A Perenidade Qualitativa

Je suis devenu français d’abord dans ma tête,
dans mon cœur, dans ma manière d’être, dans ma langue.
Je suis devenu français.
C’est-à-dire que j’ai abandonné
une grande partie de mon arménité pour être français.
Il faut le faire ou il faut partir.
Charles Aznavour
(entrevista concedida a Marc-Olivier Fogiel para a RTL, 28/02/2013)

Nossas filhas Maria Beatriz e Maria Fernanda nos ofereceram um belo presente de Bodas de Ouro e fomos os quatro assistir a uma apresentação de Charles Aznavour no último dia 16, em sala de espetáculo absolutamente repleta. Sabiam de minha admiração rigorosamente inconteste por esse mito da canção francesa desde a época de estudante de música em Paris, de 1958 a 1962. Aprenderam com o pai a também admirar determinados cantores desse período de ouro em que Frank Sinatra, Bing Crosby, Tony Bennett, Amália Rodrigues, Nat King Cole encantavam público outro. Tivemos mais tarde Elis Regina, a única neste país a ultrapassar a fronteira que leva à excelência.

Novo perfil  surgiria com os Beatles, Elvis Presley , Rolling Stones e a ascensão do Rock. Com esse gênero mutante, abrir-se-iam as portas para a elevação estratosférica de decibéis, feérica iluminação, trajes e costumes esdrúxulos, gestuais desconectados para o delírio de multidões que, à la manière da juventude nazista, acenam uniformemente braços acompanhando aos berros os grupos estrangeiros que visitam o Brasil. Outros tantos conjuntos de nosso solo, sejam eles baianos em seus trios elétricos; sertanejos descaracterizados e sem raízes que, em duplas  proliferam neste país; roqueiros para todos os gostos desses distintos bandos de aficcionados. Nesta última categoria, prostam-se diante de ídolos estranhos, fartamente tatuados, que percorrem endoidados os palcos, preferencialmente erguidos em grandes espaços abertos. Dias antes muitos já ficam acampados à porta das bilheterias. Histeria pura.  E a mídia, sempre a faturar, dá imensa guarida a essas “tribus” acampadas antes de eventos caríssimos e coloca microfones entrevistando jovens que, realmente nada têm a dizer. Constatações. A “música”, ou quaisquer outros sinônimos, quiça antônimos, é mero pormenor.

Regressemos a Charles Aznavour. Ao adentrarmos a ampla sala de espetáculos, observamos que parte considerável do público era constituída por cidadãos da terceira idade ou da idade madura. Garantia de que, em princípio, haveria silêncio durante a apresentação, apesar de garçons rápidos e treinados atenderem à clientela sentada frente às mesas. Essa audiência habituara-se desde o passado a respeitar o artista remanescente da “idade de ouro”. E o que ouvimos levou todos à comoção.

Charles Aznavour dispensa comentários. Para aquele que não o conhece mais profundamente, o acesso ao Google mostrará com pormenores a bela trajetória do cantor, compositor, ator e cenógrafo francês de origem armênia.

Ouvimos um mito a poucos dias de seu octogésimo-nono aniversário. Movido por uma energia descomunal e possuidor ainda de timbre vocal inconfundível, durante hora e meia, sem abandonar o palco, Aznavour desfilou canções de seu imenso repertório e não faltaram alguns hits que fazem parte do cancioneiro universal: Que c’est triste Venise, She, Ave Maria, La Bohème

Impressiona o impacto que causa a legendária voz rouca do cantor a seguir a frase musical com impecável rigor. Não sem motivo, Aznavour, ao explicar algumas de suas letras e canções, afirmou a importância do texto para a perfeita adequação à chanson. Aquele precisa possuir contorno, plasticidade, rima para que, acoplada à boa canção, resulte em obra de qualidade, como disse. Implica duas categorias de textos: a poesia, que contém  flutuação “melódica” natural e respiração essencial, necessita de um grande mestre para vertê-la em música, e a letra expressamente concebida para a canção, que se estiola sem estar acoplada aos sons. A certa altura do espetáculo, após individualizar cada um dos poucos músicos que o acompanham na tournée, afirmou que durante muitas décadas teve como pianista profissionais da área, mas que, chegado à atual faixa etária, buscou um pianista “de nível superior” (suas palavras) e encontrou num laureado do dificílimo concurso internacional Fréderic Chopin de Varsóvia o intérprete preciso. Frise-se a alta qualidade de mais dois tecladistas, guitarrista, duas vocalistas, um baterista. Todos em harmonia, sem jamais alcançar nível sonoro insuportável, tão característico dos espetáculos destinados a outra categoria de frequentadores. Frise-se a precária condição acústica do Espaço das Américas.

Assim como comentei a apresentação de outro mito, Carlos do Carmo, fadista impecável, o que se percebe é que o público tradicional da canção respeita a interpretação e o silêncio se faz. Carlos do Carmo, que fora precedido por grupo amante dos altíssimos decibéis em música descartável, exigiu silêncio da platéia que lotou o salão da Casa de Portugal o que de fato ocorreria (vide Carlos do Carmo e a Magia do Fado – Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música, 29/01/2010). Charles Aznavour manteve en suspense um público atento, admirado e entusiasta ao fim de cada peça apresentada. Discreto em seu gestual, sabe transmitir na plenitude o conteúdo que o público dele espera. Suas canções são verdadeiros hinos à vida e ao amor.

Infelizmente, esses grandes artistas da canção estão chegando ao fim. As novas gerações, inundadas pela parafernália do nada e que têm a sustentação integral do Sistema, desconhecerão dentro de poucas décadas o sentido da música essencial destinada a um gênero de musique de variétés.  Poder-se-ia acrescentar que a canção popular perpetrada por tantos artistas de mérito, entre eles Charles Aznavour, continuará sua trajetória a partir de público menor, mas infinitamente mais seletivo em suas escolhas sonoras. Mario Vargas Lhosa, em recente conferência sobre o estágio atual da Arte, entendendo-a por vezes como palhaçada que interessa ao Sistema, afirmou que “se nos dedicarmos à pura brincadeira, a cultura desaparece e nosso mundo se empobrece”.

 After a concert with Charles Aznavour in São Paulo, I couldn’t help comparing the qualities of this French pop legend – good songs, great lyrics, selected audience – to the crappy pop music of today with performers without singing talent, pathetic lyrics, noise, crowds standing up, screaming and waving their arms in a frenzy, sadly concluding that pop music just isn’t what it used to be at the “golden age” with Frank Sinatra, Nat King Cole, Bing Crosby, Amália Rodrigues, Tony Bennett and Aznavour himself and that quality is falling over time.