Navegando Posts publicados em outubro, 2012

O Pensamento Crítico de François Servenière

A entidade musical apresenta, pois, essa estranha singularidade de apreender dois aspectos:
existir sucessivamente e de maneira distinta sob duas formas,
separadas uma da outra pelo silêncio do nada.
Essa natureza particular da música comanda sua vida própria e suas repercussões na vida social,
pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o executante.
Igor Stravinsky 

Nenhuma obra de arte existe sem um sentido,
e o belo parece-me precisamente residir
na realização mais ou menos plena desse sentido.
João José Cochofel 

Em post bem anterior a focalizar a personalidade do compositor e orquestrador francês François Servenière destacava seu pensar e julgamento crítico. O lançamento, em Maio último, do álbum a conter dois CDs com obras do compositor português Fernando Lopes-Graça ensejou Servenière a escrever a crítica analítica das importantes obras nele contidas. Esgotada a primeira edição de Une Réflexion sur la discographie du pianiste brésilien José Eduardo Martins (São Paulo, Giordanus, 2011), pensamos, o cuidadoso editor e amigo Cláudio Giordano e eu, numa segunda, a incorporar o novo julgamento e também a corrigir pequenos equívocos de revisão da precedente edição.

Quando da publicação em 2011, François e eu, a partir de laços que se tornariam perenes, passamos a manter uma correspondência semanal intensa. Após a leitura de meus posts, Servenière os traduz na “potável” versão apresentada pelo Google e tece suas considerações. Basicamente, a condição do homem na atualidade; a música e seus caminhos por vezes sem saída e, no caso, minimamente ouvida por nichos tonitruantes; o compositor e o intérprete, suas íntimas ligações e o papel dessas duas únicas entidades que referendam a música, segundo  Igor Stravinsky; o compositor a ouvir o seu tempo, mas imbuído das referências históricas eleitas e o intérprete diante de opções entre os holofotes ou o recolhimento voltado ao aprofundamento; as políticas de nossos dois países, onde a corrupção, tanto em França como no Brasil, está a fazer parte do cotidiano, o que representa uma chaga sem cicatrização previsível; a natureza e suas manifestações voltadas ao belo ou às periódicas catástrofes; o terrorismo que grassa pelo mundo; a insatisfação dos povos; a deteriorização do idioma e… dos costumes; o bem e o mal e, a preponderar, o sentido inefável da família.  

A publicação atual permanece em francês. Teria eu de fazer a tradução. Conhecendo a qualidade vernacular de Servenière, certamente o faria com o maior cuidado possível. Infelizmente, ainda não encontrei a disponibilidade para tal mister, pensando contudo um dia verter suas Réflexions… para o português.

Em tantos posts anteriores frisei a problemática da crítica musical no Brasil,  hoje num impasse autêntico. Aliás, há décadas tenho escrito a respeito dessa quase que absoluta ausência do conhecimento musical por parte da “crítica” ou de articulistas, exceptuando-se raridades, seja no campo da composição, da interpretação ou da análise, entendendo-se, neste último caso, o conhecimento das duas outras práticas, mesmo que limitadas por motivos variados. Sob outro aspecto, a presença constante de não músicos escrevendo assiduamente sobre música tem provocado equívocos sensíveis em textos que dificilmente seriam aceitos alhures.  Não há, por parte de leitores de periódicos ou revistas, o hábito de apontar criticamente essas falhas. Aceita-se o equívoco. Infiltra-se a anestesia. Assim sendo, o simulacro perdura. Nada a fazer, creio eu, a não ser que mentes esclarecidas busquem a competência possível de ser encontrada entre tantos excelentes músicos, digo músicos, espalhados pelo país. A mídia teria interesse em procurar esses esclarecidos profissionais disponíveis? A insuficiência do conhecimento tendo continuação faz com que holofotes se dirijam à mesmice institucionalizada.

Quando François Servenière se debruçou sobre meus CDs, após nosso primeiro encontro em Paris no início de 2011, fê-lo a surpreender o intérprete que aguardava apenas um e-mail que apontasse suas ponderações. Publiquei suas reflexões no segundo semestre daquele ano. Contudo, pequenas falhas de digitação e mais a chegada de uma apreciação sobre o álbum Lopes-Graça estimularam a feitura dessa segunda edição.

