Navegando Posts publicados em maio, 2012

Texto Impecável de Mário Vieira de Carvalho

Confesso-lhe com inteira sinceridade que prefiro,
do ponto de vista da comunicação artística,
deslocar-me com o Coro da Academia de Amadores de Música
à mais esquecida vila alentejana ou beirã,
ou à mais popular (e não alienada)
colectividade filarmónica-recreativa da Outra Banda,
a receber os aplausos medidos e convencionais
que na realidade se digna, dispensar à minha música
os frequentadores habituais das salas de concerto da capital.
(Entrevista concedida a Mário Vieira de Carvalho por FLG em Fevereiro/Março de 1974)

Será em Junho o lançamento em Portugal do álbum a conter dois CDs com obras essenciais do grande compositor português do século XX, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Gravei-as em 2010 na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, na Bélgica, a ter como engenheiro de som o excelente Johan Kennivé. Foi a partir de Novembro último que houve o vivo interesse do prestigioso selo PortugalSom pelo lançamento das quatro composições registradas em solo belga. Confiaram ao Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, Mário Vieira de Carvalho, o texto do encarte. O ilustre musicólogo, grande conhecedor da obra e da trajetória de Lopes-Graça, privou da amizade do músico e pensador e é autor de livros referenciais sobre o compositor nascido em Tomar (O Essencial sobre Fernando Lopes-Graça, Portugal, IN/CM, 1989 e Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça, Porto, Campo das Letras, 2006). Reiteradas vezes tenho escrito que não estamos diante de um grande compositor português, mas sim frente a um dos maiores músicos do século XX em termos mundiais. Compositor, regente, pianista e pensador, a obra de Lopes-Graça tem a qualidade excelsa proporcionada a poucos. Lamentável, para não dizer vergonhoso, é o desconhecimento que dele se tem no Brasil. Urge reparar esse desvio histórico.

Solicitei à PortugalSom e ao Professor Vieira de Carvalho a reprodução do texto em meu blog poucas semanas antes do lançamento. Gentilmente aquiesceram. O leitor é brindado com o estudo de Vieira de Carvalho, concluído em Cascais aos 25 de Março de 2012, verdadeiro debruçamento sobre as obras constantes nos CDs Lopes-Graça.

Fernando Lopes-Graça (1904-1994)
Obras para piano

“Este duplo CD de música para piano de Fernando Lopes-Graça é resultado duma intensa atividade de investigação do intérprete, José Eduardo Martins, cuja dedicação e entrega ao repertório de autores portugueses e à sua divulgação sistemática, nomeadamente através de gravações exemplares, tanto na substância musical como na qualidade fonográfica, dificilmente tem competidores, mesmo entre pianistas residentes em Portugal.

O investimento na pesquisa e a paixão com que se dedica à música que interpreta explicam um dos maiores motivos de interesse deste CD duplo, que é a recuperação do original para piano do Canto de Amor e de Morte, uma versão que o compositor deu por ‘inutilizada’. Trata-se de uma peça-chave na obra de Lopes-Graça, composta em 1961 após uma grave crise existencial que quase colocou o compositor à beira do suicídio, e que representa um momento de viragem na sua linguagem musical – acentuando o pendor  para um ‘expressionismo dramático de carácter mais ou menos atual’ (palavras do compositor) que nela se manifestava em estado latente. Essa viragem traduz-se no extremar do princípio da variação evolvente ou amplificadora (entwickelnde Variation ou evolving variation) a partir das figurações elementares melódico-harmónicas e rítmicas. A dissonância (nomeadamente, intervalos de segunda e sétima obsessivos) está sempre presente e não tem resolução: é a dissonância entre o autor e uma realidade social e política que lhe é odiosa, que lhe é hostil, que o limita drasticamente nas suas expectativas de realização pessoal e artística, que o oprime como ser humano, que o dilacera na sua esfera mais íntima. É a obra confessional de um homem que se ‘deita ao lado da sua solidão’ (1) – um homem que, proibido pela Ditadura do Estado Novo do exercício da docência (quer nas escolas públicas, quer privadas), perseguido política e economicamente pela sua militância comunista, mas afrontando sempre com intransigência e coragem as adversidades da vida, chegara aos 54 anos confinado a um quarto alugado, pois não tinha meios para arrendar um apartamento próprio. É essa dissonância existencial que emana do gesto global da obra – um gesto expressionista, que vem das profundezas da subjetividade.

