Navegando Posts publicados em novembro, 2011

Segue-se o caminhar

De Lisboa a Évora percorre-se lindo trajeto. O Alentejo é mágico e as grandes extensões  alentejanas tomam proporções inusitadas. Já escrevi vários posts sobre a região nas diversas estações. A luz é diferenciada daquela da primavera, a relva tem outro verde, mas a dar destaque, por vezes, às colorações azuladas devido às flores bem pequenas. Sobreiros, oliveiras, chaparros e avinheiras têm outras tonalidades nesta estação e se espalham esparsamente pela planura ondulante. As cegonhas, em seus ninhos nas altas torres, aguardam o inverno, que no Alentejo é bem cortante. Não mais saem da região, integrando a paisagem durante todo o ano. Belíssimo vê-las planarem e com mínimo esforço se deslocar pelos céus. Nossa amiga Idalete Giga, excelente gregorianista e alentejana apaixonada, sempre se encanta ao observá-las em evoluções serenas.

O recital, como nesses últimos seis anos, deu-se no requintado Convento Nª Srª dos Remédios, erigido no século XVI. Sinto-me bem ao adentrar a igreja, hoje destinada à música, através da bela programação do Eborae Musica, escola tão bem dirigida pela Profª Helena Zuber. O altar mor e as outras talhas douradas dos altares laterais bem evidenciam a qualidade desses artistas, que tão bem souberam trazer harmonia a essa igreja tão especial. O data show, preparado tão cuidadosamente pelo professor José Maria Pedrosa Cardoso, tem tido a melhor recepção por parte do público, não apenas pelo esmero com que cuidou das frases de Francisco de Lacerda inseridas durante o discurso musical das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, como pelos desenhos expressivos de Luca Vitali. Eurico Carrapatoso se fez presente novamente e apresentou-me compositor de grande talento, João Francisco Nascimento. Devo apresentar em primeira audição seu Estudo Fúria, Volutas e Saraivadas, dedicado a Carlos Seixas, na tournée de 2012. Obra que resultará. Muito bem escrita, integrará a coleção, já a beirar os 80 Estudos compostos desde 1985 por compositores de todos os rincões deste planeta e que integram nosso projeto. Qual não foi a surpresa de lá encontrar o querido amigo António Menéres, ilustre arquiteto português, que estava de passagem pela cidade e hospedado, com sua esposa Maria Amélia, no mesmo hotel. Uma alegria muito grande para Regina e para mim.

Com o casal Pedrosa Cardoso e Maria Manuela descemos ao Algarve e o recital foi realizado na concorrida Escola de Música de Lagos, com muito boa boa audiência. Apesar da gravíssima crise que se abate sobre Portugal, mercê de políticos inescrupulosos, empresários gananciosos e banqueiros com programas estranhos – não ocorre o mesmo no Brasil? -, é alvissareiro verificar-se a permanência dessas escolas da resistência no país. Diria que a arte erudita, praticada por jovens alunos e professores que ainda acreditam, é salvaguarda da esperança, e o número de apresentações destinadas aos novéis praticantes chega a ser digno de registro. O curto período nessa bela Lagos frente ao mar serviu para a degustação dos peixes preparados extraordinariamente por mestre Firmino, o homem do mar, pai de Manuela, assim como dos doces amendoados, por sua mãe Maria Elias. Chamaram-me a atenção, neste outono, diversos ninhos de cegonhas na cidade, em torres de eletrificação ou em chaminés. Elas se espalham e são bem aceitas pelos cidadãos, fazendo bela parceria com as centenas de gaivotas que sobrevoam as margens algarvias.

Tomar, a cidade dos templários, do Convento de Cristo, cuja construção teve início no século XII, com inúmeros claustros construídos ao longo dos séculos e a magnífica Janela do Capítulo, foi a quinta cidade visitada. Berço do grande compositor Fernando Lopes-Graça. O recital na Escola de Música Canto Firme foi muito concorrido. Antônio de Souza, sensível regente coral e dirigente da Escola, soube preparar antecipadamente o público. Eurico Carrapatoso compareceu e tanto suas obras como as três peças de François Servenière tiveram comentários elogiosos. São realmente belas composições. Um pianista e professor russo lá presente comentou que não é necessário tornar a música ininteligível para mostrar “intelectualidade”, pois agradara-lhe a competente organização estrutural das obras e sua inserção junto ao público, que se mostraria altamente receptivo. E o que dizer de Francisco de Lacerda? A cada recital, maior a minha convicção de estarmos diante de verdadeiras obras primas que, hélas, pianistas continuam a  negligenciar. Creio que se contam nos dedos de uma só mão aqueles que realizaram a integral das Trente six histoires… Constrangedora situação.

