Quando Opinião Sensata Desperta Comparações
Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Agostinho da Silva
O artigo de Lauro Lisboa Garcia “As Cores e Desenhos da Música”, publicado na Revista Pesquisa Fapesp de Abril-2013, focaliza pesquisa da compositora erudita e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Denise Garcia. De interesse os aprofundamentos da professora no campo da música eletroacústica.
Chamou-me a atenção o fato de que a pesquisadora, segundo o autor do artigo, ter como objetivo estudar obras compostas sob o manto da eletroacústica. Todavia, mais impacto causou-me a colocação da professora frente às criações de um passado tecnológico recente. “Nas peças mistas de Gilberto Mendes havia coisas criadas para toca-discos e discos da época que desapareceram”, observando a seguir que “não dá pra remontar essas peças com a mesma tecnologia anterior”.
Ao longo dos últimos anos tenho me pronunciado em artigos e palestras no Exterior sobre o debate cravo x piano não ter mais sentido. Compartilhava a posição do ilustre musicólogo François Lesure. Em Janeiro, após meu recital de piano em Paris, um jovem cravista disse-me que, apesar de meus cinco CDs executando ao piano obras originalmente para cravo terem obtido guarida, achava que o repertório a que se dedicava deveria unicamente ser interpretado ao cravo. Sucintamente dei explicações, recomendando inclusive, que se detivesse em minhas explicações mais esticadas que estavam a ser conhecidas através de “Témoignages”, livro que acabara de ser publicado pelo Observatoire Musical Français, sob a égide da Université Paris Sorbonne.
A problemática giraria em torno da tradição. A se considerar que o desaparecimento do cravo da cena musical, do final do século XVIII ao início do século XX, tornando-o silencioso por mais de 100 anos, fez com que todo o repertório original para cravo fosse transferido para o piano-forte inicialmente e para o piano poucas décadas após. Em França, a Revolução foi implacável com o instrumento monárquico, banindo-o do Conservatório de Paris cerca de dez anos após a eclosão do movimento. O piano-forte ganharia espaço, cedendo-o décadas após ao piano, evolução sensível daquele. Uma tradição oral, mestre para aluno, tornou o repertório para cravo aceito totalmente por compositores e pianistas. Louvações de Beethoven, Chopin e Schumann à obra de J.S.Bach interpretada ao piano, execuções públicas de Liszt tocando J.S.Bach e Scarlatti, outras mais de Saint-Saëns referentes a Jean-Philippe Rameau ou de Isaac Albéniz no caso de Scarlatti, evidenciam a plena familiaridade que esses grandes músicos, durante todo o século XIX, tiveram com o repertório para cravo - interpretado ao piano - e que chegou incólume nessa configuração até os nossos dias. O tema já foi tratado em posts bem anteriores sob outros contextos.
A redescoberta do cravo nos primórdios do século XX despertaria um interesse crescente pelo repertório original composto para o instrumento. A trajetória do cravo deu-se de forma natural a partir desse renascimento, tanto na restauração de instrumentos de época como na construção de réplicas, por vezes com determinados aperfeiçoamentos. Os adeptos do cravo passaram a reivindicar a certa altura a primazia absoluta de repertório, que navegara naturalmente para outro instrumento, o piano. Para os cravistas do século XX, contudo, a tradição da oralidade, transferida de mestre para aluno, perdera-se para sempre, pois um século de silêncio sonoro levou indubitavelmente ao esquecimento auditivo. Sob que égide tocavam os cravistas dos séculos XVII e XVIII? Qual a flexibilização agógica por eles adotada em países com tradições diferenciadas como França, Alemanha e Itália, como exemplos? Quais as concepções sonorísticas, técnico-digitais, gestuais por ele praticadas? O sepultamento provisório de um século teve tributo a pagar. Tiveram pois os cravistas de edificar uma outra tradição, não a sonora auditiva transmitida pela oralidade e auscultação, mas através das partituras e tratados. Fizeram-no muito bem. Tratados professam literariamente temas fulcrais que serviriam para a edificação de outra tradição, mas não a partir do som. E no mister do aprofundamento, cravistas ilustres mostraram-se competentes, pois as melhores edições urtext de uma produção imensa, escrita em pleno reinado dos vários modelos de cravo, foram por eles realizadas. Paradoxalmente, essas edições têm servido aos pianistas, pois esclarecem e ratificam uma já embasada tradição. Ou seja, devemos aos cravistas como Santiago Kastner (Carlos Seixas), Ralph Kirkpatrick (Scarlatti), Kenneth Gilbert (Rameau) excelentes edições a partir de fontes primárias.
