Três Filósofos Frente ao Piano


É raro os filósofos considerarem a música
de outra maneira a não ser como objeto de especulação.
É nos seus traços mais gerais,
nos seus caracteres mais permanentes
que a música se oferece regularmente às suas reflexões.
André Souris

O piano de Sartre, de Barthes e de Nietzsche
evidencia que uma tal escolha compromete todo o corpo,
o imaginário e os afetos, além do tempo musical.
Preferência que acompanha a vida pública,
as posições teóricas e políticas de cada um em relação à sua época.
François Noudelmann

São poucos os literatos e filósofos ao longo da História que tiveram intimidade com a prática musical. Há uma constante que faz prevalecer nas escolas a supremacia das letras sobre a música, entendendo-se esta como até “inferior” à literatura ou à filosofia. Os suplementos culturais de jornais preferenciam discussões, comentários ou críticas sobre textos literários, romances, narrativas, poesias, filosofia, sociologia… A música, quando abordada, geralmente o é por não músicos, e esse é um mal que persiste, infelizmente. Se a prevalência literária é fato nas escolas e nos meios impressos, permanentemente buscam os senhores da escrita fazer comparações de tal texto literário com a denominada música ou sonoridade subjacente. Paradoxal? Talvez.

Entre os filósofos, foram poucos aqueles que praticaram algum instrumento, souberam ler uma partitura, analisaram, mesmo amadoristicamente, uma composição. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) chegou a compor e a escrever sobre música, sendo um dos que se envolveu na célebre “Querelle des Bouffons”, quando se confrontou com o compositor e teórico Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Como músico, Rousseau só seria lembrado pelo grande pensador que foi. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) teve educação musical, praticou clarineta e não poucas vezes a música foi mencionada em seus textos filosóficos. Theodor Adorno (1903-1969), pensador alemão, seria crítico mordaz dos meios de comunicação de massa e seus escritos em que a música está inserida revelariam posições tantas vezes radicais e que poderiam externar frustações por ter sido pianista e compositor de predicados menores. Vladimir Jankélévitch (1903-1985), filósofo e musicólogo (também praticou piano), teve em seus numerosos livros sobre música um sentido solidário filosofia-música, a buscar o inefável como fator importante para a compreensão da obra musical e o mistério não possível de ser desvelado (vide em meu site: Jankélévith e os opostos sonoros em harmonia, na categoria Artigos).

François Noudelmann, escritor e professor da Universidade Paris VIII, ao pormenorizar-se em três filósofos relevantes, penetra em seu universo íntimo e nele encontrará o piano como instrumento motivador de considerações reveladas ou mantidas em segredo (Le Toucher des Philosophes – Sartre, Nietzsche et Barthes au piano. France, Gallimard, 2008, 177 pgs.). Jean-Paul Sartre (1905-1980), Friederick Nietzsche (1844-1900) e Roland Barthes (1915-1980) são os filósofos estudados sob o prisma do envolvimento pouco conhecido que mantiveram com piano em níveis rigorosamente diferenciados, mas a revelar a importância da música em seu universo doméstico e interior. O autor deixa claro que, de alguma forma, o piano fez parte desde a idade edipiana e que o convívio familiar, seja na prática ou na escuta dirigida, teria influência decisiva na incorporação da música como elemento até de equilíbrio para os três filósofos estudados. Frise-se que o piano foi instrumento a preponderar na educação musical na Europa durante o século XIX até a segunda metade do século XX. E de pensar que a ideia do livro nasceu de uma sequência filmada em 1967, na qual Jean-Paul Sartre toca piano na intimidade e justamente um Nocturne de um de seus eleitos, Chopin.