À medida que subimos rumo ao norte, ao Minho de meu pai, a paisagem se transforma e um novo post mostrará as recepções, em Braga e Póvoa de Varzim, das obras propostas para a turnê em Portugal. Continuamos a digressão.

 

 

 

 

Após Coimbra, tivemos o lançamento da excelente revista Glosas4 em Lisboa. Tive o grato prazer de conhecer figura emblemática na composição e no pensar em Portugal, António Victorino de Almeida. Conversamos sobre a música de nossos dias. Ao regressar à minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, escreverei sobre os temas tratados em Glosas4, que publicou igualmente um artigo meu sobre o original para piano dessa obra prima que é Canto de Amor e de Morte, de Lopes-Graça. Os jovens editores de Glosas têm profundo respeito pelo conjunto repertorial português do passado ao presente. Dias após, 8 e 9 de Novembro, houve na Academia de Amadores de Música, o Templo de Lopes-Graça e meu lar musical em Lisboa, conferência e recital, respectivamente. Focalizei o espírito de síntese existente em obras de Francisco de Lacerda e Fernando Lopes-Graça, mormente em obras destinadas ao universo lúdico. Neste, ambos recorrem tantas vezes ao cancioneiro português ou à temática de cariz popular, e uma identificação de propósitos se faz presente em autores distanciados no tempo. Victorino de Almeida esteve presente e ofereceu-me um conjunto de suas obras.

O programa do recital, com obras de Francisco de Lacerda, Eurico Carrapatoso e François Servenière, tem tido aceitação acima do usual. Se Lacerda não é ventilado à altura por desconhecimento — ou mesmo descaso — de tantos, apesar de obras excelsas e acolhidas calorosamente pelos ouvintes, Carrapatoso e Servenière, em criações recentes, recebem também generosa atenção. Importa considerar que o público está ávido para receber o passado obliterado por mentes ou o presente, que também tem de ser apresentado amorosamente. Estudar o novo deveria sempre, sine qua non, estar sob a égide da interpretação a mais fidedigna. Trabalhar a obra contemporânea com o desiderato único de mostrá-la ao público com a mesma emoção das composições sedimentadas. Tenho restrições ao fato de tantas criações hodiernas serem apresentadas como uma incumbência, quase que uma concessão do intérprete. Essa atitude fragiliza a comparação com o repertório tradicional, impõe-lhe o rótulo do capitis diminutio, pois não há envolvimento. Entendo que, mesmo se breve, há  necessidade de um tempo de decantação, que restituirá à criação contemporânea as intenções propostas no ato de compor pelo autor.

No dia 10 pela manhã, o encontro com Paulo Guerra,  da RTP – Antena 2, evidenciou a experiência do consagrado entrevistador na condução das perguntas. Entremeando faixas de meu CD, constante do livro publicado pela Universidade de Coimbra, Paulo Guerra não deixou de me “provocar” quanto a essa dedicação à música portuguesa, que data de 1954. Nunca é demais salientar o descaso de alguns pelo repertório musical de Portugal e louvar aqueles que, heroicamente, lutam para a sua ascensão definitiva nos programas de concertos em terras lusíadas. Quando as sociedades de concerto “oferecem” ao público mínima parcela desse repertório, fazem-no por motivos não decididamente claros. Quanto aos pianistas, ainda há fundamental produção portuguesa que continua ignota. Até quando? O mesmo não ocorre no Brasil com a criação qualitativa submersa? A entrevista na Antena2 teve grande repercussão em todo o território português. Em Évora (11) e Lagos (13), após os recitais, ouvintes atentos externaram suas opiniões.

Dessas apresentações escreverei no próximo post, assim como das outras que se seguirão.

Livro e Recital

O tempo é, também ele, um
arquitecto. E um arquitecto
que não se engana.
Siza Vieira

Deu-se, neste último dia 3 de Novembro, o lançamento de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” pela Imprensa da Universidade de Coimbra. À mesa da apresentação estiveram os ilustres Professores Doutores Delfim Ferreira Leão ― Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra―, João Gouveia Monteiro,  os Doutores Ana Alcoforado ― Diretora do Museu Machado de Castro, local do evento ― e César Nogueira.

