Livro e Recital
O tempo é, também ele, um
arquitecto. E um arquitecto
que não se engana.
Siza Vieira
Deu-se, neste último dia 3 de Novembro, o lançamento de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” pela Imprensa da Universidade de Coimbra. À mesa da apresentação estiveram os ilustres Professores Doutores Delfim Ferreira Leão ― Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra―, João Gouveia Monteiro, os Doutores Ana Alcoforado ― Diretora do Museu Machado de Castro, local do evento ― e César Nogueira.
Às competentes, sábias, mas generosas palavras dos senhores doutores, seguiu-se meu pronunciamento, quando juntei-me ao coro daqueles que, há décadas, insistem nesse crônico desconhecimento que temos ― Portugal e Brasil ― de nossos repertórios e que tão bem foi colocado no prefácio do livro pelo eminente Prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho. Causa-me surda tristeza verificar o descaso que se perpetua, em terras brasileiras, com a extraordinária música composta em Portugal. Nada, rigorosamente nada ― salvo raríssimas exceções ― se conhece da música erudita composta em Portugal desde período a anteceder o Descobrimento!!! Tenho a mais absoluta convicção de que, se nas principais salas sofisticadas do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, apinhadas de um público acostumado à mesmice, alguém solicitasse o nome de um compositor português, do barroco à contemporaneidade, um constrangimento sem precedentes pairaria no ar. Se o mesmo acontecer no eixo Lisboa-Porto, porventura alguns lembrarão de Villa-Lobos. E é só. Pobreza absoluta, descaso sem limite. Samba e fado cruzam os oceanos: o primeiro, rumo ao hemisfério norte, em suas múltiplas vertentes levando personagens carimbados; o segundo, nostalgicamente perpetrado por portugueses da diáspora residentes nos trópicos, mas com ouvidos tampados à música de concerto portuguesa. Essa é a vergonhosa situação a que chegamos. Se um intérprete afamado, nascido em um dos nossos países, apresentar-se nessas geografias irmãs, será preferencialmente para desfilar seu talento em repertório sacro-santo consagrado nos países abastados, hoje nem tanto.
Esses conceitos cáusticos percorrem mais de um artigo de meu livro. Contudo, a essência essencial que me moveu a aceitar o generoso convite do Prof. Dr. João Gouveia Monteiro, então Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, foi o de documentar a incomensurável admiração que já lá se instalou em minha mente e meu coração, desde a década de 50, pela criação musical em Portugal. A cada ano incorporo ao meu repertório obras magistrais portuguesas. Não me canso de fazê-lo, antes, excita-me mergulhar nessas composições. Todavia, pasmo, assisto à passagem dos anos e ao descer do silêncio — salvo exceções, a fim de que as trevas não sejam absolutas — abatendo-se sobre Carlos Seixas, que nada fica a dever ao seu notável contemporâneo Domenico Scarlatti; Francisco de Lacerda, cujas Trente-six histoires pour amuser les enfants d´un artiste são diamantes do maior quilate; Fernando Lopes-Graça, um dos maiores entre os maiores do século XX. Qual sociedade de concerto no Brasil conhece sua obra? Quanto a Portugal, há heróis aqui radicados que labutam diariamente nessa difusão pequena, pois sem uma guarida maior do Estado, tocando e gravando esses autores mencionados e outros de grande valor. Mas há necessidade de ultrapassar fronteiras, ombrear esse imenso repertório àquele freqüentado no Exterior. Há que se mudar mentalidades: das associações de concerto, que buscam o lucro através de patrocínios e das assinaturas de abonés afortunados; dos intérpretes, que se submetem sem rubor à lei do mercado; do público em geral, que, se refletir com consciência, perceberá que ficou preso na armadilha do marasmo, dela a não saber ou a não querer libertar-se. Para tanto, as sociedades de concerto trazem nomes consagrados e todo o sistema se empobrece culturalmente.
Após a apresentação do livro, houve recital com apresentação de obras do grande compositor açoriano Francisco de Lacerda, mormente as suas Trente-six histoires… A coletânea de Lacerda teve precioso data show preparado pelo competente Prof.Dr.Pedrosa Cardoso, que cuidadosamente soube destacar todas as frases e palavras do insigne músico inseridas em cada peça programática do riquíssimo caderno. A completar o recital, tivemos as composições de dois notáveis autores, que prestaram tributos ao músico açoriano: Eurico Carrapatoso e François Servenière. O numeroso público saudou com raro entusiasmo o repertório apresentado.
A tournée prossegue, e os posts estarão a surgir naturalmente nessa caminhada artística movida pelo ato amoroso.