A vida multifacetada de Sartre, filósofo, escritor, partícipe da vida política da França, levou-o a engajar-se em muitos movimentos aos quais entendia necessário seu apoio na Argélia, Cuba, Indochina, Egito, Palestina-Israel, assim como em manifestações da Arte de seu tempo, o que evidencia a penetração em quase todas as esferas da cultura. Esse processo mental “escondia” contudo, publicamente, uma faceta íntima voltada à mais recôndita expressão do romantismo, seu afeto a determinadas obras de Chopin e de Debussy. Considere-se que a mãe de Sartre era prima de Albert Schweitzer (1875-1965), filósofo, teólogo, médico, organista e escritor. François Noudelmann reflete sobre a escuta de obras sacras na infância de Jean-Paul e também sobre a prática pianística num lar que, apesar da ausência do pai, que morreria quando o miúdo começava a existência, não foi desprovido de austeridade, afeto e até certo rigor. A presença da música e do piano essencial percorreria toda a vida de Sartre, apesar da “penumbra” em que procurou manter esse envolvimento. Sobre a maturidade do filósofo, Noudelmann escreve: “Sartre pode descobrir a escritura celular de Stockhausen ou decifrar peças de Messiaen. Era capaz de ler, tocar e interpretá-las. Ledo engano assim pensar! Ao estar só ao piano, tocava mais prazerosamente Chopin que os vanguardistas. Poder-se-ia acreditar que, à maneira dos amadores, esparsamente interpretava o repertório aprendido na juventude. Mas não: Sartre tocava assiduamente Chopin, ainda e sempre!” Estou a me lembrar da influência marcante do pensamento de Sartre sobre os jovens durante meu estágio musical em Paris. Era quase determinante. Li avidamente Les Mains sales, Le Mur, La Nausée, L’Âge de Raison, Le Sursis, Le Diable et le Bon Dieu, La P… Respectueuse, Morts sans Sépulture, das edições Le Livre de Poche. Devorava-os no metrô ou em algum banco de parque parisiense. Discutia com amigos, mas com o passar dos anos a “magia” dessa leitura seria atenuada.

Ao abordar Nietzsche, Noudelmann o situa como aquele entre os três que maior intimidade teve com a música. O filósofo alemão não apenas tocava piano com certa destreza como chegou a escrever mais de 70 composições, muitas para piano, sem originalidade, é fato, mas a conhecer os meandros da composição. Sua obra literário-crítico-filosófica não dispensa incursões na área musical. Elegeu, ao longo de uma vida atormentada que o levaria à demência, compositores determinados. Chopin, Schumann, Bizet, Wagner. Idiossincrasias transparentes fizeram-no mudar abruptamente de posições “sedimentadas”. Do convívio com Wagner e sua mulher Cosima (filha de Liszt e anteriormente casada com o grande pianista e regente Hans von Bülow) houve o fascínio pelo pensamento e a criação de Wagner e o repúdio posterior. Nietzsche envia a von Bülow uma obra para piano a quatro mãos, Manfred-Meditation terminada em 1872.  A crítica severa, cáustica e totalmente destruidora do renomado músico foi decisiva para um afastamento de Nietzsche da “ideologia” wagneriana. Nouldelmann entende Nietzsche um dissidente de sua época. Wagner representaria o moderno. Haveria uma nítida desconstrução de um mito antes aceito. A denúncia nietzschiana atinge toda uma necessidade de supremacia do autor da Tetralogia, a ser imposta através dos processos criativos mas profundamente egocêntricos. Assevera: “O teatro de Wagner tem necessidade de uma só coisa – os Germânicos!… Definição dos Germânicos: obediência e pernas longas… É muito significativo que o crescimento de Wagner tenha coincidido com o aparecimento do Império”. Nietzsche nessa idiossincrasia wagneriana, iria voltar-se às belas melodias de Carmen, de Bizet, e nesse novo “culto” não ficariam desprezadas a sua admiração inconteste por países como Itália, França e Polônia (Chopin), em detrimento da sua Alemanha. Transcreve segmentos de Carmen para o piano. Se Chopin teve lugar reservado entre seus afetos, considere-se que o afluxo musical iria servir, até como inspiração, aos textos literários mais expressivos. Insaciável, houve período em que Nietzsche buscava partituras de Schumann ou transcrições de ópera para realizá-las ao piano. Apenas em período determinado pelo conhecimento de um outro teclado, o da máquina de escrever, Nietzsche transfere sua digitação à novidade. Contudo, o piano seria sempre, frise-se, o companheiro do solilóquio sonoro. O amálgama música-texto filosófico a fazer, contudo, a história ungir o filósofo. Não escreveria: “Talvez Zaratustra pertença inteiramente à música, o que é certo é que ele pressuporia um verdadeiro renascimento da arte de escutar”. Como afirma Noudelmann: “Assim falava Zaratustra é um canto de glória, uma ascensão realizada, a cumeeira atingida após tantos caminhos incertos”. Para os estudiosos, Nietzsche teria de ser entendido nessa dupla atividade unificada de músico-filósofo e, como salienta François Noudelmann, pianista, particularmente. “O piano foi pois mais que um ‘instrumento’ para Nietzsche, não tendo sido apenas um meio de expressão, mas o espaço sonoro no âmago do qual o músico-filósofo definiu seus valores, suas medidas e suas intensidades”, segundo o autor. Num outro sentido, o da recepção posterior (não mencionada por Noudelmann, pois fora do contexto a que se propôs), o compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915) leria com fervor Zaratustra e seria decididamente influenciado pela obra. Suas composições e seus textos místico-filosóficos visando a uma união ideal Artes-Cosmos refletem essa influência. A última fase composicional de Scriabine pode ser apreendida a partir dessa transformação de seu pensar expressa nos escritos literários. Verdadeiro amálgama. Os textos de Nietzsche não teriam interessado Scriabine, igualmente, através da sedução poético-sonora?

