Narrativa em Torno do Notável Henry Le Boursicauld
À loucura da peregrinação do meu antigo confrade,
Henry Le Boursicaud, quis eu juntar a minha peregrinação,
de esgarafunchar a história da “herética divinização” dos Papas.
Mas não vejam aqui senão uma crítica amiga.
Luís Guerreiro
(dedicatória manuscrita do autor e amigo no exemplar que nos foi enviado)
Luís Guerreiro é um escritor de convicções fortes. Bem anteriormente, dediquei um post ao instigante romance Oitavo Dia da Criação (29/06/07). O presente, O Peregrino (Brasília, Ser, 2012), vem comprovar a preocupação maior do autor com os rumos da Igreja Católica Apostólica Romana. Para tanto, descreve com acuidade os passos sofridos do missionário redentorista francês, Henry Le Boursicaud (1920- ), em uma caminhada épica empreendida a pé pelo padre aos 75 anos de idade. Escritos de Le Boursicauld durante o trajeto são entremeados pela interpretação de Guerreiro, a dar movimento à narrativa, numa caracterização em que a veracidade pode ter eflúvios da inventiva do escritor, sem, contudo, fugir à certeza de um fato real.
Henry Le Boursicauld é uma figura notável. Padre da Ordem dos Missionários Redentoristas. À certa altura deixou o abrigo certo do convento e partiu para uma aventura que se prolonga aos nossos dias. Percorreu o mundo, a viver nas comunidades mais carentes, não apenas aquelas dos pobres e desvalidos, mas também a integrada pelos oprimidos, pelas populações desprovidas das necessidades básicas. Inicialmente viveria entre milhares de imigrantes portugueses em Champigny, perto de Paris. Esteve prolongadamente em alguns dos guetos mais desfavorecidos deste planeta, a desenvolver ações comunitárias. Notáveis suas contribuições junto aos abandonados pelo poder público em Fortaleza e entre os catadores de lixo em São Paulo, assim como a prolongada ação junto aos pigmeus, na África, onde ensinou o plantio de inúmeros vegetais, que corroborariam o sobreviver da etnia africana. Seus livros são o resultado desses apelos interiores e de uma vida cristã realmente dignificada pela ação. E tudo teria acontecido quando recebeu um tapa em reunião de párocos, simplesmente por ter dito que não lhe parecia difícil encontrar a casa da paróquia em pequena localidade, pois esta era preferencialmente a melhor.
Luís Guerreiro, que em Oitavo Dia da Criação ratificava sua posição clara relacionada a alguns desvios da Igreja, e o personagem do livro, Deodato, apreendia o sentimento solidário relacionado àqueles oprimidos pelos poderosos, encontra no exemplo de Henry Le Boursicauld o herói vivo, palpável, admirado, mormente pelo fato de ter sido seu antigo confrade redentorista. Constrói uma história a partir de um feito inédito e excepcional empreendido pelo personagem.
Desiludido com a pompa existente em setores da Igreja e com a falta de dedicação plena aos menos favorecidos, Henry Le Boursicauld empreende uma viagem tida por tantos como um ato de loucura, de sonhador, de visionário. Segue a pé de Paris a Roma, a fim de entregar carta de seu punho e cinco livros do teólogo alemão Berhnard Häring ao Papa João Paulo II. Na missiva, pede com firmeza uma ação maior voltada aos oprimidos e aos pobres segregados. Fá-lo aos 75 anos e de 18 de Junho a 23 de Setembro de 1995 caminha em direção ao Vaticano. Seriam 97 dias em que sequer pediu carona, pois o trajeto teria de ser completado a pé!!! Apenas aos sábados descansava. Quase sempre recebia acolhida para repouso em casas de moradores ou religiosos das pequenas localidades. Em França e na Itália. Transpôs os Alpes! Nas longas e perigosas subidas pelo acostamento das estradas alpinas, receberia convite de motoristas querendo levá-lo, pois sua peregrinação ganhara manchetes. Recusava sistematicamente. Tantos o têm como um Profeta. Creio que Luís Guerreiro soube captar essa vontade férrea de Le Boursicauld. Nessa epopeia, o missionário redentorista se faz – involuntariamente – acompanhar de um jovem alemão forte e alto que se sentiu impelido a segui-lo: “Henry, dou-te três meses da minha vida”. Guerreiro insere os textos fortes do missionário sobre episódios papais, alternando-os com os seus, colega redentorista, descritivos, romanceados. Essa técnica torna leve a interpretação do cotidiano da longa viagem, a possibilitar que as observações duras escritas pelo padre tornem-se referências aguardadas pelo leitor. Dos diálogos entre Jürgen, o jovem, e o velho missionário, Guerreiro sabe caracterizar a intrepidez do sacerdote nascido na Bretanha. Não por vezes há discordâncias entre os dois peregrinos, mas Guerreiro capta nesse “romance histórico” o lado altruístico do germânico companheiro de Henry e a sua admiração pelas características indomáveis de Le Boursicauld.
