Entrevistas Antigas com Serge Nigg

Em arte, o erro afigura-se tão fecundo como os acertos.
É aos ziguezagues que a arte avança.
O que num momento se supunha erro
vem a revelar-se com frequência um manancial de virtualidades.
João José Cochofel

De meu grande amigo António Ferreirinho recebi  em Novembro último quando de tournée por terras lusíadas, Opiniões com data, de João José Cochofel (1919-1982). O conimbricense Cochofel foi poeta, ensaísta, crítico literário e musical muito respeitado em Portugal. Integrou o movimento neorrealista português e foi ativo organizador e colaborador de revistas e periódicos importantes para a vida cultural de Portugal.

Opiniões com data, que integra as obras completas de Cochofel,  estende-se de 1939 a 1954. É possível seguir o desenrolar intelectual do autor no conjunto de seus artigos publicados em Portugal. Mais interessante se torna ao compreendermos a necessidade de Cochofel de interagir bem posteriormente ao preservar os textos originais, mas a fazer comentários analisando a feitura dos escritos. Ferreirinho sabia de meu interesse por tudo o que se refere ao notável compositor e pensador Fernando Lopes-Graça (1906-1994), e João José Cochofel não apenas foi amigo do grande músico,  como autor dos poemas das Cinco canções de “Os dias Íntimos” para canto e piano (1950-1966) do compositor nascido em Tomar.

Estando a ler Opiniões com data homeopaticamente entre tantas outras leituras, torna-se revelador o pensamento inteligente, arguto e profético do autor. Certamente João José Cochofel será citado em posts futuros pelos conceitos que emitiu, sempre com raro interesse. Por ora fica a surpresa ao me deparar com interessante entrevista que Cochofel realizou em Paris em 1951 com o ilustre compositor Serge Nigg (1924-2008), que foi tema de um de meus posts do ano passado (vide Serge Nigg “Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro“, 04/03/2011). O jovem compositor, que teria escrito pela primeira vez em França, no ano de 1946, uma obra onde utilizou a técnica dodecafônica (Variations pour piano et 10 instruments), logo se tornou celebridade que não passaria desapercebida para Fernando Lopes-Graça, que o entrevistou em 1947 (Visita aos Músicos Franceses, Seara Nova, 1948), no período em que Serge Nigg surgia como um estímulo para a vanguarda musical em detrimento da música de ampla audiência, isso logo após a Segunda Grande Guerra. A uma das perguntas de Lopes-Graça sobre o possível coadunar dodecafonismo e a tradição musical francesa, Nigg responde: “Certamente. Não há incompatibilidade entre o dodecafonismo e a tradição musical francesa, antes de mais nada porque não se trata de estética quando se fala de dodecafonia, mas sim de técnica de composição, ao passo que, quando se fala de uma tradição musical (o que é muito vago) tem-se em mente sobretudo o apego a certos conceitos estéticos, frequentemente vazios de sentido”. Pois bem, por volta de 1950 Serge Nigg rompe com o “movimento” que apregoava o dodecafonismo em França. João José Cochofel, ao comentar bem tardiamente outra entrevista de Serge Nigg a ele concedida em Paris no ano de 1951, diz: “Em nome da generosa miragem da arte para todos, Nigg consentiu no maior sacrifício que a um artista é dado fazer, o sacrifício das suas tendências profundas, ao renegar o dodecafonismo” e conclui “De qualquer modo, foi Boulez, seu émulo e opositor, quem triunfou e se tornou conhecido”.

Cochofel, ao procurar Serge Nigg, tinha em mente elucidar várias questões, inclusive a da “ruptura” do compositor com a técnica que passava a ter guarida entre os jovens músicos franceses. Escreve que Nigg começava “a suspeitar da irredutibilidade do esoterismo daquela corrente aos seus ideais humanísticos”. Prossegue Cochofel: “E Nigg acaba realmente por abandonar a ortodoxia dodecafônica, levantando grande celeuma nos meios musicais, que fizeram por ignorar a honestidade e a coragem de que deu provas ao procurar novas formas de expressão quando começava a triunfar, e vencendo uma crise inevitavelmente dolorosa de desilusões e renúncias, mas que a sua consciência lhe impunha”. A uma incisiva pergunta do entrevistador sobre a razão de ter abandonado o dodecafonismo, Serge Nigg, aos 27 anos, responde: “Por este não levar a coisa nenhuma, destruindo o caráter nacional, fazendo uma música de receita, igual em todos os países, nivelando tudo. Há tempos assisti a um concerto de jovens compositores sul-americanos, mas em vez de encontrar o Brasil, encontrei música escrita em Viena de Áustria…”. Em 1965, Cochofel observaria que colocou em Opiniões com Data a entrevista concedida em 1951 por Nigg, apesar de asseverar que se tratava de “ideias mais alheias do que minhas”.  João José Cochofel comenta que “a experiência das duas últimas décadas veio mostrar cruelmente que os experimentalismos eram irreprimíveis e que não se pode travar o desenvolvimento natural da arte…”. Contudo, tem consciência de que deve ser combatida a rotina, mesmo em movimento de vanguarda.