Pode presumir-se que Lopes-Graça pensou originalmente o Canto de Amor e de Morte como obra para piano e que só em pleno processo de composição, decerto marcado por uma forte interação com o instrumento, se tenha apercebido de que precisava de ir mais além, alargar os meios instrumentais de modo a tornar a obra mais exequível e mais transparente nas suas componentes estruturais e expressivas. A versão definitiva, apresentada em primeira audição em 1961, para quarteto de arcos e piano, impôs-se então ao compositor e impôs-se ao público e à crítica pelo seu perfeito equilíbrio entre construção e expressão. Que na substância musical cabia uma grande orquestra foi o que ficou demonstrado numa versão ulterior, de 1962. A obra foi-se expandindo, pois, da ideia primeira (piano) para ensemble (quarteto de cordas e piano) e, finalmente, orquestra. José Eduardo Martins, após um paciente e rigoroso trabalho reconstrutivo, convida-nos a percorrer caminho inverso: o caminho da concentração nos meios exclusivamente oferecidos pelo piano. Passamos a dispor, assim, de três versões, e escusado será dizer que José Eduardo Martins nos convence completamente daquela que pode considerar-se, a partir de agora, a versão “original” para piano. Pelos enormes desafios que ela coloca ao intérprete, revive-se na sua execução a ‘luta’ do compositor/pianista com os limites do instrumento. O efeito é o duma redobrada condensação expressiva.

Canto de Amor e de Morte é um título que podia, com propriedade, abranger todas as obras incluídas neste CD duplo. Na verdade, amor e morte são também evocados na impressionante coleção de Músicas Fúnebres para piano, e o gesto de amor – o gesto de amor que esconjura a morte – está ainda latente nas duas obras que completam o CD: Música de piano para as crianças e Cosmorame.

As Músicas Fúnebres, apesar de compostas dispersamente ao longo de dez anos (1981-1991), têm uma monumentalidade comparável à dos Funerais de Liszt. O próprio compositor as reuniu num ciclo, reconhecendo e sublinhando a posteriori a sua unidade. Na verdade, parecem articular-se entre si como as Cinco Estelas Funerárias (para companheiros mortos) para orquestra (1948, 1º audição: 1956), em que Lopes-Graça também chora a perda irreparável de amigos e companheiros. A partilha do mesmo ideário e a fraternidade política, vividas intensamente, e revividas no momento do luto com grande comoção íntima, inspiram todas elas. Esse mesmo fundo político aparece ainda nas outras ‘músicas fúnebres’ do compositor: na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho (1953), peça para piano autónoma (2); no Pranto à memória de Manuela Porto (composto em 1950 e depois incluído nas Oito Bagatelas para piano, 1950); bem como obviamente no Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal, para solistas, coro e orquestra (1979).

Uma análise aprofundada das Músicas Fúnebres deixaria entrever aqueles traços característicos (subjacentes ao gesto expressionista unificador) que as diferenciam entre si, pois remetem para personalidades tão marcadas como os poetas Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira (que inspiraram várias obras vocais de Lopes-Graça, entre elas as canções revolucionárias ou canções heróicas, uma das quais – Jornada - se insinua não só título mas também na substância musical da peça à memória deste último) (3); a escritora e ativista política e dos direitos das mulheres, Maria Lamas, obrigada a exilar-se durante a vigência da Ditadura; o líder da FRELIMO, Movimento de Libertação de Moçambique, Samora Machel, que Lopes-Graça conheceu pessoalmente; Francisco Miguel, o dirigente do Partido Comunista Português que somou maior número de anos de prisão e um dos que mais arriscou a vida em ações de luta contra o Estado Novo; o médico Ernesto Castro e Silva, também ‘amigo e camarada’; Francine Benoît e Louis Saguer, compositores, musicólogos, pedagogos, irmanados com Lopes-Graça tanto na persistente defesa da modernidade estética como na intransigência política; e, finalmente, Michel Giacometti, também amigo e incondicional  companheiro de luta de Lopes-Graça, seu colaborador inseparável desde 1960 no projeto de investigação, recuperação, registo fonográfico e estudo exaustivos da música regional ou ‘música rústica’ portuguesa.