Nessa determinação, até certo aspecto visionária, a almejar que sua carta pudesse ser lida pelo Papa João Paulo II, reside o cerne do livro. Mostra-se Le Boursicaud obcecado por mudanças na Igreja, que na realidade pouca guarida poderiam ter por parte das autoridades eclesiásticas. Percebe-se, por parte do padre, uma revolta interior pelos desmandos dos papas, desde os primórdios da Igreja. Tece reflexões a respeito da célebre frase contida nos evangelhos “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. A interpretação, tomada à risca pelos papas, teria sido a responsável por tantas arbitrariedades cometidas por suas ações ao longo da história. Le Boursicaud historia em seus apontamentos o lado trágico e autoritário nessa milenar sucessão de papas. Essa constatação, somada à infalibilidade papal, apenas do Papa, proclamada durante o pontificado de Pio IX no século XIX, à ostentação ainda existente na cúpula da Igreja e à existência de determinado “sistema” elitista arcaico constantiniano (secreto?) a visar ao Poder iriam se chocar com a visão oposta voltada aos abandonados, à miséria, aos oprimidos, razão maior da cruzada apostólica do missionário. Diria que amor sincero e revolta, não ódio, frise-se, fazem-se presentes no transcorrer da obra. Ficaria claro que o amor é a essência na vida do missionário peregrino, mas a revolta estaria a apontar o caminho da denúncia. Afirmaria Le Boursicauld: “Colossais despesas das viagens do papa pelo mundo endividam as dioceses. Ao mesmo tempo, João Paulo II é obrigado a colar-se aos ricos, por vezes pouco desejáveis. Em Bogotá, antes de sua chegada, retiraram da rua todas as crianças miseráveis, para que ele não as visse, e levantaram anteparas diante dos bairros de lata. O primeiro dos crentes parte dos palácios luxuosos para anunciar a Boa Nova aos pobres! Como se pode compreender isso”? Como afirma Luís Guerreiro, “supostos sucessores de Pedro, houve papas santos, alguns deles mártires. Noutros, Cristo não teria hipotecado a sua confiança”. O padre redentorista bretão teve a fortificá-lo em suas convicções o Abbé Pierre (1912-2007), fundador do Movimento Emaús, motivo maior para que Le Boursicauld fundasse posteriormente a sua comunidade “Emmaüs Liberté”. Influenciou-o e o estimularia posteriormente o ilustre teólogo Bernhard Häring (1912-1998).
A grande decepção de Henry Le Boursicaud, cuja peregrinação durara 97 dias, sempre a andar, e cuja repercussão na mídia antevia bem antecipadamente a sua chegada ao Vaticano, foi a de não ter sido recebido pelo Papa João Paulo II. Entregou sua carta e presentes ao Cardeal Etchegaray. Assim como duas cartas endereçadas ao papa nunca foram respondidas, essa em especial, após essa caminhada épica, também não seria.
O Peregrino é livro polêmico. Li-o com a devida cautela, cônscio da austeridade, probidade e competência teológica do autor e da extraordinária Missão Apostólica de Henry Le Boursicauld, que, às portas de seus 92 anos, foi morar com os mais pobres e oprimidos na favela Vila Velha, em Fortaleza. Ali pretende ficar, até que Deus o receba. Mistérios.
An appreciation of the book “O Peregrino” (The Pilgrim), in which writer Luís Guerreiro recounts, in a mixture of facts and fiction, the epic journey from Paris to Rome undertaken on foot by the Redemptorist Father Henry Le Boursicauld in 1995.