Panorama-Criação-Interpretação-Esperanças

Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo.
Infalível e insubornável.
Guerra Junqueiro

Já muito se escreveu sobre a analogia do lançamento de um livro e a paternidade. Há sempre proximidades que podem ser estabelecidas. O tempo de gestação de uma obra não obedece a prazos determinados. As fronteiras se estabelecem entre meses ou incontáveis anos, a depender de tantos fatores.

Foi com prazer imenso que recebi do Professor Doutor João Gouveia Monteiro, ilustre medievalista e então Presidente da Imprensa da Universidade de Coimbra, o convite para apresentar material para um livro unicamente sobre música portuguesa, que seria submetido à Comissão Especializada. Lembro ao leitor que nestes últimos anos tenho-me apresentado regularmente como pianista em recitais promovidos pela lendária Universidade.

A reunião de artigos publicados em Portugal, França e Brasil, que se estendem de 1992 ao presente, causou-me estímulo especial. Não apenas compositores como Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e Jorge Peixinho (1940-1994), que tiveram obras por mim gravadas em seis CDs distribuídos na Bélgica, Estados Unidos e Portugal, mas também outros, a que me dediquei amorosamente, resultaram na interpretação pianística. Sob aspecto outro, busquei penetrar no universo misterioso da criação e do pensar musical em Portugal e nesse desiderato o discurso literário foi imperativo. O convívio, por cerca de 55 anos, com a música e músicos portugueses, motivou outros artigos, que foram sendo depositados ao longo dos anos em revistas, arbitradas ou não, e em livros. Igualmente foram anexados posts específicos sobre a Música Portuguesa, publicados em meu blog desde 2007.  Aprovados pela Imprensa da Universidade de Coimbra, o livro nascerá neste 3 de Novembro, seguido de recital de piano em que interpretarei obras de Francisco de Lacerda e homenagens a ele prestadas pelos excelentes compositores François Servenière, da França, e Eurico Carrapatoso, das terras lusíadas. Lançamento e recital deverão se processar na sala do belo Museu Machado de Castro em Coimbra, sob a égide da Universidade que foi criada por D. Diniz em 1290.

Reunidos os  artigos, tenho o imenso gosto de ver a precedê-los o prefácio do notável musicólogo Mário Vieira de Carvalho, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Entre outros temas, aponta o ilustre pensador para o desconhecimento mútuo da criação musical não popular dos povos irmãos.

A Jangada de Pedra

“José Eduardo Martins é um artista de raro perfil, tanto mais quando o consideramos no contexto da tradição luso-brasileira. Uma tradição que se fragmentou e se perdeu desde que os dois países seguiram o seu próprio rumo há perto de dois séculos. Decerto, tem havido contactos, algum intercâmbio, alguma cooperação, mas nada que faça de Portugal ou do Brasil algo de quantitativa ou qualitativamente diferente do que eles são nas suas respectivas relações de parceria com países terceiros. No campo da música, se excluirmos a música  popular, podemos dizer que nenhum dos países conta com o outro. Com que frequência vêm compositores, intérpretes, orquestras e outros agrupamentos musicais brasileiros apresentar-se em Portugal na Casa da Música, no Centro Cultural de Belém, na Fundação Calouste Gulbenkian, enfim, em vários outros espaços de concertos? Olhamos para sucessivas temporadas, ao longo de anos, de décadas, e é como se o Brasil não existisse. É como se não existissem lá compositores, solistas dos mais variados instrumentos, orquestras, grupos de câmara, nada de interesse para o público português. As agências internacionais de concertos apoderaram-se inteiramente da nossa vida musical, onde colocam (por vezes a peso de ouro) o êxito acumulado do ‘centro’. E nem sequer passa pela cabeça das instituições e dos seus ‘programadores’ que Brasil e Portugal, juntos, bem podiam criar uma nova dinâmica de efectivo intercâmbio que se projectasse não só no espaço cultural luso-brasileiro, mas também para fora dele. O mesmo se passa do outro lado do Atlântico, onde o repertório e a programação revelam notório desinteresse por compositores e intérpretes portugueses.

