O Entendimento de Saint-Exupéry
Être homme,
est précisément être responsable.
Antoine de Saint-Exupéry
O post anterior, a tratar do texto Desiderata, de Max Ehrmann, estimulou muitos leitores. Um e-mail em particular chamou-me a atenção por concentrar em uma palavra a apreensão de Álvaro Cabrita Salles. A mensagem, curtíssima, expressava apenas a convicção do prezado leitor de que o texto poético reforçava incontáveis outras máximas ao longo da história e que estariam resumidas na palavra “responsabilidade”.
Quantas não foram as vezes em que externei minha admiração e fascínio pela obra de Saint-Exupéry (1900-1944), mormente Citadelle, que chegou a ser considerada a Bíblia do século XX. Essa certeza me fez lembrar das muitas interpretações, todas voltadas à elevação do homem nesse caminho em direção ao aperfeiçoamento. Ser responsável, na realidade, capta a essência essencial do ser humano e só poderia ser entendido como algo integral. Entrevistas do cotidiano veiculadas pela mídia tantas vezes apresentam determinado personagem envolvido em quantidade de atos irregulares e amorais, mas que professam, como exemplo, “responsabilidade” em relação à educação de seus filhos. A atitude frente ao significado do termo mostra-se-ia trincada, pois há falha original e a palavra perde substância.
O conjunto da obra de Saint-Exupéry exibe reflexões profundas sobre a condição humana sem subterfúgios e a exposição, não desprovida de metáforas, das virtudes e responsabilidades do homem e o almejo do bem como destino final. Visão utópica? Assim poderia ser interpretada, mas Saint-Exupéry não abandona, nessa longa construção, aspectos fulcrais voltados à dignidade, sem distinção da denominada “classe social”.
Ao longo de Citadelle, o pensador francês, como em seus livros mais difundidos, erige um vasto código moral e ético e insere conceitos que perpassarão toda a opera omnia. Dir-se-ia que palavras como fidelidade, amor, solidariedade, comprometimento, dever, verdade, rigor, virtude, fervor, responsabilidade e outras mais concentram a essência que o levará a aplicar suas reflexões em contextos diferentes. Saint-Exupéry não se contentaria em ser apenas o homem de ação que foi. Piloto que praticou a aviação no período heroico dos monomotores que atravessavam o Atlântico e o deserto do norte da África para entrega do correio, entendia os problemas mecânicos mais complexos daqueles frágeis aviões, consertando-os, “inventando” soluções, para que o volume de encomendas, cartas e documentos fosse entregue. O voo solitário tornou-o forte e durante as longas travessias esse imenso catálogo de qualidades humanas foi erigido, muitas delas permanentemente relegadas na atualidade, hélas.
Responsabilidade é tema recorrente em seus livros. Courrier Sud, Vol de Nuit, Pilote de Guerre, Terre des Hommes, Citadelle têm o ser humano responsável como eixo.
Em Le Petit Prince, esse encantador personagem não teria apprivoisé (criado laços, familiarizado) a raposa, a seu pedido? Não diria a raposa “só conhecemos as coisas com as quais criamos laços”? Decorreria dessa ideia a responsabilidade que perdura. Le Petit Prince é a síntese da síntese do pensamento de Saint-Exupéry, pois a concentração desse código moral está explícita num discurso suave e cativante.
Em Terre des Hommes , Saint-Exupéry relata, entre tantos corajosos feitos, o drama vivido por Henry Guillaumet (1902-1940) que ao cair nos Andes com seu monomotor Potez 25, quando a serviço da Compagnie Générale Aéropostale, caminha durante cinco dias e quatro noites apenas com a jaqueta de piloto numa altitude mortal para as circunstâncias, cerca de 4.000 metros. Esgotado, sabia que se parasse de andar prejudicaria seus amigos. Num esforço absurdo persiste. Prestes a fechar as pálpebras em incomensurável exaustão lembra-se de seus companheiros e de sua mulher, Noëlle, que não teria direito ao seguro, pois o corpo poderia ser considerado perdido após quatro anos. Retoma a força interior responsável e caminha incontáveis horas até ser encontrado por camponeses. Trata-se de um dos mais comoventes relatos de Terre des Hommes. Ao final da narrativa poética do drama vivido por Guillaumet, Saint-Exupéry considera a palavra responsável na sua dimensão maior a partir do amigo corajoso, efeito de sua ação: “Sua grandeza é a de se sentir responsável. Responsável por si mesmo, pelo correio e por seus camaradas que o esperavam. Em suas mãos, o desalento ou a alegria. Responsável pelo novo que se constrói e de cuja edificação gostaria de participar. Responsável, um pouco, pelo destino dos homens na medida de seu próprio trabalho. Ser homem é precisamente ser responsável. É conhecer a vergonha em face da miséria que não depende de si. É ter orgulho da vitória conquistada por seus camaradas. É sentir, ao colocar uma pedra, que contribuímos para construção do mundo”.
A obra deveria ter o nome Étoile par grand vent, mas teve o título alterado para Terre des Hommes por sugestão de seu primo-irmão, André de Fonscolombe. Tive o privilégio de conhecê-lo e durante quase dois anos (1959-1960), como relatei em post bem anterior, privei, em Paris, da amizade do Baron de Fonscolombe (André), de sua esposa e filhos. Todas as quartas-feiras frequentava seu apartamento na Av. Hoche, 4, para ouvir trechos de Citadelle lidos pela irmã do autor, Simone, que estava a preparar a edição da monumental obra para a Bibliothèque de la Pléiade (vide ilustração). No intervalo, tocava algumas obras que estava a estudar com Marguerite Long, amiga do Baron, e o acompanhava ao piano em algumas melodias francesas que gostava de cantar, Fauré, Debussy… Inesquecíveis momentos. Pertencente ao corpo diplomático, Monsieur le Baron partiria posteriormente para mais uma missão no Exterior.
Se a responsabilidade está a planar em Courrier Sud, Pilote de Guerre, Terre des Hommes e Vol de Nuit, livros com “enredos” compartimentados, mas tendo personagens reais, a palavra adquire o sentido da vastidão em Citadelle, obra una, mas constituída de reunião de textos esparsos que foram criteriosamente organizados. Dir-se-ia que o pensamento de Saint-Exupéry comunga, nessa obra atemporal, com os valores morais e éticos mais expressivos do homem. Em Citadelle, enciclopédia conceitual reflexiva, e no Le Petit Prince, sínteses da síntese, cria o piloto-escritor um ideário abrangente e onírico. O multum de Citadelle teria sua “sinopse” no minimo de Le Petit Prince. O vislumbre do irreal, não apenas no asteróide do menino príncipe, mas nesse reino imaginário de vastos espaços de Citadelle, dimensiona ainda mais as qualidades do grande pensador. E nessa edificação de um mundo utópico – o Templo a ser construído pedra após pedra -, a responsabilidade tão bem lembrada pelo leitor Álvaro tornar-se-ia a bússola que deveria guiar todo ser humano. Estaríamos abertos para a recepção das mensagens de Saint-Exupéry? O homem estaria preparado para esse caminhar pela História em busca do sentido pleno da humanidade? Temos de acreditar, nossa última salvaguarda.
This post is a reflection upon the many faces of the word responsibility in Saint-Exupéry’s works. The subject arose after an e-mail received from a reader, saying that the theme of messages of noble mood – such as the poem Desiderata – may be summed up in a single word: responsibility.