Tema Relevante a Despertar Reminiscências

Ele representou a  figura do pai no meu desenvolvimento psicológico
 - para o melhor e para o pior, como ocorre com a figura paterna.
Mas não me prejudicou. Poderia tê-lo feito.
Claudio Arrau (a respeito de seu professor de piano Martin Krause)

Novamente tivemos um post que propiciou inúmeras observações aos melômanos, músicos e praticantes de outras artes, mormente entre aqueles pertencentes à juventude da idade madura e à maturidade propriamente dita. Alguns pediram que fizesse comentários sobre o mencionado livro de Amy Fay. Prometo fazê-lo até o final deste ano.

Mencionei três casos típicos relacionados à idiossincrasia existente durante a transmissão da mensagem do magister e a assimilação ou não por parte do aluno. Não poucas vezes esse fato pode ocorrer pela inaptidão do discípulo ou mesmo negligência quanto aos estudos. Da parte do professor, temperamento e até situações do cotidiano podem determinar, inclusive, mudanças de atitude durante uma aula. Isso é absolutamente normal, mas não deveria interferir na transmissão musical. Preferiria restringir-me às mensagens que possibilitam estabelecer uma “estatística” concernente às atitudes de um professor, sejam elas tranquilas, atentas, generosas, indiferentes ou agressivas. Todas elas existem e, independentemente da competência do mestre, resultam num melhor ou pior aproveitamento por parte do discípulo.

Relatos por vezes pungentes atestaram o relacionamento do aluno com o professor de piano desde a tenra infância. A depender da condução na idade edipiana, difícil, desinteressada ou traumática, o miúdo poderá guardar pelo resto da existência uma postura até neutra com a música. A orientação serena tende a impulsionar o talento precoce na direção certa, a evidenciar os dons da criança, o técnico-pianístico sólido, a teoria, o solfejo, a leitura à primeira vista e as noções estilísticas dos vários autores. E foi esse tópico que mais me chamou a atenção, pois alguns jovens que estão em pleno e profícuo desenvolvimento – oxalá consigam singrar as águas que se apresentam no decorrer da existência -, têm ilusões e até certo temor de encontrar O Mestre, timoneiro a mostrar a rota segura com dedicação, competência e compreensão. Se bem aconselhado,  estará, em princípio, em terra firme, pois o comando não deixará dúvidas. Se cair em mãos não competentes ou negligentes, todo o mal estará concretizado e, se conseguir livrar-se dessas “garras”, terá um imenso caminho para recuperar tempo perdido.

Foi mencionada a cultura do professor a contribuir decididamente nessa transmissão professor-aluno. É item que tenho reiteradamente abordado como essencial. Oportuna a observação, pois mais um mestre é competente,  entendido como tal pelo aluno através do exemplo demonstrado na trajetória como pianista e preceptor, mais deveria estar engajado com a cultura, conduzindo o aluno às obras literárias relevantes, ao conhecimento das outras artes. A Música é parte essencial do todo, mas nunca deveria ser entendida como “o” todo. Sem a formação plena, uma lacuna estará aberta e quanto mais ela perdurar, mais claramente será sentida. Há intérpretes e professores que mantêm, inclusive, distanciamento voluntário do conhecimento, focando-se unicamente na performance ou na didática pianística. A formação plena do aluno não o interessa. E esses personagens existem, são reais, infelizmente.

Curiosamente, um amador adulto pergunta-me a respeito do professor “concurseiro”, ou seja, aquele que vê no jovem talentoso a oportunidade maior de desenvolvê-lo para os certames pianísticos. Já comentei esse tema em posts bem anteriores. Contudo, se a intenção no de profundis do orientador for essa, considero um simulacro a relação, menos por parte do aluno, que está em sala de aula para aprender, mas decisivamente por parte do que conduz, a entender o discípulo como a possibilidade de aumentar sua estatística pessoal de troféus. Se assim age, está-se diante de gigantesco equívoco, pois o menino ou jovem estaria a ser manipulado.  E volta-se ao post que deu origem a tantos e-mails. O concurso como única meta pode comprometer o relacionamento tranquilo e desejável, pois este tornar-se-á forçosamente mais tenso devido às pressões, ao stress e ao tempo existentes. Insisto que a transmissão objetiva, mas imbuída dessa serenidade interior desejável é a base sólida para o convívio. Sob aspecto outro, concurso pianístico basicamente não renova repertórios. E esse é um mal que atinge centenas, talvez milhares de jovens pelo mundo.

Um e-mail deixou-me a pensar. Refere-se um leitor à indiferença do professor, tema também tratado em vários posts. Meu dileto amigo Jorge tem razão ao comparar a indiferença ou desinteresse do professor na transmissão musical ao prato sem qualquer tempero. Ambos são insossos. O aluno poderá contagiar-se. Se tiver apoio familiar e chama interior, cedo buscará  safar-se dessas tragédias pedagógicas.

Amy Fay (1844-1928) comenta que seu professor, o legendário Franz Liszt (1811-1886), certa vez se indignou com uma aluna de apenas 15 anos, atirando a um canto da sala a partitura do Scherzo em si bemol menor de Chopin. O excelso pianista, compositor e magister arrepender-se-ia e, dirigindo-se à casa da jovem, prometeu-lhe duas aulas prolongadas, não sem antes pedir as desculpas devidas. As sessões se passaram  com a maior das atenções e a jovem cresceu com o episódio. Aliás, Fay considerava Liszt o exemplo mais perfeito do professor, pois supercompetente, pianista legendário e amável, generoso, mas enérgico se as circunstâncias assim determinassem. Essa generosidade ficaria expressa na ajuda referencial a Wagner e a tantos outros músicos. Pouco a pouco Liszt despojou-se de seus pertences e ao morrer não mais possuía qualquer bem material, mas legara à humanidade um acervo composicional dos mais importantes para a história da música.

O desenho de minha filha Maria Fernanda fixa uma de minhas últimas aulas na Universidade de São Paulo. Paulo Marcos Filla, aluno ouvinte desses derradeiros encontros na Academia, ofereceu-me bela montagem em acrílico, onde inscreveu frase sensível: “O verdadeiro professor não busca extrair o melhor do aluno, mas, sim, criar as condições para que este ofereça o melhor de si”.

O debate longe está de ser encerrado. Ao longo do tempo retornaremos ao tema, sob outra égide. 

This week’s post resumes the subject of the relationship teacher/student. Thanks to input received from readers, this time I consider the relevance of a teacher’s cultural background to encourage informal learning - outside the academic programs - among students as an enhancement to formal education; the risks of his interest in piano competitions as a means to promote himself; negligence and indifference in class. It ends with the words of my former student Paulo Marcos Filla: the true teacher does not seek to get the best from his students, but to create conditions for students to give their best.