Região Plena de Encantos
Circunstâncias agradáveis levaram-nos à Baixa-Normandia. Lá estive em 1959, a visitar Deauville, Trouville e Honfleur. O regresso deveu-se a uma visita amistosa ao compositor François Servenière e sua encantadora família, que habitam Blangy-le-Chatêau.
Partimos de comboio da estação Saint-Lazare, em Paris, e em menos de duas horas, passando por cidades como Pont-l’Évêque (do renomado queijo) e Lisieux (cidade de peregrinações voltadas à Sainte Thérèse de l’Enfant Jesus, ou Santa Terezinha do Menino Jesus, da ordem das Carmelitas descalças), chegamos a Deauville, onde Servenière nos esperava. Permanecemos menos de vinte e quatro horas na linda região da Baixa-Normandia, pernoitando em Deauville, bem em frente ao Porto. Sempre acompanhados pelo dileto amigo, foi-nos dado o prazer de ouvir pormenorizadas observações a respeito de uma região com história, tradição diferenciada a partir das próprias construções nas comunas e, sobretudo, repleta de belas paisagens, mas preenchidas por moradias de diversos períodos e estilos. Normandia que não nos deixa esquecer os episódios trágicos do célebre dia D e suas consequências logo a seguir, durante a Segunda Grande Guerra, quando milhares de jovens perderam a vida, mas fincaram as bases para a libertação dos povos. Casamatas alemãs ainda podem ser encontradas quase frente ao mar.
Apesar de toda a notoriedade, Deauville pareceu-me agora, como há mais de 50 anos, menos interessante do que Trouville ou Honfleur. Após ser erigida Estação Balneária em meados do século XIX, surgiram com o passar dos anos inúmeras outras construções, muitas delas palacianas, cassino famoso, pistas para treinamento e corrida de cavalos. Deauville abriga festival do cinema americano, congressos de toda a sorte e tantas mais atrações voltadas aos aspectos por vezes mundanos e superficiais do ser humano. Inúmeras demolições, muitas delas de casas com perfil histórico, estão a se processar. É, pois, frequentada preferencialmente por detentores da economia, artistas prestigiados, políticos e cidadãos mais afortunados. Logicamente, Deauville não tem apenas essas características, pois um certo charme persiste em muitas construções, no porto, no mercado…
Honfleur é simplesmente encantadora. Lá nasceu o compositor Erik Satie (1866-1925). Com sua arquitetura típica, ruelas com construções geminadas e diferentes, por vezes lembrando miniaturas. Diante da casa que viu nascer o autor das Gymneopédies, como não visualizar as travas rústicas de madeira que sustentam as estruturas externas da morada e não pensar nas organizações musicais do compositor, por vezes tão imbuídas de rude escritura? Digna de atenção, a Igreja de Sainte-Cathérine, cuja nave em madeira, da segunda metade do século XV, tem o formato de um fundo de grande barco invertido. Construída após a Guerra dos Cem Anos, interessa o fato dessa utilização de material próprio à construção dos barcos dessa pequena localidade voltada para o mar. O todo é harmonioso.
Ao adentrarmos uma das galerias da cidade, Sainte-Catherine, deparamo-nos com obras do escultor francês Bruno Catalano, nascido no norte da África em 1960 e que, a partir de 1990, criou um modelo escultural que desdobraria em incontáveis situações, o homem e seu destino, que abandona fragmentos corporais ao partir. Cria o artista uma atmosfera que impressiona pela realidade latente do ser humano, que deveria, na essência, estar voltada ao desapego, mas que dificilmente consegue se liberar de tantos acúmulos. Segmentos do corpo no vazio sintetizam o desprendimento, e a indefectível mala, sacola ou valise são símbolos do conteúdo que deve acompanhá-lo na trajetória. Solicitei à gentil Céline, da referida galeria que me enviasse uma foto da escultura em bronze de Catalano, “Le destin du voyageur”, com mais de dois metros, e prontamente fui atendido. Partilho-a com meus leitores.
Pelas ruelas de Honfleur continuamos o passeio e uma casa chamou-me a atenção pelo emprego de tantos materiais. Minúscula, parecia traduzir todas as dificuldades e privações dos moradores ancestrais para a construção que os abrigasse, protegendo-os dos fortes ventos e do inverno nessa região voltada para o Atlântico Norte.
Já ao final da tarde dirigimo-nos a Blangy-le-Chatêau (circa 670 habitantes), para o jantar em casa de François Servenière, sua encantadora esposa Elise e os filhos menores, Ambre e Tom. Dádiva do entendimento. Nossa correspondência em dois anos já ultrapassou 700 páginas. Música, artes, literatura, cotidiano e, hélas, política são temas recorrentes. Nosso desencanto quanto a esse último tema é recíproco. Servenière é compositor autêntico e um sábio. Por vezes, com seu consentimento, compartilho seus e-mails escritos em francês literário com amigos diletos, sabedor de que haverá uma recepção sempre extasiada devido ao conteúdo essencial. Uma raqlette servida com todos os ingredientes que se fazem necessários selou uma noitada inesquecível.
Pela manhã, o amigo acompanhou-nos do hotel em Deauville à estação ferroviária Deauville-Trouville. Ainda tivemos tempo, sob frio e chuva, de passear pelo passeio frente à praia. Em 1959, na visita que fiz com amigos às cidades da região em pleno inverno, andamos pela areia praiana e, em certo momento, tracei uma linha para um salto à distância, realizando-o. Com humor, François observou: “é possível haver ainda a linha demarcatória”.
No trajeto de volta não deixei de refletir sobre a passagem dos anos. A visita de 1959 vinha-me por inteiro e os 54 anos de distanciamento ratificariam certas constâncias ao olhar o que nos circunda. Alterações houve nessas pequenas cidades. Em Deauville elas são mais notórias devido ao afluxo turístico e a essa vocação já mencionada. Todavia, as modificações menores nas outras localidades não estariam em conformidade com certas determinantes que já existiam naquele jovem que eu fui? Transformações que não esquecem a arquitetura do passado. Elas podem ser encontradas também na interpretação pianística, mas a indicar sempre a origem. Nosso DNA não nos deixa trair características essenciais. Salvaguarda? Talvez.
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