O Pensamento Crítico de François Servenière
A entidade musical apresenta, pois, essa estranha singularidade de apreender dois aspectos:
existir sucessivamente e de maneira distinta sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música comanda sua vida própria e suas repercussões na vida social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o executante.
Igor Stravinsky
Nenhuma obra de arte existe sem um sentido,
e o belo parece-me precisamente residir
na realização mais ou menos plena desse sentido.
João José Cochofel
Em post bem anterior a focalizar a personalidade do compositor e orquestrador francês François Servenière destacava seu pensar e julgamento crítico. O lançamento, em Maio último, do álbum a conter dois CDs com obras do compositor português Fernando Lopes-Graça ensejou Servenière a escrever a crítica analítica das importantes obras nele contidas. Esgotada a primeira edição de Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins (São Paulo, Giordanus, 2011), pensamos, o cuidadoso editor e amigo Cláudio Giordano e eu, numa segunda, a incorporar o novo julgamento e também a corrigir pequenos equívocos de revisão da precedente edição.
Quando da publicação em 2011, François e eu, a partir de laços que se tornariam perenes, passamos a manter uma correspondência semanal intensa. Após a leitura de meus posts, Servenière os traduz na “potável” versão apresentada pelo Google e tece suas considerações. Basicamente, a condição do homem na atualidade; a música e seus caminhos por vezes sem saída e, no caso, minimamente ouvida por nichos tonitruantes; o compositor e o intérprete, suas íntimas ligações e o papel dessas duas únicas entidades que referendam a música, segundo Igor Stravinsky; o compositor a ouvir o seu tempo, mas imbuído das referências históricas eleitas e o intérprete diante de opções entre os holofotes ou o recolhimento voltado ao aprofundamento; as políticas de nossos dois países, onde a corrupção, tanto em França como no Brasil, está a fazer parte do cotidiano, o que representa uma chaga sem cicatrização previsível; a natureza e suas manifestações voltadas ao belo ou às periódicas catástrofes; o terrorismo que grassa pelo mundo; a insatisfação dos povos; a deteriorização do idioma e… dos costumes; o bem e o mal e, a preponderar, o sentido inefável da família.
A publicação atual permanece em francês. Teria eu de fazer a tradução. Conhecendo a qualidade vernacular de Servenière, certamente o faria com o maior cuidado possível. Infelizmente, ainda não encontrei a disponibilidade para tal mister, pensando contudo um dia verter suas Réflexions… para o português.
Em tantos posts anteriores frisei a problemática da crítica musical no Brasil, hoje num impasse autêntico. Aliás, há décadas tenho escrito a respeito dessa quase que absoluta ausência do conhecimento musical por parte da “crítica” ou de articulistas, exceptuando-se raridades, seja no campo da composição, da interpretação ou da análise, entendendo-se, neste último caso, o conhecimento das duas outras práticas, mesmo que limitadas por motivos variados. Sob outro aspecto, a presença constante de não músicos escrevendo assiduamente sobre música tem provocado equívocos sensíveis em textos que dificilmente seriam aceitos alhures. Não há, por parte de leitores de periódicos ou revistas, o hábito de apontar criticamente essas falhas. Aceita-se o equívoco. Infiltra-se a anestesia. Assim sendo, o simulacro perdura. Nada a fazer, creio eu, a não ser que mentes esclarecidas busquem a competência possível de ser encontrada entre tantos excelentes músicos, digo músicos, espalhados pelo país. A mídia teria interesse em procurar esses esclarecidos profissionais disponíveis? A insuficiência do conhecimento tendo continuação faz com que holofotes se dirijam à mesmice institucionalizada.
Quando François Servenière se debruçou sobre meus CDs, após nosso primeiro encontro em Paris no início de 2011, fê-lo a surpreender o intérprete que aguardava apenas um e-mail que apontasse suas ponderações. Publiquei suas reflexões no segundo semestre daquele ano. Contudo, pequenas falhas de digitação e mais a chegada de uma apreciação sobre o álbum Lopes-Graça estimularam a feitura dessa segunda edição.
A pensar num prefácio para a publicação em apreço, várias ideias vieram-me a mente. A linha coerente de Servenière, igualmente seguida para o álbum Lopes-Graça, tem o olhar analítico de um lince. Perfaz-se a unidade que doravante passa a existir, pois a abranger a opera omnia de minhas gravações no Exterior. A importância das considerações pormenorizadas de Servenière, que, segundo amigos músicos da França, Portugal, Holanda e Bélgica, parece ser inédita, pois a abranger o todo gravado por um intérprete, revela, sobre aspecto outro, o pensar enciclopédico do músico.
Incluo, pois, as “Notas a esta edição”, que precedem a segunda edição.
“Em Junho de 2012 era lançado em Portugal o álbum a conter dois CDs inteiramente dedicados às obras para piano do notável compositor nascido em Tomar, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), três delas inéditas em termos de registro fonográfico. Gravei-o em 2010 na mística capela Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica Flamenga. Compareci ao lançamento durante tournée pelo país. Sob o prestígio do selo PortugalSom, os CDs indicam a diversificação na extraordinária criação de Lopes-Graça.
De Lisboa enviei a alguns amigos franceses e belgas o álbum em questão. François Servenière, após acurada escuta por mais de uma vez, encaminhou-me texto crítico que se vem somar às Réflexions… anteriores. O espírito detalhista do compositor-pensador se, sob um prisma, concentrou-se demoradamente no magistral Canto de Amor e de Morte, cumeeira da criação portuguesa, analisou, sob a égide histórico-sócio-musical, as Músicas Fúnebres e, sob fundamento geográfico-musical, a coletânea Cosmorama, sem excluir a mínima peça de Música de Piano para Crianças. Todas elas estão focalizadas sob a profunda admiração do músico francês pela obra do grande compositor-pensador português que é Lopes-Graça, sem dúvida um dos maiores criadores do século XX em termos mundiais.
Nesse ano e meio de correspondência semanal chegamos a 500 páginas! Servenière comenta meus posts sobre os mais variados temas publicados no blog e devo a ele não apenas a possibilidade de diálogo com um notável músico reflexivo, mas também uma familiarização ainda mais intensa com a cultura de França. Frise-se que há comunhão quanto ao repertório pouco frequentado e Servenière defende com ardor as ‘redescobertas’ qualitativas que se contrapõem, ou melhor, juntam-se, em igualdade de condições, ao repertório sacralizado. Pretendemos um dia publicar nossa troca de missivas internéticas regulares. Em uma delas tive a alegria de receber as partituras de um monumental trabalho, as suas 50 canções escritas ao longo dos últimos anos. Os quatro CDs que chegaram após dão conta da extrema diversificação no trato composicional desse singular autor.
É, pois, com imenso prazer que apresento a segunda edição ampliada dos escritos críticos sobre minhas gravações, pensadas e analisadas por um músico autêntico”.
This post is about the second edition of Françoise Servenière’s reflections upon my discography (all CDs recorded abroad). This updated edition includes his analysis of my last album with works by Lopes-Graça, released last May in Portugal.