A pensar num prefácio para a publicação em apreço, várias ideias vieram-me a mente. A linha coerente de Servenière, igualmente seguida para o álbum Lopes-Graça, tem o olhar  analítico de um lince.  Perfaz-se a unidade que doravante passa a existir, pois a abranger a opera omnia de minhas gravações no Exterior. A importância das considerações pormenorizadas de Servenière, que, segundo amigos músicos da França, Portugal, Holanda e Bélgica, parece ser inédita, pois a abranger o todo gravado por um intérprete, revela, sobre aspecto outro, o pensar enciclopédico do músico.

Incluo, pois, as “Notas a esta edição”, que precedem a segunda edição. 

 “Em Junho de 2012 era lançado em Portugal  o álbum a conter dois CDs inteiramente dedicados às obras para piano do notável compositor nascido em Tomar, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), três delas inéditas em termos de registro fonográfico. Gravei-o em 2010 na mística capela Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica Flamenga. Compareci ao lançamento durante tournée pelo país. Sob o prestígio do selo PortugalSom, os CDs indicam a diversificação  na extraordinária criação de Lopes-Graça.

De Lisboa enviei a alguns amigos franceses e belgas o álbum em questão. François Servenière, após acurada escuta por mais de uma vez, encaminhou-me texto crítico que se vem somar às Réflexions… anteriores. O espírito detalhista do compositor-pensador se, sob um prisma, concentrou-se demoradamente no magistral Canto de Amor e de Morte, cumeeira da criação portuguesa, analisou, sob a égide histórico-sócio-musical, as Músicas Fúnebres e, sob fundamento geográfico-musical,  a coletânea Cosmorama, sem excluir a mínima peça de Música de Piano para Crianças. Todas elas estão focalizadas sob a profunda admiração do músico francês pela obra do grande compositor-pensador português que é Lopes-Graça, sem dúvida um dos maiores criadores do século XX em termos mundiais.

Nesse ano e meio de correspondência semanal chegamos a 500 páginas! Servenière comenta meus posts sobre os mais variados temas publicados no blog e devo a ele não apenas a possibilidade de diálogo com um notável músico reflexivo, mas também uma familiarização ainda mais intensa com a cultura de França. Frise-se que há comunhão quanto ao repertório pouco frequentado e Servenière defende com ardor as ‘redescobertas’ qualitativas que se contrapõem, ou melhor,  juntam-se,  em igualdade de condições, ao repertório sacralizado. Pretendemos um dia publicar nossa troca de missivas internéticas  regulares. Em uma delas tive a alegria de receber as partituras de um monumental trabalho, as suas 50 canções escritas ao longo dos últimos anos. Os quatro CDs que chegaram após dão conta da extrema diversificação no trato composicional desse singular autor.

É, pois, com imenso prazer que apresento a segunda edição ampliada dos escritos críticos sobre minhas gravações, pensadas e analisadas por um músico autêntico”.

This post is about the second edition of Françoise Servenière’s reflections upon my discography (all CDs recorded abroad). This updated edition includes his analysis of my last album with works by Lopes-Graça, released last May in Portugal.

 

Três Filósofos Frente ao Piano


É raro os filósofos considerarem a música
de outra maneira a não ser como objeto de especulação.
É nos seus traços mais gerais,
nos seus caracteres mais permanentes
que a música se oferece regularmente às suas reflexões.
André Souris

O piano de Sartre, de Barthes e de Nietzsche
evidencia que uma tal escolha compromete todo o corpo,
o imaginário e os afetos, além do tempo musical.
Preferência que acompanha a vida pública,
as posições teóricas e políticas de cada um em relação à sua época.
François Noudelmann

São poucos os literatos e filósofos ao longo da História que tiveram intimidade com a prática musical. Há uma constante que faz prevalecer nas escolas a supremacia das letras sobre a música, entendendo-se esta como até “inferior” à literatura ou à filosofia. Os suplementos culturais de jornais preferenciam discussões, comentários ou críticas sobre textos literários, romances, narrativas, poesias, filosofia, sociologia… A música, quando abordada, geralmente o é por não músicos, e esse é um mal que persiste, infelizmente. Se a prevalência literária é fato nas escolas e nos meios impressos, permanentemente buscam os senhores da escrita fazer comparações de tal texto literário com a denominada música ou sonoridade subjacente. Paradoxal? Talvez.