É neste contexto que a singularidade de José Eduardo Martins se agiganta. Ao longo de mais de cinquenta anos, não se limitou a manter e expandir contactos, a promover o intercâmbio, como já o tinham feito Lopes-Graça, Peixinho ou, por exemplo, Gilberto Mendes. Foi muito mais além. Dedicou-se de uma forma continuada à investigação da música portuguesa. Estudou-a sistematicamente como musicólogo, mas sobretudo como intérprete altamente consciente dos problemas da sua arte. Estudou-a para se deixar surpreender por ela e para nos surpreender com ela, abrindo novas perspectivas através das suas interpretações. Fez da sua relação com a música portuguesa um projecto autónomo, central na sua trajectória artística: desde o momento da análise e da pesquisa de fontes primárias (reconstrução das obras) até à preparação de registos gravados em condições de realização técnica exemplares. Carlos Seixas, Francisco de Lacerda, Fernando Lopes-Graça, Jorge Peixinho são os nomes de compositores portugueses que José Eduardo Martins mais tem interpretado nos seus recitais e em registos gravados, que se impõem pela sua extraordinária consistência. As suas interpretações valem como paradigma da síntese entre o rigor da pesquisa, a profundidade da análise dos elementos expressivos e construtivos, o conhecimento crítico da escrita e da técnica pianísticas e, por fim, uma genuína entrega ou, se quisermos, apropriação afectiva das obras. Não é por uma qualquer conveniência postiça que José Eduardo Martins se interessa pela música e pelos compositores portugueses. É por uma sincera e sentida motivação. Se não bastasse, por si só, o envolvimento  – o impulso mimético  – que emana das suas interpretações, então os seus ensaios teóricos, conferências e escritos reunidos neste livro aí estariam para testemunhar também esse seu entusiasmo.

São textos penetrantes que mostram uma familiaridade de muitos anos com a música portuguesa, um diálogo permanente com o material, um incessante processo de redescoberta dos compositores e das suas obras. Não é fácil enumerar intérpretes portugueses que tanto tenham investido na música portuguesa e que tanto tenham trabalhado sobre ela ao nível a que José Eduardo Martins a aborda. Poucos ousam escapar ao ‘cânone’ hegemónico nas salas de concertos ou na produção fonográfica internacionais: como se o intérprete precisasse do prestígio do cânone para se sentir ele próprio prestigiado enquanto intérprete, e a música portuguesa fosse um sacrifício, um ónus, que não valesse a pena.

José Eduardo Martins não sofre de tal complexo. Pelo contrário: confessa quanto se sentiria frustrado se tivesse de cingir-se àquele núcleo restrito de obras-primas clássico-românticas em que muitos dos mais célebres pianistas insistem invariavelmente. Renovar o repertório é vital para ele, e a música portuguesa tem alimentado essa paixão pelo constante alargamento dos seus horizontes de intérprete.

Mas, se já é difícil encontrar em Portugal intérpretes que tanto se empenhem assim na música portuguesa, que dizer então quando se trata de música brasileira? Com a sua acção ao longo de mais de meio século José Eduardo Martins criou uma enorme dívida dos artistas portugueses para com o legado da música brasileira. Quem pode ser nomeado, de entre os artistas portugueses, que se tenha interessado assim por compositores brasileiros, que os tenha estudado, interpretado, gravado apaixonadamente, que os mantenha no seu repertório, que os divulgue internacionalmente? Não há um único que o tenha feito com intensidade comparável. Do lado de Portugal, ainda ninguém retribuiu verdadeiramente esse gesto fraterno de diálogo com a cultura musical do país irmão, essa paixão por compreender, fazer nossa, divulgar uma literatura musical – neste caso, pianística  – tão rica e tão diversa, tão abundante em fortes e marcantes personalidades, como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Villa Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian, entre vários outros…

Eis o desafio que José Eduardo Martins lança aos artistas e às instituições de ambos os países: deixarem de estar mutuamente de costas voltadas e lançarem pontes de interacção recíproca. Pensarem Brasil e Portugal como uma imensa rede de possibilidades de formação, investigação e intercâmbio artísticos. Pensarem-se também como parte integrante do mundo lusófono e ibero-americano, que  continua a esperar em vão pelo ‘evento’ que tarda (‘evento’ entendido como estratégia ou atitude essencialmente cultural). Há que soltar a ‘jangada de pedra’ das amarras da sua condição periférica e trazê-la de volta carregada de potencial contra-hegemónico”.

Para o pianista que, desde a juventude, nunca deixou de utilizar a pena, é motivo de grande alegria a publicação do presente livro (Impressões sobre a Música Portuguesa. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 265 págs.), não apenas pela tradição dessa extraordinária Instituição de Ensino, mas também pela razão de ver reunidos mais de 50 anos de reflexão sobre a Música e Músicos Portugueses que, hélas, tantos insistem em ignorar, sistematicamente. Tenhamos esperanças.

Notes on my book about Portuguese classical music, that will be released next 3 November by the Coimbra University Press.