De diferente carácter são as peças incluídas no CD 2 deste álbum duplo, embora nelas se divise igualmente o tema do amor e o gesto de esconjurar a morte. Música de Piano para as Crianças (1968-1976) faz parte da apreciável série de obras instrumentais ou corais-instrumentais em que Lopes-Graça dá testemunho do seu amor pelas crianças, dir-se-ia como manifestação do seu amor à vida e de esperança num mundo de paz e solidário. É uma coleção de peças-miniaturas destinadas à iniciação infantil no piano. Os seus títulos alternam, entre a sugestão de imagens (p. ex. Um bocadinho triste, Recordação, Brincadeira, Divagação, Caleidoscópio) e as referências diretas à forma musical ou ao treino pianístico (p. ex. Estudo, Melodia acompanhada, Simples canção, Cânone a duas vozes, Baixo obstinado, Pentatonia, Tocata). Tal como as peças do Álbum do Jovem Pianista (1953-1966), trata-se de verdadeiras preciosidades de invenção musical, com um propósito educativo e formativo, mas que nem por isso deixam de interpelar o ouvinte, convidando-o a uma escuta atenta e interessada.

Em Cosmorame (1963), Lopes-Graça dialoga com os povos de todo o mundo numa suite de 21 peças. O título original em francês, acrescido do subtítulo Grand recueil de pièces pour piano: composés sur des airs de divers pays et consacrés à la fraternté des peuplespar: première partie, previa uma segunda parte, que não chegou a ser composta. Num mundo de conflitos agudizados, que espalhavam em vários continentes a devastação e a morte, Lopes-Graça proclama a fraternidade dos povos através da sua música: ...se eu queria celebrar a fraternidade dos povos na paz, na amizade e na compreensão mútuas – ideal que tenho muito a peito -, porque não haveria de me dirigir aos seus cantos e às suas danças, para com eles compor um ramalhete de pecinhas que os irmanasse no meu pensamento e na minha arte, e isto mediante aquilo que mais os individualiza e, ao mesmo tempo, os aproxima em espírito, e já que de outros poderes não disponho para promover a sua aliança? … não constituirá ao menos um acto de alguma coragem o procurar fazer assumir à arte, à música, na espécie, um gesto de amor, hoje que ela, a música, parece, não direi perdida, mas solipsisticamente encerrada no mágico anel das suas experiências e das suas descobertas, e hoje em que, num mundo de trágico desconcerto, os gestos de amor se tornam tão urgentes? Um gesto de amor, este Cosmorama. Conterá ele a arte que possa exalçar esse gesto? (4).

O propósito do compositor é ainda acentuado pela citação de Telémaco, de Fénelon, inscrito na partitura: Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de toute la terre. Tous les peuples sont frères, et doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang.

Lopes-Graça terminou a obra e escreveu as linhas da sua apresentação acima referidas em plena guerra colonial (deflagrada em 1961), quando soldados portugueses e militantes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique se defrontavam em sangrentos combates. Daí ganhar particular relevância política o facto de, no contexto da obra, Portugal e Moçambique serem colocados em pé de igualdade, como povos fraternos. José Eduardo Martins trabalhou detidamente na análise de Cosmorame, aplicou-se no esforço de decomposição estrutural e decifração dramatúrgica, como se não se conformasse com a designação de pecinhas dada pelo compositor. Na sua interpretação, e assim realizada integralmente, a obra surge-nos como um monumento, um memorial à fraternidade dos povos, sobre o pano de fundo de um mundo onde a guerra e as lutas fratricidas continuam a grassar”.

