Portugal deverei escrever a respeito da recepção pública e crítica dessas criações tão especiais.
A tournée começará por Coimbra. A preceder o recital haverá o lançamento de meu livro pela Imprensa da Universidade de Coimbra, Impressões sobre a Música Portuguesa. Sobre essa obra escreverei no próximo post.
Clique para ouvir, de Francisco de Lacerda, 3 Histoires…, com José Eduardo Martins ao piano.
In November I’m going on a concert tour in Portugal, beginning with Coimbra. The recitals will present works by Francisco de Lacerda, François Servenière and Eurico Carrapatoso. Preceding the recital in Coimbra, my book “Impressões sobre a Música Portuguesa” (A View of the Portuguese Music) will be released by the University of Coimbra.
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