Ao abordar Roland Barthes e sua relação íntima com o piano, Noudelmann perpassa as muitas configurações literárias e retóricas do filósofo, crítico literário, semiólogo, sociólogo e escritor francês. O instrumento musical também, no caso, seria partícipe das mais profundas reflexões barthesianas. Esse processo poderia advir de variadas situações. Quando definiu as preferências para emissões radiofônicas destinadas à France Musique, Barthes apresentou o tradicional mais ventilado, como Schubert, Schumann, Dvorak e até Maria Callas a cantar Bellini. Pelas ondas do Rádio confessaria, em instante de empolgação, amar a obra de Schumann. Nem por isso apresentava criações de compositores como Anton Webern (1883-1945). Toda essa atração musical em que o romantismo está presente poderia, paradoxalmente, estar na contramão do semiótico voltado a outros códigos. Assim como Sartre e Nietzsche, Barthes tem o piano como confidente. Elege Schumann em suas investidas pianísticas, a preferenciar as obras mais lentas. Haveria a nítida intenção barthesiana de livrar Schumann de sua coetaneidade e nacionalidade. Considerá-lo “não atual” e “não territorial” não viria ao encontro da célebre frase do musicólogo Maurice Beaufils, que considerava Schumann o mais francês dos germânicos? Num direcionamento que faz sentido, Barthes associaria Schumann a Fauré, Debussy a Ravel. Noudelmann salienta bem a percepção do toque pianístico amador, a visar contudo a realização “fiel” de uma partitura. Importaria mais, no caso de Barthes, uma relação quase corpórea com a música e esta aparentemente se dá na maneira como o pensador compreende compositores escolhidos e na interpretação velada.

Le Toucher des Philosophes tem interesse maior se apreendermos o espaço que os três autores preferenciados proporcionam à música. Se Jean-Paul Sartre receberia até carga genética e desde a tenra infância conviveria com o piano e repertório pequeno, mas escolhido amorosamente, se Friederick Nietzsche tem uma apreensão da música e do piano a beirar o profissionalismo, Roland Barthes captaria, através da sensação corpórea, teclado, som, entendimento, uma espécie de magia singular. Exceção a Nietzsche, Sartre e Barthes mantêm reservas a essas preferências exacerbadas ou íntimas de específico repertório romântico, mormente pelo fato de que suas imagens e ideias públicas já estavam sedimentadas. Na realidade, após a leitura do excelente ensaio de François Noudelmann, nós, músicos, podemos nos dar por redimidos. São tantos os literatos e filósofos que ignoram solenemente a música!

This post is an appreciation of the book Le Toucher des Philosophes (The Philosopher’s Touch), written by François Nouldemann. The French author focus on three philosophers and amateur piano players – Sartre, Nietzsche and Barthes – pointing out that the composers they elected and the music they played indoors are frequently discordant with their philosophical outlook, enabling us to read their inner thoughts and feelings against their musical preferences.