In June my double album with pieces for piano by the great Portuguese composer Lopes-Graça will be released in Portugal by the label PortugalSom. This week’s post is a transcription of the CD booklet, written by the distinguished musicologist and professor of the University of Coimbra Mario Vieira de Carvalho, who with his usual competence discusses briefly the works contained in the CD.

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1) Hoje deitei-me ao lado da minha solidão – verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções para canto e piano As mãos e os frutos, composto por Lopes-Graça em 1959.
2) Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme da Costa Carvalho, dirigente do Partido Comunista Português, que, à data da composição da obra se encontrava prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde, então sob domínio colonial português) e que chegou a ouvi-la, numa gravação, durante o seu cativeiro.
3) A evocação da mesma “canção heroica”, Jornada, aparece igualmente na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho, mas mais enfatizada.
4) Lopes-Graça, texto para a primeira edição fonográfica de Cosmorame, 1967 (Piano: Georges Bernand), citado em Romeu Pinto da Silva, Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Caminho, 2009, p.196.

Lançamento de Álbum de CDs Lopes-Graça

Viver interessa mais do que ter vivido;
e a vida só é vida real quando sentimos fora de nós
alguma coisa de diferente.
Agostinho da Silva

Nunca fui afeito à matemática e as dificuldades durante os estudos básicos e secundários na matéria foram quase instransponíveis. Contudo, sei realizar as operações elementares sem uso de quaisquer aparelhos ou tabelas. Os números vão sendo adicionados ou subtraídos à maneira de degraus, multiplicados ou divididos progressiva ou regressivamente. E é o que sei. Na somatória chego à 46ª viagem a Portugal, nunca como turista, mas sempre em atividade musical. Desde os primórdios.

A crise econômica avassaladora que se abate sobre a Europa tem, em alguns países, situações dramáticas, como Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Incúria administrativa dos governos, relações espúrias com as empresas, são todos ingredientes que deram substância  a essa palavra execrável, corrupção. Os menos favorecidos, desde a antiguidade, sofrem o peso desse Leviatã que sempre sairá ileso das crises, pois mecanismos o Monstro tem, e “qualitativos”. Nada a fazer.

A presente digressão terá vários ingredientes inusitados. Primeiramente, o lançamento do álbum de dois CDs contendo composições inéditas para piano do grande músico português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Gravei-as em Mullem, na Bélgica Flamenga, em 2010. Será tema do próximo post.  Haverá em meus recitais a apresentação em primeira audição de obras de Eurico Carrapatoso e de João Francisco do Nascimento. Igualmente delas trataremos no momento oportuno. Como fator inusitado, Regina Normanha Martins se apresentará pela primeira vez em Portugal. Minha mulher interpretará obras – nessa comemoração do ano Portugal-Brasil, mas fora de qualquer amparo ou divulgação oficial – de Frederico de Freitas (1902-1980), Fructuoso Vianna, Villa-Lobos e Francisco Mignone. Salientemos duas em especial, o delicioso  Livro de Maria Frederica, do compositor português, e a magistral Sonata nº 1, de Francisco Mignone. O Livro… de Frederico de Freitas foi citado pela dileta amiga Idalete Giga quando da tournée de Novembro último, durante o percurso Lisboa-Évora. Em 1982, Humberto D’Ávila, ilustre crítico musical do “Diário de Notícias”, ofereceu-me em Lisboa um exemplar da obra. Estou a me lembrar que estudei o encantador e tão bem escrito Livro de Maria Frederica destinado ao universo infantil. Tentei introduzi-lo nos cursos de piano complementar na USP. Não tive guarida e passei a ensiná-lo isoladamente a muitos alunos que frequentaram minha classe de piano. Imediatamente após as palavras de Idalete pensei em Regina, que durante anos transmitiu a obra a seus alunos da FMU. Portanto, está sendo um prazer estético para Regina apresentar o Livro… em recital e, de acordo com e-mails recebidos de Portugal, amantes da música aguardam ansiosamente por essa nova leitura.