As entrevistas pontuais que Fernando Lopes-Graça (1947) e João José Cochofel (1951) fizeram com Serge Nigg, atestando a adesão e a posterior “rejeição” ao dodecafonismo – fatos que ocorreram bem antes dos 30 anos do compositor – seriam, cinco décadas após, durante o longo depoimento mantido com Gérard Denizeau  (1998-2008) e publicado em 2010 na série Témoignages (nº 3), do Observatoire Musical Français da Université Paris Sorbonne, amplamente ratificadas por Serge Nigg. Vem  demonstrar a profunda coerência do ilustre compositor e pensador francês. Esse substancioso depoimento foi o material temático do post acima mencionado.

Seria possível entender que decênios transcorridos, realizações e vicissitudes advindas, assim como a longa maturação do pensar tivessem provocado em Serge Nigg a necessidade de deixar depoimento definitivo já nos estertores da existência. A coerência do compositor difere bem de determinadas autobiografias em que o passado se torna nebuloso ou, mais grave, fantasioso. É a integridade intelectual do depoente que estaria a comprovar a veracidade dos fatos. Apreendida a premissa, o que fica do memorialista íntegro é a condição de autenticidade, o que o tornará partícipe da História.

No extraordinário depoimento, tema do post sobre ele, Serge Nigg considerava que no crepúsculo da vida o músico terá construído seu mundo abstrato, fiel ao que almejou. Confessa ter sofrido “tentações da fantasia que podem permitir derivações” e que a inspiração deve nortear o compositor. Ao afirmar que o caminho de um criador é a lógica inevitável, considera, contudo, que há tributo a pagar, sendo este  a “solidão”. Não estaria a pensar na longa trajetória e naquele rompimento com o dodecafonismo no início dos anos 50? Que houve marginalização, sabe-se. Todavia, a coerência de Nigg, compondo com a maior competência, sem amarras ideológico-musicais e a confiar na “inspiração”, tornaram-no paradigma para tantos nas décadas que se seguiram. Próximo de seu fim existencial faz a autocrítica de seu desligamento do dodecafonismo após o entusiasmo inicial: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação” referindo-se aos compositores barrocos e clássicos, observando que “Schöenberg, no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Afirmaria que, naqueles anos pós-guerra, infortunado o músico que não aderisse às novas tendências. Daí a dimensão incomensurável, com todos os tributos pagos posteriormente, de seu desligamento daquela avassaladora vanguarda, mormente quando estava a ser considerado um expoente da técnica dodecafônica em França. Teriam Lopes-Graça e João José Cochofel entrevistado Nigg não fosse ele referência?

Sob outra égide, Serge Nigg mostra-se avesso à obra aberta, aos modismos, à concessão, à proliferação de jovens compositores: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”. Alérgico à música eletroacústica, exprime: “Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino… Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma coisa que me aterroriza”. Ficaria implícita a ideia de novos caminhos trilhados por Nigg, livres da ortodoxia.

O notável compositor Serge Nigg revisitaria o dodecafonismo, sob outra égide, a partir de 1960, “quando toda aridez, toda sistemática já teriam sido dominadas” segundo Gérard Dénizeau. O autor de obras que se tornaram referenciais tem suas criações executadas por muitos dos mais importantes intérpretes, assim como por orquestras e conjuntos camerísticos vocais de excelência. As entrevistas realizadas nas fronteiras da segunda metade do século XX por dois pensadores fundamentais da música em Portugal apenas ratificam a grandeza de Serge Nigg e sua corajosa coerência, que perduraria através das décadas.

In March 2011 I wrote a post covering the booklet Témoignages – published by the Sorbonne University – of the great French composer Serge Nigg. Now I’ve just read the interviews given by Serge Nigg in 1947 and 1951 to two Portuguese intellectuals: the composer Fernando Lopes-Graça and the poet João José Cochofel. Both interviewed Nigg in two decisive moments of his career. In 1946 Nigg was the first composer in France to write a dodecaphonic work and in 1951 he was already moving away from the twelve-tone technique. Five decades later, the subject would be resumed by Nigg in his Témoignages, where he confirmed his uneasiness with the limitations of the purely abstract technique, proving the consistency of the choices of his youth.