Texto Impecável de Mário Vieira de Carvalho
Confesso-lhe com inteira sinceridade que prefiro,
do ponto de vista da comunicação artística,
deslocar-me com o Coro da Academia de Amadores de Música
à mais esquecida vila alentejana ou beirã,
ou à mais popular (e não alienada)
colectividade filarmónica-recreativa da Outra Banda,
a receber os aplausos medidos e convencionais
que na realidade se digna, dispensar à minha música
os frequentadores habituais das salas de concerto da capital.
(Entrevista concedida a Mário Vieira de Carvalho por FLG em Fevereiro/Março de 1974)
Será em Junho o lançamento em Portugal do álbum a conter dois CDs com obras essenciais do grande compositor português do século XX, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Gravei-as em 2010 na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica, a ter como engenheiro de som o excelente Johan Kennivé. Foi a partir de Novembro último que houve o vivo interesse do prestigioso selo PortugalSom pelo lançamento das quatro composições registradas em solo belga. Confiaram ao Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho, o texto do encarte. O ilustre musicólogo, grande conhecedor da obra e da trajetória de Lopes-Graça, privou da amizade do músico e pensador e é autor de livros referenciais sobre o compositor nascido em Tomar (O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça, Portugal, IN/CM, 1989 e Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça, Porto, Campo das Letras, 2006). Reiteradas vezes tenho escrito que não estamos diante de um grande compositor português, mas sim frente a um dos maiores músicos do século XX em termos mundiais. Compositor, regente, pianista e pensador, a obra de Lopes-Graça tem a qualidade excelsa proporcionada a poucos. Lamentável, para não dizer vergonhoso, é o desconhecimento que dele se tem no Brasil. Urge reparar esse desvio histórico.
Solicitei à PortugalSom e ao Professor Vieira de Carvalho a reprodução do texto em meu blog poucas semanas antes do lançamento. Gentilmente aquiesceram. O leitor é brindado com o estudo de Vieira de Carvalho, concluído em Cascais aos 25 de Março de 2012, verdadeiro debruçamento sobre as obras constantes nos CDs Lopes-Graça.
Fernando Lopes-Graça (1904-1994)
Obras para piano
“Este duplo CD de música para piano de Fernando Lopes-Graça é resultado duma intensa atividade de investigação do intérprete, José Eduardo Martins, cuja dedicação e entrega ao repertório de autores portugueses e à sua divulgação sistemática, nomeadamente através de gravações exemplares, tanto na substância musical como na qualidade fonográfica, dificilmente tem competidores, mesmo entre pianistas residentes em Portugal.
O investimento na pesquisa e a paixão com que se dedica à música que interpreta explicam um dos maiores motivos de interesse deste CD duplo, que é a recuperação do original para piano do Canto de Amor e de Morte, uma versão que o compositor deu por ‘inutilizada’. Trata-se de uma peça-chave na obra de Lopes-Graça, composta em 1961 após uma grave crise existencial que quase colocou o compositor à beira do suicídio, e que representa um momento de viragem na sua linguagem musical – acentuando o pendor para um ‘expressionismo dramático de carácter mais ou menos atual’ (palavras do compositor) que nela se manifestava em estado latente. Essa viragem traduz-se no extremar do princípio da variação evolvente ou amplificadora (entwickelnde Variation ou evolving variation) a partir das figurações elementares melódico-harmónicas e rítmicas. A dissonância (nomeadamente, intervalos de segunda e sétima obsessivos) está sempre presente e não tem resolução: é a dissonância entre o autor e uma realidade social e política que lhe é odiosa, que lhe é hostil, que o limita drasticamente nas suas expectativas de realização pessoal e artística, que o oprime como ser humano, que o dilacera na sua esfera mais íntima. É a obra confessional de um homem que se ‘deita ao lado da sua solidão’ (1) – um homem que, proibido pela Ditadura do Estado Novo do exercício da docência (quer nas escolas públicas, quer privadas), perseguido política e economicamente pela sua militância comunista, mas afrontando sempre com intransigência e coragem as adversidades da vida, chegara aos 54 anos confinado a um quarto alugado, pois não tinha meios para arrendar um apartamento próprio. É essa dissonância existencial que emana do gesto global da obra – um gesto expressionista, que vem das profundezas da subjetividade.