Se cidades serão visitadas para os recitais, considere-se que terei a oportunidade de realizar master classes na Universidade de Évora, a privilegiar apenas o repertório português, do barroco à contemporaneidade. Um agradável desafio em terras portuguesas, um prazer inaudito de poder “aconselhar” jovens pianistas em seu repertório pátrio que eu tanto admiro. Reiteradas vezes nesse espaço referi-me à qualidade absoluta de alguns compositores de Portugal que, por motivos tantos, não são devidamente divulgados. Sim, há intérpretes excelentes em terras portuguesas que se têm dedicado ao estudo e à execução desse manancial. Todavia, alguns igualmente qualitativos, mas com ampla divulgação no Exterior, basicamente ignoram o que foi escrito em Portugal. É uma triste verdade. Em termos brasileiros, o conhecimento do repertório musical português é basicamente nulo. Não diria triste realidade, mas vergonhosa situação.

O contínuo retorno a Portugal, independente de qualquer ação de Governo ou Instituto de Fomento, dá-me a liberdade das escolhas e o descompromisso com a redação de enfadonhos relatórios a serem analisados e arquivados para sempre. Um ex-aluno me perguntou se sofro alguma pressão quanto à montagem de repertórios ou à preparação de palestras ou conferências. A resposta foi negativa. Todas as obras dos dois CDs a serem lançados foram escolhidas pelo intérprete e permaneciam inéditas fonograficamente, exceção à Cosmorama, de Lopes-Graça, gravada em 1967 pelo bom pianista suíço Georges Bernand, mas cuja conservação deteriorou-se com o tempo. Quanto às palestras, têm elas os temas a condizer com a qualidade do público, o interesse por determinado período histórico ou compositor em particular.

Toda viagem tem ingredientes da expectativa, da surpresa, do desvelamento, da concretude. Creio que o importante é termos a certeza de que a preparação atendeu àquilo que esperam de nossas performances. Nesse quesito, apenas o rigor é salvaguarda. Atravessemos confiantes o Atlântico.

On my concert-tour in Portugal in May-June 2012, the release of my double album with works by Fernando Lopes-Graça by PortugalSom, master classes in Evora and my wife’s Regina Normanha’s first recital in Portugal, presenting pieces written by Portuguese and Brazilian composers, since 2012 is the year of Brasil in Portugal.

 

 

 

Entrevistas Antigas com Serge Nigg

Em arte, o erro afigura-se tão fecundo como os acertos.
É aos ziguezagues que a arte avança.
O que num momento se supunha erro
vem a revelar-se com frequência um manancial de virtualidades.
João José Cochofel

De meu grande amigo António Ferreirinho recebi  em Novembro último quando de tournée por terras lusíadas, Opiniões com data, de João José Cochofel (1919-1982). O conimbricense Cochofel foi poeta, ensaísta, crítico literário e musical muito respeitado em Portugal. Integrou o movimento neorrealista português e foi ativo organizador e colaborador de revistas e periódicos importantes para a vida cultural de Portugal.

Opiniões com data, que integra as obras completas de Cochofel,  estende-se de 1939 a 1954. É possível seguir o desenrolar intelectual do autor no conjunto de seus artigos publicados em Portugal. Mais interessante se torna ao compreendermos a necessidade de Cochofel de interagir bem posteriormente ao preservar os textos originais, mas a fazer comentários analisando a feitura dos escritos. Ferreirinho sabia de meu interesse por tudo o que se refere ao notável compositor e pensador Fernando Lopes-Graça (1906-1994), e João José Cochofel não apenas foi amigo do grande músico,  como autor dos poemas das Cinco canções de “Os dias Íntimos” para canto e piano (1950-1966) do compositor nascido em Tomar.

