Duas Manifestações Emotivas Antagônicas em Debussy

Je reçois ce matin le programme du Concert Parent
où vous devez jouer Masques et L’Isle Joyeuse…
Sans que je doute une seconde de la façon parfaite
dont vous jouez ces deux morceaux,
voulez-vous me faire l’extrême plaisir
de me les faire entendre demain Jeudi dans l’après-midi,
à l’heure qui vous conviendra le mieux ?
Carta de Debussy ao notável pianista Ricardo Viñez (Février  1905)

Mais, Seigneur ! que c’est difficile à jouer…
ce morceau me paraît réunir les façons d’attaquer un piano,
car il réunit la force et la grâce… si j’ose ainsi parler.
Claude Debussy sobre L’Isle Joyeuse.
Carta a seu editor Jacques Durand (Dieppe, Septembre 1904)

No supermercado recebo um tapinha nas costas. Ao virar-me, vem a pergunta imediata: “O que de intenso existe por trás de L’Isle Joyeuse?  Que bela ilustração você colocou! Fale-me dessa composição”. Marly estudou piano, mas dedicou-se a uma outra área do conhecimento e é professora. Conheço-a desde o início do século. Convidei-a para um café e, durante mais de meia hora, conversamos a respeito dessa e de outras criações de Claude Debussy entre 1903-04.   

Para quem conhece a opera omnia do compositor francês, ou ao menos uma boa parcela, L’Isle Joyeuse surge como um ápice emotivo, em se considerando outras preocupações de Debussy. São claras as intenções voltadas ao passional. Há razões para que isso aconteça nessa obra, preferencialmente, e em outras do período.

Debussy teve uma vida sentimental atribulada até a união com sua segunda mulher, Emma Bardac. A cantora Marie Vasnier, dedicatária de melodias inefáveis do compositor durante os anos de formação, Gaby Dupont, com quem viveu alguns anos, Lilly Téxier, sua primeira mulher, até os desdobramentos do envolvimento com Emma Bardac, que data de 1903.  Casada com um rico banqueiro judeu, Emma não apenas era admirada como cantora – Gabriel Fauré dedicou-lhe afeição profunda e La Bonne Chanson (1892-1894), Prison (1894) e Salve Regina (1895); Ravel l’Indifférent, a terceira peça do ciclo para canto e orquestra Shérazade (1903) -, mas também como frequentadora dos salões parisienses onde se reuniam artistas, intelectuais e os senhores do poder. Da ligação musical com Emma surgiria uma relação amorosa que permaneceria para sempre, mas que deixaria vestígios dramáticos durante os primeiros dois anos de idílio. Cartas enviadas à Lilly por Debussy já prenunciavam a separação. Em 30 de Julho de 1904, o compositor e Emma embarcam para a ilha de Jersey, na costa britânica, no fulgor da paixão. Lilly tentaria o suicídio com arma de fogo aos 13 de Outubro, assim como possivelmente o fizera Gaby Dupont em 1897. Parte considerável da sociedade parisiense tomou partido da mulher abandonada. No dia 6 de Novembro dá-se a primeira audição das Deux Danses de Debussy – há minha gravação para o selo belga De Rode Pomp das duas obras sequenciais na transcrição para piano solo do editor e amigo de Debussy, Jacques Durand (vide YouTube). Nessas Danses, originalmente para harpa cromática e orquestra de cordas, escritas entre Abril-Maio de 1904, capta-se também a intensidade emotiva vivida pelo compositor. Emma obteria o divórcio de seu primeiro marido e se casaria com Debussy. Tiveram uma única filha, Claude-Emma (Chouchou), nascida em 1905, menina super dotada que morreria de difteria em 1919 um ano após seu ilustre pai. Emma Debussy viveria até 1934.