Às competentes, sábias, mas generosas palavras dos senhores doutores, seguiu-se meu pronunciamento, quando juntei-me ao coro daqueles que, há décadas, insistem nesse crônico desconhecimento que temos ― Portugal e Brasil ― de nossos repertórios e que tão bem foi colocado no prefácio do livro pelo eminente Prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho. Causa-me surda tristeza verificar o descaso que se perpetua, em terras brasileiras, com a extraordinária música composta em Portugal. Nada, rigorosamente nada ― salvo raríssimas exceções ― se conhece da música erudita composta em Portugal desde período a anteceder o Descobrimento!!! Tenho a mais absoluta convicção de que, se nas principais salas sofisticadas do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, apinhadas de um público acostumado à mesmice, alguém solicitasse o nome de um compositor português, do barroco à contemporaneidade, um constrangimento sem precedentes pairaria no ar. Se o mesmo acontecer no eixo Lisboa-Porto, porventura alguns lembrarão de Villa-Lobos. E é só. Pobreza absoluta, descaso sem limite. Samba e fado cruzam os oceanos: o primeiro, rumo ao hemisfério norte, em suas múltiplas vertentes levando personagens carimbados; o segundo, nostalgicamente perpetrado por portugueses da diáspora residentes nos trópicos, mas com ouvidos tampados à música de concerto portuguesa. Essa é a vergonhosa situação a que chegamos. Se um intérprete afamado, nascido em um dos nossos países, apresentar-se nessas geografias irmãs, será preferencialmente para desfilar seu talento em repertório sacro-santo consagrado nos países abastados, hoje nem tanto.

Esses conceitos cáusticos percorrem mais de um artigo de meu livro. Contudo, a essência essencial que me moveu a aceitar o generoso convite do Prof. Dr. João Gouveia Monteiro, então Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, foi o de documentar a incomensurável admiração que já lá se instalou em minha mente e meu coração, desde a década de 50, pela criação musical em Portugal. A cada ano incorporo ao meu repertório obras magistrais portuguesas. Não me canso de fazê-lo, antes, excita-me mergulhar nessas composições. Todavia, pasmo, assisto à passagem dos anos e ao descer do silêncio — salvo exceções, a fim de que as trevas não sejam absolutas — abatendo-se sobre Carlos Seixas, que nada fica a dever ao seu notável contemporâneo Domenico Scarlatti; Francisco de Lacerda, cujas Trente-six histoires pour amuser les enfants d´un artiste são diamantes do maior quilate; Fernando Lopes-Graça, um dos maiores entre os maiores do século XX. Qual sociedade de concerto no Brasil conhece sua obra? Quanto a Portugal, há heróis aqui radicados  que labutam diariamente nessa difusão pequena, pois sem uma guarida maior do Estado, tocando e gravando esses autores mencionados e outros de grande valor. Mas há necessidade de ultrapassar fronteiras, ombrear esse imenso repertório àquele freqüentado no Exterior. Há que se mudar mentalidades: das associações de concerto, que buscam o lucro através de patrocínios e das assinaturas de abonés afortunados; dos intérpretes, que se submetem sem rubor à lei do mercado; do público em geral, que, se refletir com consciência, perceberá que ficou preso na armadilha do marasmo, dela a não saber ou a não querer libertar-se. Para tanto, as sociedades de concerto trazem nomes consagrados e todo o sistema se empobrece culturalmente.

Após a apresentação do livro, houve recital com apresentação de obras do grande compositor açoriano Francisco de Lacerda, mormente as suas Trente-six histoires… A coletânea de Lacerda teve precioso data show preparado pelo competente Prof.Dr.Pedrosa Cardoso, que cuidadosamente soube destacar todas as frases e palavras do insigne músico inseridas em cada peça programática do riquíssimo caderno. A completar o recital, tivemos as composições de dois notáveis autores, que prestaram tributos ao músico açoriano: Eurico Carrapatoso e François Servenière. O numeroso público saudou com raro entusiasmo o repertório apresentado.

A tournée prossegue, e os posts estarão a surgir naturalmente nessa caminhada artística movida pelo ato amoroso.