Entre os filósofos, foram poucos aqueles que praticaram algum instrumento, souberam ler uma partitura, analisaram, mesmo amadoristicamente, uma composição. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) chegou a compor e a escrever sobre música, sendo um dos que se envolveu na célebre “Querelle des Bouffons”, quando se confrontou com o compositor e teórico Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Como músico, Rousseau só seria lembrado pelo grande pensador que foi. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) teve educação musical, praticou clarineta e não poucas vezes a música foi mencionada em seus textos filosóficos. Theodor Adorno (1903-1969), pensador alemão, seria crítico mordaz dos meios de comunicação de massa e seus escritos em que a música está inserida revelariam posições tantas vezes radicais e que poderiam externar frustações por ter sido pianista e compositor de predicados menores. Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo e musicólogo (também praticou piano), teve em seus numerosos livros sobre música um sentido solidário filosofia-música, a buscar o inefável como fator importante para a compreensão da obra musical e o mistério não possível de ser desvelado (vide em meu site: Jankélévith e os opostos sonoros em harmonia, na categoria Artigos).

François Noudelmann, escritor e professor da Universidade Paris VIII, ao pormenorizar-se em três filósofos relevantes, penetra em seu universo íntimo e nele encontrará o piano como instrumento motivador de considerações reveladas ou mantidas em segredo (Le Toucher des Philosophes – Sartre, Nietzsche et Barthes au piano. France, Gallimard, 2008, 177 pgs.). Jean-Paul Sartre (1905-1980), Friederick Nietzsche (1844-1900) e Roland Barthes (1915-1980) são os filósofos estudados sob o prisma do envolvimento pouco conhecido que mantiveram com piano em níveis rigorosamente diferenciados, mas a revelar a importância da música em seu universo doméstico e interior. O autor deixa claro que, de alguma forma, o piano fez parte desde a idade edipiana e que o convívio familiar, seja na prática ou na escuta dirigida, teria influência decisiva na incorporação da música como elemento até de equilíbrio para os três filósofos estudados. Frise-se que o piano foi instrumento a preponderar na educação musical na Europa durante o século XIX até a segunda metade do século XX. E de pensar que a ideia do livro nasceu de uma sequência filmada em 1967, na qual Jean-Paul Sartre toca piano na intimidade e justamente um Nocturne de um de seus eleitos, Chopin.

A vida multifacetada de Sartre, filósofo, escritor, partícipe da vida política da França, levou-o a engajar-se em muitos movimentos aos quais entendia necessário seu apoio na Argélia, Cuba, Indochina, Egito, Palestina-Israel, assim como em manifestações da Arte de seu tempo, o que evidencia a penetração em quase todas as esferas da cultura. Esse processo mental “escondia” contudo, publicamente, uma faceta íntima voltada à mais recôndita expressão do romantismo, seu afeto a determinadas obras de Chopin e de Debussy. Considere-se que a mãe de Sartre era prima de Albert Schweitzer (1875-1965), filósofo, teólogo, médico, organista e escritor. François Noudelmann reflete sobre a escuta de obras sacras na infância de Jean-Paul e também sobre a prática pianística num lar que, apesar da ausência do pai, que morreria quando o miúdo começava a existência, não foi desprovido de austeridade, afeto e até certo rigor. A presença da música e do piano essencial percorreria toda a vida de Sartre, apesar da “penumbra” em que procurou manter esse envolvimento. Sobre a maturidade do filósofo, Noudelmann escreve: “Sartre pode descobrir a escritura celular de Stockhausen ou decifrar peças de Messiaen. Era capaz de ler, tocar e interpretá-las. Ledo engano assim pensar! Ao estar só ao piano, tocava mais prazerosamente Chopin que os vanguardistas. Poder-se-ia acreditar que, à maneira dos amadores, esparsamente interpretava o repertório aprendido na juventude. Mas não: Sartre tocava assiduamente Chopin, ainda e sempre!” Estou a me lembrar da influência marcante do pensamento de Sartre sobre os jovens durante meu estágio musical em Paris. Era quase determinante. Li avidamente Les Mains sales, Le Mur, La Nausée, L’Âge de Raison, Le Sursis, Le Diable et le Bon Dieu, La P… Respectueuse, Morts sans Sépulture, das edições Le Livre de Poche. Devorava-os no metrô ou em algum banco de parque parisiense. Discutia com amigos, mas com o passar dos anos a “magia” dessa leitura seria atenuada.