Estando a ler Opiniões com data homeopaticamente entre tantas outras leituras, torna-se revelador o pensamento inteligente, arguto e profético do autor. Certamente João José Cochofel será citado em posts futuros pelos conceitos que emitiu, sempre com raro interesse. Por ora fica a surpresa ao me deparar com interessante entrevista que Cochofel realizou em Paris em 1951 com o ilustre compositor Serge Nigg (1924-2008), que foi tema de um de meus posts do ano passado (vide Serge Nigg “Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro“, 04/03/2011). O jovem compositor, que teria escrito pela primeira vez em França, no ano de 1946, uma obra onde utilizou a técnica dodecafônica (Variations pour piano et 10 instruments), logo se tornou celebridade que não passaria desapercebida para Fernando Lopes-Graça, que o entrevistou em 1947 (Visita aos Músicos Franceses, Seara Nova, 1948), no período em que Serge Nigg surgia como um estímulo para a vanguarda musical em detrimento da música de ampla audiência, isso logo após a Segunda Grande Guerra. A uma das perguntas de Lopes-Graça sobre o possível coadunar dodecafonismo e a tradição musical francesa, Nigg responde: “Certamente. Não há incompatibilidade entre o dodecafonismo e a tradição musical francesa, antes de mais nada porque não se trata de estética quando se fala de dodecafonia, mas sim de técnica de composição, ao passo que, quando se fala de uma tradição musical (o que é muito vago) tem-se em mente sobretudo o apego a certos conceitos estéticos, frequentemente vazios de sentido”. Pois bem, por volta de 1950 Serge Nigg rompe com o “movimento” que apregoava o dodecafonismo em França. João José Cochofel, ao comentar bem tardiamente outra entrevista de Serge Nigg a ele concedida em Paris no ano de 1951, diz: “Em nome da generosa miragem da arte para todos, Nigg consentiu no maior sacrifício que a um artista é dado fazer, o sacrifício das suas tendências profundas, ao renegar o dodecafonismo” e conclui “De qualquer modo, foi Boulez, seu émulo e opositor, quem triunfou e se tornou conhecido”.

Cochofel, ao procurar Serge Nigg, tinha em mente elucidar várias questões, inclusive a da “ruptura” do compositor com a técnica que passava a ter guarida entre os jovens músicos franceses. Escreve que Nigg começava “a suspeitar da irredutibilidade do esoterismo daquela corrente aos seus ideais humanísticos”. Prossegue Cochofel: “E Nigg acaba realmente por abandonar a ortodoxia dodecafônica, levantando grande celeuma nos meios musicais, que fizeram por ignorar a honestidade e a coragem de que deu provas ao procurar novas formas de expressão quando começava a triunfar, e vencendo uma crise inevitavelmente dolorosa de desilusões e renúncias, mas que a sua consciência lhe impunha”. A uma incisiva pergunta do entrevistador sobre a razão de ter abandonado o dodecafonismo, Serge Nigg, aos 27 anos, responde: “Por este não levar a coisa nenhuma, destruindo o caráter nacional, fazendo uma música de receita, igual em todos os países, nivelando tudo. Há tempos assisti a um concerto de jovens compositores sul-americanos, mas em vez de encontrar o Brasil, encontrei música escrita em Viena de Áustria…”. Em 1965, Cochofel observaria que colocou em Opiniões com Data a entrevista concedida em 1951 por Nigg, apesar de asseverar que se tratava de “ideias mais alheias do que minhas”.  João José Cochofel comenta que “a experiência das duas últimas décadas veio mostrar cruelmente que os experimentalismos eram irreprimíveis e que não se pode travar o desenvolvimento natural da arte…”. Contudo, tem consciência de que deve ser combatida a rotina, mesmo em movimento de vanguarda.