Entre Junho-Julho de 1904 surge uma das criações para piano mais emblemáticas de Debussy, Masques que deveria integrar uma 1ª série de Images. Há mistérios sobre título e motivo dessa obra. Masques tem norteamento oposto a L’Isle Joyeuse, mas ambas foram escritas nos momentos de intensidade passional de Debussy. A indicação inicial Très vif et fantasque leva à reflexão. Masques apresenta flutuações dinâmicas intensas e austeridade a partir da forma  A-B-A, ou seja, uma primeira parte a percutir quintas à exaustão, por onde flui a temática, e que será basicamente a terceira parte, e a ter a intermediá-las uma contrastante, mais lenta e enigmática. Um de seus biógrafos, Marcel Dietschy, escreveria (La Passion de Claude Debussy, Neuchâtel, La Baconnière, 1962): “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Remorsos? Vislumbre de incerto percurso emocional? Lilly abandonada à sorte? Foi essa afirmação de Dietschy que levaria o notável artista norte-americano Johan Howard, que mais tarde ficaria conhecido como Dinossauro dos grafiteiros e também como o maior artista no gênero do Brasil, a realizar uma das ilustrações para meu livro O Som Pianístico de Claude Debussy (São Paulo, Novas Metas, 1982), criando instigante desenho. Para o leitor, recomendaria duas interpretações pianísticas exemplares encontráveis no YouTube: Marcelle Meyer e Monique Haas.

L’Isle Joyeuse é desse período passional. Considerou-se, durante muito tempo, que a obra fora escrita na Ilha de Jersey. Na realidade, ela teria sido composta um ano antes, período já impregnado pelo idílio avassalador. O compositor remanejaria L’Isle Joyeuse nos dias ilhéus, entre Julho-Agosto de 1904. A inspiração teria vindo do quadro de Antoine Watteau (1684-1721), L’Embarquement pour Cythère. Todavia, a pujança emocional que percorre toda essa peça extraordinária estaria a apontar que o  fulcro   procederia do envolvimento, ainda inicial, com Emma.

Não caberia neste post uma análise de L’Isle Joyeuse. Há muitas, sob os mais diversos métodos e tendências, tradicionais e hodiernas, espalhadas em livros e artigos. Creio que ao leitor poderia interessar uma apreciação muito pertinente realizada por Marguerite Long (1874-1966), pianista muitas vezes mencionada em posts anteriores por ter sido minha mestra durante anos em Paris.  L’Isle Joyeuse foi a primeira peça que Madame Long tocou para Debussy. Relata em seu livro: “Afeiçoei-me também a essa peça incrível, colorida, difícil e na qual a virtuosidade engrinalda uma harmonia, a sugerir as grandes obras do século XVIII. Tem-se visão fastuosa, um vento de alegria de prodigiosa exuberância, uma festa do ritmo onde, sobre vastas correntes modulatórias, o virtuoso deverá manter uma técnica exata, sob asas de sua imaginação” (Au Piano avec Claude Debussy. Paris, Julliard, 1960). L’isle… é a peça isolada para piano mais plena de segmentos diversificados, alguns repetitivos sobre outra roupagem, e rítmica basicamente obstinada.

Para L’Isle Joyeuse, Howard quis conhecer as origens da criação. Contei ao amigo a história a envolver a obra. Não faltaram os personagens centrais, Debussy e Emma, assim como Lilly a se afastar, La Vague (A onda) de Hokusai (1760-1849), que inspiraria o magistral tríptico sinfônico La Mer (1903-5), peixe (alusão a Poissons d’or para piano, que seria escrita poucos anos após), pássaro e outros ingredientes mais.

O belo trabalho gráfico de Penka Kasandjiev que ilustra o post sobre Debussy de 18/08/2012, inspirado em L’Isle Joyeuse, suscitou série de e-mails admirando a criação da artista. Naquele post, dedicado ao sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy, inseri minha gravação de L’Isle Joyeuse realizada na Bélgica em 2005. Recomendaria duas gravações marcantes no YouTube, a de Wladimir Horowitz e a de Samson François. Esta última particularmente guarda qualidades essenciais da tradição francesa quanto à interpretação da obra de Debussy.

On Debussy’s works L’Isle Joyeuse and Masques and the relationship there is between the antagonistic passionate intensity of both pieces and Debussy’s personal life.