Ao abordar Nietzsche, Noudelmann o situa como aquele entre os três que maior intimidade teve com a música. O filósofo alemão não apenas tocava piano com certa destreza como chegou a escrever mais de 70 composições, muitas para piano, sem originalidade, é fato, mas a conhecer os meandros da composição. Sua obra literário-crítico-filosófica não dispensa incursões na área musical. Elegeu, ao longo de uma vida atormentada que o levaria à demência, compositores determinados. Chopin, Schumann, Bizet, Wagner. Idiossincrasias transparentes fizeram-no mudar abruptamente de posições “sedimentadas”. Do convívio com Wagner e sua mulher Cosima (filha de Liszt e anteriormente casada com o grande pianista e regente Hans von Bülow) houve o fascínio pelo pensamento e a criação de Wagner e o repúdio posterior. Nietzsche envia a von Bülow uma obra para piano a quatro mãos, Manfred-Meditation terminada em 1872.  A crítica severa, cáustica e totalmente destruidora do renomado músico foi decisiva para um afastamento de Nietzsche da “ideologia” wagneriana. Nouldelmann entende Nietzsche um dissidente de sua época. Wagner representaria o moderno. Haveria uma nítida desconstrução de um mito antes aceito. A denúncia nietzschiana atinge toda uma necessidade de supremacia do autor da Tetralogia, a ser imposta através dos processos criativos mas profundamente egocêntricos. Assevera: “O teatro de Wagner tem necessidade de uma só coisa – os Germânicos!… Definição dos Germânicos: obediência e pernas longas… É muito significativo que o crescimento de Wagner tenha coincidido com o aparecimento do Império”. Nietzsche nessa idiossincrasia wagneriana, iria voltar-se às belas melodias de Carmen, de Bizet, e nesse novo “culto” não ficariam desprezadas a sua admiração inconteste por países como Itália, França e Polônia (Chopin), em detrimento da sua Alemanha. Transcreve segmentos de Carmen para o piano. Se Chopin teve lugar reservado entre seus afetos, considere-se que o afluxo musical iria servir, até como inspiração, aos textos literários mais expressivos. Insaciável, houve período em que Nietzsche buscava partituras de Schumann ou transcrições de ópera para realizá-las ao piano. Apenas em período determinado pelo conhecimento de um outro teclado, o da máquina de escrever, Nietzsche transfere sua digitação à novidade. Contudo, o piano seria sempre, frise-se, o companheiro do solilóquio sonoro. O amálgama música-texto filosófico a fazer, contudo, a história ungir o filósofo. Não escreveria: “Talvez Zaratustra pertença inteiramente à música, o que é certo é que ele pressuporia um verdadeiro renascimento da arte de escutar”. Como afirma Noudelmann: “Assim falava Zaratustra é um canto de glória, uma ascensão realizada, a cumeeira atingida após tantos caminhos incertos”. Para os estudiosos, Nietzsche teria de ser entendido nessa dupla atividade unificada de músico-filósofo e, como salienta François Noudelmann, pianista, particularmente. “O piano foi pois mais que um ‘instrumento’ para Nietzsche, não tendo sido apenas um meio de expressão, mas o espaço sonoro no âmago do qual o músico-filósofo definiu seus valores, suas medidas e suas intensidades”, segundo o autor. Num outro sentido, o da recepção posterior (não mencionada por Noudelmann, pois fora do contexto a que se propôs), o compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915) leria com fervor Zaratustra e seria decididamente influenciado pela obra. Suas composições e seus textos místico-filosóficos visando a uma união ideal Artes-Cosmos refletem essa influência. A última fase composicional de Scriabine pode ser apreendida a partir dessa transformação de seu pensar expressa nos escritos literários. Verdadeiro amálgama. Os textos de Nietzsche não teriam interessado Scriabine, igualmente, através da sedução poético-sonora?