As entrevistas pontuais que Fernando Lopes-Graça (1947) e João José Cochofel (1951) fizeram com Serge Nigg, atestando a adesão e a posterior “rejeição” ao dodecafonismo – fatos que ocorreram bem antes dos 30 anos do compositor – seriam, cinco décadas após, durante o longo depoimento mantido com Gérard Denizeau  (1998-2008) e publicado em 2010 na série Témoignages (nº 3), do Observatoire Musical Français da Université Paris Sorbonne, amplamente ratificadas por Serge Nigg. Vem  demonstrar a profunda coerência do ilustre compositor e pensador francês. Esse substancioso depoimento foi o material temático do post acima mencionado.

Seria possível entender que decênios transcorridos, realizações e vicissitudes advindas, assim como a longa maturação do pensar tivessem provocado em Serge Nigg a necessidade de deixar depoimento definitivo já nos estertores da existência. A coerência do compositor difere bem de determinadas autobiografias em que o passado se torna nebuloso ou, mais grave, fantasioso. É a integridade intelectual do depoente que estaria a comprovar a veracidade dos fatos. Apreendida a premissa, o que fica do memorialista íntegro é a condição de autenticidade, o que o tornará partícipe da História.

No extraordinário depoimento, tema do post sobre ele, Serge Nigg considerava que no crepúsculo da vida o músico terá construído seu mundo abstrato, fiel ao que almejou. Confessa ter sofrido “tentações da fantasia que podem permitir derivações” e que a inspiração deve nortear o compositor. Ao afirmar que o caminho de um criador é a lógica inevitável, considera, contudo, que há tributo a pagar, sendo este  a “solidão”. Não estaria a pensar na longa trajetória e naquele rompimento com o dodecafonismo no início dos anos 50? Que houve marginalização, sabe-se. Todavia, a coerência de Nigg, compondo com a maior competência, sem amarras ideológico-musicais e a confiar na “inspiração”, tornaram-no paradigma para tantos nas décadas que se seguiram. Próximo de seu fim existencial faz a autocrítica de seu desligamento do dodecafonismo após o entusiasmo inicial: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação” referindo-se aos compositores barrocos e clássicos, observando que “Schöenberg, no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Afirmaria que, naqueles anos pós-guerra, infortunado o músico que não aderisse às novas tendências. Daí a dimensão incomensurável, com todos os tributos pagos posteriormente, de seu desligamento daquela avassaladora vanguarda, mormente quando estava a ser considerado um expoente da técnica dodecafônica em França. Teriam Lopes-Graça e João José Cochofel entrevistado Nigg não fosse ele referência?

Sob outra égide, Serge Nigg mostra-se avesso à obra aberta, aos modismos, à concessão, à proliferação de jovens compositores: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”. Alérgico à música eletroacústica, exprime: “Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino… Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma coisa que me aterroriza”. Ficaria implícita a ideia de novos caminhos trilhados por Nigg, livres da ortodoxia.

O notável compositor Serge Nigg revisitaria o dodecafonismo, sob outra égide, a partir de 1960, “quando toda aridez, toda sistemática já teriam sido dominadas” segundo Gérard Dénizeau. O autor de obras que se tornaram referenciais tem suas criações executadas por muitos dos mais importantes intérpretes, assim como por orquestras e conjuntos camerísticos vocais de excelência. As entrevistas realizadas nas fronteiras da segunda metade do século XX por dois pensadores fundamentais da música em Portugal apenas ratificam a grandeza de Serge Nigg e sua corajosa coerência, que perduraria através das décadas.

In March 2011 I wrote a post covering the booklet Témoignages – published by the Sorbonne University – of the great French composer Serge Nigg. Now I’ve just read the interviews given by Serge Nigg in 1947 and 1951 to two Portuguese intellectuals: the composer Fernando Lopes-Graça and the poet João José Cochofel. Both interviewed Nigg in two decisive moments of his career. In 1946 Nigg was the first composer in France to write a dodecaphonic work and in 1951 he was already moving away from the twelve-tone technique. Five decades later, the subject would be resumed by Nigg in his Témoignages, where he confirmed his uneasiness with the limitations of the purely abstract technique, proving the consistency of the choices of his youth.