Eurico Carrapatoso e François Servenière

Heureuses dans la peur et dans leur solitude…
Francisco de Lacerda (Epígrafe de Tourterelles – 12ª peça das 36 Histoires…)

Sem norte, sem estrela-guia,
levado pela ventania,
o leve pombo-torcaz
bico azul e peito verde,
na tempestade se perde.
Violeta Figueiredo (O Pombo-torcaz do livro Fala Bicho)

Não poucas vezes abordei a interação que determinados intérpretes têm com os compositores. Obras que jamais seriam pensadas, mas que só caberia ao criador fazê-las vivas e sonoras, surgem do diálogo intérprete-compositor. De um autor competente surgirá preferencialmente a composição competente.  Ao intérprete, se for o caso, tocá-la, tornando-se partícipe de uma fase do resultado. Menciono novamente o excelente Aurelio de la Vega. Após ter eu estreado Homenagem, em 1987, e de ter a obra sido apresentada pelo mundo, da América ao Extremo-Oriente, por outros intérpretes, enviava-me Aurelio programas com dizeres alusivos ao nosso amálgama. Motivo de alegria para o pianista.

Ao pensar na obra mestra para a apresentação deste ano, lembrei-me de projetos anteriores, quando agreguei compositores em torno de um nome fulcral. Comuniquei intenções a François Servenière, da França, e Eurico Carrapatoso, de Portugal, que admiram convictamente a produção de Francisco de Lacerda (1869-1934). Contudo, mostrava a eles que suas  criações deveriam estar, de preferência, no espírito das Trente-Six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do insigne mestre açoriano. Não poderia supor que minha ideia mais aproximada pudesse estar tão distante das extraordinárias composições recebidas. Quando o talento, o métier e a criatividade imperam, resultados necessariamente são de alta qualidade. Obras rigorosamente surpreendentes chegaram às minhas mãos.

François Servenière, no frontispício das Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur, observa aos 12 de Maio último: “Desde meu encontro com o pianista brasileiro José Eduardo Martins, via web, em circunstâncias descritas a partir de meu trabalho crítico  sobre a sua discografia internacional – Uma reflexão sobre a discografia do pianista brasileiro José Eduardo Martins -, uma grande amizade nasceu entre nós e materializou-se através de imponente correspondência (circa de 300 páginas até o presente!!!), onde escrevemos livremente e sem barreiras… sobretudo sobre música, assunto inesgotável. Ratificada, através de uma sua encomenda de obra para piano em homenagem ao compositor português Francisco de Lacerda e à sua magnífica criação mundialmente conhecida, Trente- six histoires pour amuser les enfants d’un artiste. Relacionava-se a uma série de recitais em Portugal para Novembro de 2011, oportunidade em que minha peça seria apresentada em primeira audição ao lado daquela obra prima, de Danças de Debussy e de outra obra encomendada a Eurico Carrapatoso, compositor português pelo qual tenho a maior admiração.

A composição encomendada pelo pianista coincidiu com período maravilhoso… e esgotante, pela presença de uma criança de poucos meses em casa, pois Tom tem apenas 16, quando os únicos momentos de descontração são aqueles em que dorme com os punhos fechados. Oportunidade propícia para me associar à homenagem a Francisco de Lacerda e a essa realidade atual de compor músicas para fazer dormir as crianças (não apenas aquelas do compositor), sempre nesse focar o título célebre do músico originário dos Açores que não pode deixar de entusiasmar nesse universo específico para piano, pois conteúdo e títulos das criações lacerdianas são absolutamente geniais”.

O tríptico de Servenière está constituído de Nocturne, Aria e Berceuse. A primeira apreende conteúdos originários do jazz e metamorfoseados no estilo tão original desse notável compositor francês. Entre os vários segmentos que integram a peça, uma seção contrastante intermediária, leggiero e danzante, não estaria a fazer uma uma criativa alusão ao cake-walk tão caro a Debussy quando este visita o universo infantil? Aria (dolce e romantico) apresenta tema cativante sustentado por acordes, e a ter na síncopa e no contratempo elementos que tornam o todo encantador. Na Berceuse, Servenière, antes de apresentá-la, expõe acordes recorrentes e já encontráveis na introdução do Nocturne.

No dia seguinte ao meu recital Lopes-Graça em Tomar, em Maio de 2010, houve um almoço de confraternização em casa do Professor António de Souza, da Canto Firme, Escola de Música padrão. A certa altura, Eurico Carrapatoso, que estivera presente à apresentação, ergue uma taça, a me prometer uma obra para este ano. Passou-se o tempo e, ao fixar o repertório de Lacerda, entrei em contato com o compositor, dizendo-lhe das intenções da homenagem. Da mente criativa de Carrapatoso surgiram as Six Histoires d’Enfants pour amuser un Artiste, baseadas em poemas de Violeta Figueiredo (Fala Bicho. Lisboa, Caminho). O compositor soube captar o conteúdo delicioso das poesias sutis e lúdicas da autora. O raposo, O fax do papagaio, D. abutre e o corvo, pombo- torcaz, O que faz a minhoca e O crocodilo foram as poesias escolhidas. Pede-me o compositor que as leia antes de cada peça. Consegue Carrapatoso criar seis pequenas jóias dedicadas ao universo lúdico. Humor, nostalgia, situações hilariantes estão presentes ao longo da coletânea impecavelmente bem escrita. Em pombo-torcaz, o primeiro segmento tem a descontraída frase “o pianista deve interpretar essa peça como se sentisse no lombo de um dromedário, com um turbante imaginário”. Logo após, uma “dança do ventre da pomba odalisca” em crescendo feérico levará finalmente ao retorno do segmento inicial - com certas modificações -, o jocoso passeio no lombo do dromedário. Ao leitor, transcrevo o inefável O que faz a minhoca, que, em sua simplicidade, atinge o transcendental.

Sem esforço e sem guerra,
minhoca de anéis suaves
faz na terra o que no céu
fazem as aves:
abre espirais incompletas
para todo o sempre secretas.

François Servenière e Eurico Carrapatoso, em França e Portugal,  integram seleto grupo de  compositores que se desviaram das múltiplas tendências atuais que, à la manière de uma Babel, degladiam-se em debates ideológicos, estruturais, tecnológicos, eletroacústicos e tantos outros. Se escreveram outrora obras pertencentes a procedimentos “hodiernos”, encontraram  caminhos que os levam à renovação, sem perder contudo o senso da traditio. Para o intérprete, são momentos mágicos conviver com repertório tão extraordinariamente temático. Francisco de Lacerda e os dois ilustres compositores que o homenageiam constituem o amálgama perfeito, numa belíssima junção que seduz indelevelmente o público que ouve essas composições tão especiais.

On the tributes to Francisco de Lacerda composed by Françoise Servenière and Eurico Carrapatoso. I will premiere both pieces, written in the playful mood of Lacerda’s work, at the recital on November 3 in Coimbra.