Ao abordar Roland Barthes e sua relação íntima com o piano, Noudelmann perpassa as muitas configurações literárias e retóricas do filósofo, crítico literário, semiólogo, sociólogo e escritor francês. O instrumento musical também, no caso, seria partícipe das mais profundas reflexões barthesianas. Esse processo poderia advir de variadas situações. Quando definiu as preferências para emissões radiofônicas destinadas à France Musique, Barthes apresentou o tradicional mais ventilado, como Schubert, Schumann, Dvorak e até Maria Callas a cantar Bellini. Pelas ondas do Rádio confessaria, em instante de empolgação, amar a obra de Schumann. Nem por isso apresentava criações de compositores como Anton Webern (1883-1945). Toda essa atração musical em que o romantismo está presente poderia, paradoxalmente, estar na contramão do semiótico voltado a outros códigos. Assim como Sartre e Nietzsche, Barthes tem o piano como confidente. Elege Schumann em suas investidas pianísticas, a preferenciar as obras mais lentas. Haveria a nítida intenção barthesiana de livrar Schumann de sua coetaneidade e nacionalidade. Considerá-lo “não atual” e “não territorial” não viria ao encontro da célebre frase do musicólogo Maurice Beaufils, que considerava Schumann o mais francês dos germânicos? Num direcionamento que faz sentido, Barthes associaria Schumann a Fauré, Debussy a Ravel. Noudelmann salienta bem a percepção do toque pianístico amador, a visar contudo a realização “fiel” de uma partitura. Importaria mais, no caso de Barthes, uma relação quase corpórea com a música e esta aparentemente se dá na maneira como o pensador compreende compositores escolhidos e na interpretação velada.

Le Toucher des Philosophes tem interesse maior se apreendermos o espaço que os três autores preferenciados proporcionam à música. Se Jean-Paul Sartre receberia até carga genética e desde a tenra infância conviveria com o piano e repertório pequeno, mas escolhido amorosamente, se Friederick Nietzsche tem uma apreensão da música e do piano a beirar o profissionalismo, Roland Barthes captaria, através da sensação corpórea, teclado, som, entendimento, uma espécie de magia singular. Exceção a Nietzsche, Sartre e Barthes mantêm reservas a essas preferências exacerbadas ou íntimas de específico repertório romântico, mormente pelo fato de que suas imagens e ideias públicas já estavam sedimentadas. Na realidade, após a leitura do excelente ensaio de François Noudelmann, nós, músicos, podemos nos dar por redimidos. São tantos os literatos e filósofos que ignoram solenemente a música!

This post is an appreciation of the book Le Toucher des Philosophes (The Philosopher’s Touch), written by François Nouldemann. The French author focus on three philosophers and amateur piano players – Sartre, Nietzsche and Barthes – pointing out that the composers they elected and the music they played indoors are frequently discordant with their philosophical outlook, enabling us to read their inner thoughts and feelings against their musical preferences.

 

Quantas não São as Vezes

Posso mudar se me penso mudado.
Agostinho da Silva

Mudam-se os tempos,
mudam-se os pensamentos.
Adágio açoriano

Tenho recebido numerosos e-mails sobre o post Texto para Reflexões. Esse maior afluxo viria salientar certa necessidade do homem de pensar nas rápidas transformações da sociedade, que deveria estar a erigir códigos de conduta, e do planeta sob o aspecto físico, a entender que, se não houver uma interiorização de valores “abandonados” ao longo dessas mutações velocíssimas, realmente estaremos em breve frente ao humano ainda mais predatório. Uma tomada de consciência generalizada, utópica talvez, teria de ser globalizada. Para tanto, empecilhos intransponíveis tornam a tarefa quase impossível: intransigências religiosas; terrorismo e guerras fratricidas; corrupção de governantes em conluio, sempre, com empresários; descaso quanto ao outro; não preocupação com a natureza; irresponsabilidade com os problemas das megalópoles, espaços em que o poder imobiliário pouco se importa com o excesso concentrado e o futuro a se pronunciar sombrio; absurdo da produção sem limites da indústria automotiva, que despeja diariamente centenas de veículos em cidades com malha viária saturada; ganância que leva determinadas castas a amealharem estratosféricas fortunas.