O pianoforte primeiramente e o piano que vem na continuação histórica, surgiram pela necessidade do homem de ver ampliados seus anseios por novas possibilidades sonoras. Até chegarmos aos magníficos pianos Grand Concert, fabricados por respeitadas firmas acima do equador, uma longa caminhada evolutiva se deu. Inicialmente, ainda no século XIX, a revolução industrial chegaria às chapas metálicas resistentes à tensão das cordas, fato que as chapas de madeira não conseguiam. Cordas de aço da região médio-grave e grave do piano se tornaram mais grossas com o reforço de cobre, a fim de suportar tensões acima de tonelada. Beethoven, como exemplo nítido, à medida que assistia ao desenvolvimento do instrumento, “ampliava” a escrita para atender à paulatina extensão do teclado.
Nessa contínua evolução, o piano acolheria o repertório para cravo, doravante praticado no cotidiano. A tradição, mercê basicamente da oralidade na transmissão, a interpretação de pianistas frente ao público que assimilara naturalmente a incorporação desse repertório, teria longo curso permanecendo até o presente.
Perguntaria o leitor: Qual a razão dessa argumentação? Diria que a frase da professora Denise Garcia, mencionada na abertura do post, leva-nos a considerar o conteúdo. A “heresia” relacionada à interpretação da obra cravística ao piano, propagada pelos cultores da chamada Música Antiga, heresia esta definitivamente sem sentido nos dias de hoje, propiciaria colocações.
Assim como “não dá pra remontar essas peças com a mesma tecnologia anterior”, citada pela docente ao referir-se às peças mistas de Gilberto Mendes, devido à incrível evolução tecnológica das últimas décadas, assim também os “profetas” dos cinco decênios da segunda metade do século XX não retornariam aos jurássicos e enormes aparelhos eletrônicos do período que executavam suas obras. Entenderam a evolução tecnológica natural, adaptaram-se. O work in progress tão decantado seria, em outro contexto, resultante dessas conquistas tecnológicas. A tradição interpretativa da obra para cravo ao piano é consagrada há mais de dois séculos, mercê da evolução do piano como instrumento sempre a receber aperfeiçoamentos sensíveis. O comentário do jovem cravista acima mencionado evidencia certo radicalismo. Seria impossível o recuo, pois a tradição pianística de interpretação do repertório escrito para cravo é fato irreversível. Está-se a falar, inclusive, da origem da técnica aprendida pelos pianistas e que alçaria voos na criação posterior dos grandes compositores românticos. Lembremos que o cravo, clavecin e clavicembalo atingiram em meados do século XVIII o ápice possível, e piano-forte e piano foram consequências de pensares atentos ao caminhar da história, alcançando este último um estágio avançado em meados do século XX, mas sempre a progredir em sensíveis pormenores. Saudosistas, parcela ínfima de pianistas, praticam e gravam em instrumentos da família do piano-forte e em pianos do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Opções, opções…
A salvaguarda do cravo foi sua redescoberta nas fronteiras dos séculos XIX-XX. A restauração de antigos instrumentos, mas sobretudo a fabricação de novos cravos conforme normas de séculos anteriores, com acréscimo natural de descobertas de novos materiais, fez com que o repertório original para cravo retomasse novamente seu curso primevo. Isso é bom, salutar. Mesmo a enorme diferença entre a interpretação de cravistas geograficamente distantes levará um dia a um quase consenso, realidade existente entre os pianistas que acompanharam ao longo de dois séculos a sacralização, com variantes, da interpretação. Nós, pianistas, nada temos contra a execução das obras em seus instrumentos de origem. Possibilita a comparação da escuta. Contudo, historicamente, o repertório para cravo só se integrou definitivamente na programação pianística graças à longa tradição oral, sonora e através da prática diuturna. Se houve uma noite sombria durante mais de um século para o cravo, o que é documentado através das composições dos grandes mestres do século XIX, que não se lembraram do instrumento, esse é um fato histórico e irrefutável.
Convivamos na confraternização. Cravo e piano ainda assistirão a grandes intérpretes percorrendo o vasto repertório qualitativo. Seria lógico ponderar que concepções de cravistas e pianistas partem de tradições e pensares diferentes. O repertório continuará seu caminho através das duas vias. A música agradece.
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