Pode presumir-se que Lopes-Graça pensou originalmente o Canto de Amor e de Morte como obra para piano e que só em pleno processo de composição, decerto marcado por uma forte interação com o instrumento, se tenha apercebido de que precisava de ir mais além, alargar os meios instrumentais de modo a tornar a obra mais exequível e mais transparente nas suas componentes estruturais e expressivas. A versão definitiva, apresentada em primeira audição em 1961, para quarteto de arcos e piano, impôs-se então ao compositor e impôs-se ao público e à crítica pelo seu perfeito equilíbrio entre construção e expressão. Que na substância musical cabia uma grande orquestra foi o que ficou demonstrado numa versão ulterior, de 1962. A obra foi-se expandindo, pois, da ideia primeira (piano) para ensemble (quarteto de cordas e piano) e, finalmente, orquestra. José Eduardo Martins, após um paciente e rigoroso trabalho reconstrutivo, convida-nos a percorrer caminho inverso: o caminho da concentração nos meios exclusivamente oferecidos pelo piano. Passamos a dispor, assim, de três versões, e escusado será dizer que José Eduardo Martins nos convence completamente daquela que pode considerar-se, a partir de agora, a versão “original” para piano. Pelos enormes desafios que ela coloca ao intérprete, revive-se na sua execução a ‘luta’ do compositor/pianista com os limites do instrumento. O efeito é o duma redobrada condensação expressiva.
Canto de Amor e de Morte é um título que podia, com propriedade, abranger todas as obras incluídas neste CD duplo. Na verdade, amor e morte são também evocados na impressionante coleção de Músicas Fúnebres para piano, e o gesto de amor – o gesto de amor que esconjura a morte – está ainda latente nas duas obras que completam o CD: Música de piano para as crianças e Cosmorame.
As Músicas Fúnebres, apesar de compostas dispersamente ao longo de dez anos (1981-1991), têm uma monumentalidade comparável à dos Funerais de Liszt. O próprio compositor as reuniu num ciclo, reconhecendo e sublinhando a posteriori a sua unidade. Na verdade, parecem articular-se entre si como as Cinco Estelas Funerárias (para companheiros mortos) para orquestra (1948, 1º audição: 1956), em que Lopes-Graça também chora a perda irreparável de amigos e companheiros. A partilha do mesmo ideário e a fraternidade política, vividas intensamente, e revividas no momento do luto com grande comoção íntima, inspiram todas elas. Esse mesmo fundo político aparece ainda nas outras ‘músicas fúnebres’ do compositor: na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho (1953), peça para piano autónoma (2); no Pranto à memória de Manuela Porto (composto em 1950 e depois incluído nas Oito Bagatelas para piano, 1950); bem como obviamente no Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal, para solistas, coro e orquestra (1979).
Uma análise aprofundada das Músicas Fúnebres deixaria entrever aqueles traços característicos (subjacentes ao gesto expressionista unificador) que as diferenciam entre si, pois remetem para personalidades tão marcadas como os poetas Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira (que inspiraram várias obras vocais de Lopes-Graça, entre elas as canções revolucionárias ou canções heróicas, uma das quais – Jornada - se insinua não só título mas também na substância musical da peça à memória deste último) (3); a escritora e ativista política e dos direitos das mulheres, Maria Lamas, obrigada a exilar-se durante a vigência da Ditadura; o líder da FRELIMO, Movimento de Libertação de Moçambique, Samora Machel, que Lopes-Graça conheceu pessoalmente; Francisco Miguel, o dirigente do Partido Comunista Português que somou maior número de anos de prisão e um dos que mais arriscou a vida em ações de luta contra o Estado Novo; o médico Ernesto Castro e Silva, também ‘amigo e camarada’; Francine Benoît e Louis Saguer, compositores, musicólogos, pedagogos, irmanados com Lopes-Graça tanto na persistente defesa da modernidade estética como na intransigência política; e, finalmente, Michel Giacometti, também amigo e incondicional companheiro de luta de Lopes-Graça, seu colaborador inseparável desde 1960 no projeto de investigação, recuperação, registo fonográfico e estudo exaustivos da música regional ou ‘música rústica’ portuguesa.