Simpático e-mail de um leitor menciona a necessidade do homem de buscar a transformação interior. Lera também o post sobre a responsabilidade. Acrescenta que, para isso, precisaria o ser humano reapreender conceitos que foram esquecidos, pois, segundo o missivista, apenas uma “mudança interior” poderia determinar o caminho coletivo da esperança. Uma espécie de mudança retroativa, mas a ter outra característica ao se pensar o futuro. Portanto, mudança estrutural, onde valores do passado deveriam servir como âncoras seguras para uma sociedade mais humana, a apreender que valores morais e culturais devem ser preservados. Não se confunda com a palavra “mudança” empregada à exaustão nesses tempos recentes por candidatos às prefeituras municipais e que tem única e exclusiva intenção eleitoreira. No caso, mudança a preservar a mesmice.

O Jornal da USP (24 a 30 de Setembro 2012, pg.4), no artigo “Vícios da Democracia”, assinado por Sylvia Miguel,  menciona, entre outras, posições claras de especialistas. Se de um lado o professor Humberto Dantas (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, FIPE-USP) é incisivo ao dizer que “a corrupção está no DNA do brasileiro”, o cientista político Carlos Joel Carvalho de Formiga Xavier (Fundação Instituto de Administração, FIA e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas, Nupps da USP) comenta: “Não acredito que a corrupção no Brasil seja algo cultural, nem irremediável. O grande problema é a impunidade”. Seria possível entender que apenas uma mudança absoluta de ações para o aperfeiçoamento humano através da Educação teria eficácia plena. O drama ou tragédia é que nem governantes, tampouco parte da classe empresarial, gostariam de ver proliferar a tese da Educação. Manter o cidadão na ignorância rende dividendos incomensuráveis e dessa consideração pode-se entender o crescimento dos profetas políticos, que buscam no apoio desse povo desprezado e sem condições de percepção mínima o voto que os eterniza no poder. Nada a fazer. DNA da corrupção existiria não na totalidade da população, mas numa camada expressiva de nossa sociedade. Infelizmente, ela que decide neste país pouco afeito às concentrações populares reivindicatórias. Deveriam estas pleitear a dignidade contra a corrupção, mas para tal haveria a imperiosa necessidade da mudança interior, como bem salienta o leitor. Seria possível? O hipnotismo de milhares de demagogos espalhados pelo país sobre camadas da sociedade menos esclarecidas é quase barreira intransponível.   

Sob outra égide, perdeu-se o sentido da dignidade e as manifestações de Arte, como exemplo, sofreriam rápida degeneração, seja através da grande glorificação do nada como “qualidade intrínseca”, seja pela concentração em nichos de uma “Arte” voltada à ininteligibilidade com poucos mas ferrenhos adeptos. Há dias recebi e-mail contendo link de um pseudo cantor do Extremo Oriente, a vociferar uma “canção” de imprestável teor, mas com mais de 300 milhões de acessos!!! Público incalculável e bestificado o acompanhava. O nada transformado em “tudo”.

Foi a pensar no tema que me lembrei do Soneto nº 53 atribuído a Luís de Camões e constante de “Rhythmas”, cuja edição de Manuel de Lira data de 1595. Nele, o vate maior da língua portuguesa estabelece interpretações da palavra mudança. O instigante artista plástico e escultor português Carlos Nogueira (1947- ) ofereceu-me com dedicatória, em 1981, cópia de um de seus trabalhos que mais leva à reflexão, ” A Camões e a ti”. O terceiro verso do soneto em apreço, “Todo o Mundo é composto de Mudança”, permanece desde então sobre meu piano de estudo. Cada cidadão tem consciência de determinadas mudanças que podem nascer da interiorização. Que elas se direcionem ao sentimento solidário para o bem comum.

 

On the necessity of inner changes to bring outer changes and transform the world we live in a better place.