De diferente carácter são as peças incluídas no CD 2 deste álbum duplo, embora nelas se divise igualmente o tema do amor e o gesto de esconjurar a morte. Música de Piano para as Crianças (1968-1976) faz parte da apreciável série de obras instrumentais ou corais-instrumentais em que Lopes-Graça dá testemunho do seu amor pelas crianças, dir-se-ia como manifestação do seu amor à vida e de esperança num mundo de paz e solidário. É uma coleção de peças-miniaturas destinadas à iniciação infantil no piano. Os seus títulos alternam, entre a sugestão de imagens (p. ex. Um bocadinho triste, Recordação, Brincadeira, Divagação, Caleidoscópio) e as referências diretas à forma musical ou ao treino pianístico (p. ex. Estudo, Melodia acompanhada, Simples canção, Cânone a duas vozes, Baixo obstinado, Pentatonia, Tocata). Tal como as peças do Álbum do Jovem Pianista (1953-1966), trata-se de verdadeiras preciosidades de invenção musical, com um propósito educativo e formativo, mas que nem por isso deixam de interpelar o ouvinte, convidando-o a uma escuta atenta e interessada.
Em Cosmorame (1963), Lopes-Graça dialoga com os povos de todo o mundo numa suite de 21 peças. O título original em francês, acrescido do subtítulo Grand recueil de pièces pour piano: composés sur des airs de divers pays et consacrés à la fraternté des peuplespar: première partie, previa uma segunda parte, que não chegou a ser composta. Num mundo de conflitos agudizados, que espalhavam em vários continentes a devastação e a morte, Lopes-Graça proclama a fraternidade dos povos através da sua música: ...se eu queria celebrar a fraternidade dos povos na paz, na amizade e na compreensão mútuas – ideal que tenho muito a peito -, porque não haveria de me dirigir aos seus cantos e às suas danças, para com eles compor um ramalhete de pecinhas que os irmanasse no meu pensamento e na minha arte, e isto mediante aquilo que mais os individualiza e, ao mesmo tempo, os aproxima em espírito, e já que de outros poderes não disponho para promover a sua aliança? … não constituirá ao menos um acto de alguma coragem o procurar fazer assumir à arte, à música, na espécie, um gesto de amor, hoje que ela, a música, parece, não direi perdida, mas solipsisticamente encerrada no mágico anel das suas experiências e das suas descobertas, e hoje em que, num mundo de trágico desconcerto, os gestos de amor se tornam tão urgentes? Um gesto de amor, este Cosmorama. Conterá ele a arte que possa exalçar esse gesto? (4).
O propósito do compositor é ainda acentuado pela citação de Telémaco, de Fénelon, inscrito na partitura: Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de toute la terre. Tous les peuples sont frères, et doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang.
Lopes-Graça terminou a obra e escreveu as linhas da sua apresentação acima referidas em plena guerra colonial (deflagrada em 1961), quando soldados portugueses e militantes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique se defrontavam em sangrentos combates. Daí ganhar particular relevância política o facto de, no contexto da obra, Portugal e Moçambique serem colocados em pé de igualdade, como povos fraternos. José Eduardo Martins trabalhou detidamente na análise de Cosmorame, aplicou-se no esforço de decomposição estrutural e decifração dramatúrgica, como se não se conformasse com a designação de pecinhas dada pelo compositor. Na sua interpretação, e assim realizada integralmente, a obra surge-nos como um monumento, um memorial à fraternidade dos povos, sobre o pano de fundo de um mundo onde a guerra e as lutas fratricidas continuam a grassar”.
In June my double album with pieces for piano by the great Portuguese composer Lopes-Graça will be released in Portugal by the label PortugalSom. This week’s post is a transcription of the CD booklet, written by the distinguished musicologist and professor of the University of Coimbra Mario Vieira de Carvalho, who with his usual competence discusses briefly the works contained in the CD.
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1) Hoje deitei-me ao lado da minha solidão – verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções para canto e piano As mãos e os frutos, composto por Lopes-Graça em 1959.
2) Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme da Costa Carvalho, dirigente do Partido Comunista Português, que, à data da composição da obra se encontrava prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde, então sob domínio colonial português) e que chegou a ouvi-la, numa gravação, durante o seu cativeiro.
3) A evocação da mesma “canção heroica”, Jornada, aparece igualmente na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho, mas mais enfatizada.
4) Lopes-Graça, texto para a primeira edição fonográfica de Cosmorame, 1967 (Piano: Georges Bernand), citado em Romeu Pinto da Silva, Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Caminho, 2009, p.196.