Considerações que Surgem
Como nada entenderam do passado,
nada podem sonhar para o futuro.
Agostinho da Silva
Minha mulher Regina e eu fomos ao consultório do Prof. Dr. Heitor Ulson. Nesses últimos anos o ilustre médico realizou as cirurgias em minhas mãos para sanar-me de mal, a “Rizartrose”, que é terrível para os pianistas, entre tantas outras ocupações em que a destreza faz parte do bom desempenho. Teve pleno êxito, e eu agradeço ad eternum ao competente cirurgião, primo irmão de Regina. Seu consultório fica em frente ao Hospital Samaritano, um dos mais respeitados da cidade.
O leitor poderá perguntar-se: “o que há de dramático nisso?” Um elemento poderia estar na quantidade de pacientes que, em sites internacionais, lamentam ter realizado a cirurgia. Tiveram plena esperança e o resultado não foi bom. Uma segunda reflexão sobre nossa triste realidade deu-se quando de nosso regresso à cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo (c.13km), que pode ser feito em 20 minutos durante um sábado à tarde ou domingo – não é garantia -, e durou duas horas e mais esses 20 minutos. Acidentes no percurso? Nenhum. Congestionamento extraordinário e, se de lá saímos às 17:30, cá chegamos às 19:50. No dia seguinte, meu caríssimo amigo Magnus e sua esposa Kátia (casaram-se em Julho) vieram até nossa casa para jantar em um bom restaurante próximo que ainda mantém – raríssima exceção – preços razoáveis. Saíram da Vila Madalena (c.12km) e demoraram mais de duas horas nesse curto trajeto.
Vêm a propósito palavras recentes do Ministro da Fazenda, Guido Mantega, que afirma com convicção – nesse momento difícil por que passa o país – entender bem positivamente o crescimento da produção de veículos automotores e a expansão da construção civil (sic). Essas palavras podem iludir a tantos incautos e, certamente, agradam aos empresários dessas “forças motrizes” do processo de “desenvolvimento”.
O leitor poderá perguntar com seus botões: “o que existe de dramático nesse crescimento”? Se pensarmos na cidade de São Paulo como megalópole desordenada, entenderemos as sábias palavras de um dos mais notáveis prefeitos da cidade de São Paulo, o Engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994) – o outro foi certamente Prestes Maia (1896-1965) – que, no início da década de 1970, proferiu a célebre frase, a dizer que São Paulo “precisava parar de crescer”. Uma cidade utópica foi imaginada pelos que pensavam a urbe de maneira humanística. Ledo engano. Infelizmente, Figueiredo Ferraz ficou pouco tempo à frente da Prefeitura e suas palavras se volatizaram.
Estatisticamente, o crescimento do número de veículos produzidos pelas montadoras bate recordes constantes e, pela lógica, aumentou assustadoramente a quantidade deles em São Paulo. Temos bem mais de 7.000.000 de veículos emplacados na cidade, assim como um número acima de 800.000 motos. Sob o aspecto da construção civil, há o incentivo permanente do governo, possibilitando financiamentos que se estendem a perder de vista. Na contramão do mínimo espírito de bom senso e no intuito de assistir ao aumento da produção de veículos e da construção civil, o Ministro da Fazenda enaltece esse crescimento que, para as grandes cidades, já é tragédia em curso. Essas mais de duas horas que Magnus e eu, em dias diferentes, demoramos num curto trajeto serão certamente duplicadas em pouco tempo, mormente pelo fato de que a malha viária está saturada, não há praticamente espaço para alargamentos das vias, mas o volume de carros só aumenta. Transporte urbano? Que o cidadão ensaie entrar em metrô na hora do rush na Praça da Sé ou pegar um ônibus nesse horário na Av. Santo Amaro ou em outras incontáveis avenidas e praças da cidade! Numa divagação, o metrô teria um aumento “aritmético” de suas possibilidades, enquanto assistimos a um progresso “geométrico” de veículos, provocando o entupimento de nossas vias carroçáveis.
A jornalista Míriam Leitão, em artigo de plena lucidez – “No meio do redemoinho” – publicado em seu blog de O Globo (14.08.2013), escreve: “Tudo o que podia ser feito de errado foi feito, e tudo que podia dar errado, deu. E os problemas se juntaram em um nó cego. O governo incentivou a compra de carros com redução de IPI para aumentar o crescimento econômico. Não conseguiu o que queria, mas multiplicou os carros nas ruas, entupindo o trânsito e tornando a mobilidade urbana desesperadora”. A verdade é que realmente tudo está a apontar para a paralisação total das grandes urbes, sob os olhares anuviados do Planalto. O caos já é realidade, mas incentivam a produção e as grandes cidades, sem mais espaço nas vias públicas, agonizam.
Um outro caos está por vir. As construtoras, ávidas por lucro, concentram-se na região central da cidade. Edifícios com mais de trinta andares pipocam por todos os lados do centro expandido. Um ex-colega em comissões na Universidade de São Paulo, o ilustre Professor Ivanildo Hespanhol, especialista em engenharia sanitária e ambiental, já apontava, em conversa que tivemos numa das reuniões da Academia, para a crise dos recursos hídricos e a necessidade imperiosa da cidade pensar no reuso da água. O desmedido estímulo à construção civil, o consumo cada vez maior, faz com que o abastecimento da megalópole tenha de vir progressivamente de regiões mais distantes, pois basicamente parte do fornecimento depende de captação de água na vizinha Bacia Hidrográfica do Piracicaba-Capivari-Jundiaí.
Estão os dirigentes das montadoras ou os incorporadores de imóveis preocupados com os pósteros? É claro que não. Não é uma espécie de “crime” contra seus próprios descendentes, para não mais dizer, o legado que deixarão, ou seja, a cidade travada, os recursos hídricos a se estiolarem, a poluição a destruir a saúde, o que provoca desajuste social, violência, diminuição do convívio familiar, mercê do stress excessivo? Não estaria a palavra corrupção sempre a rondar conluios estranhos?
Longe estamos de sequer imaginar o conteúdo da “Utopia”, de Thomas More (1478-1535). Seria demais para os cidadãos habituados às contínuas mazelas de governantes e poderosos. Mas a essência que moveu São Thomas More teria certa semelhança com o que estamos a assistir, considerando-se o que o levou à sua obra imorredoura. Inglaterra e os camponeses na miséria, a realeza só a pensar no poder e na riqueza e uma Justiça extremamente cruel no período.
Sim, um mundo utópico a partir das palavras mencionadas do Prefeito Figueiredo Ferraz foi idealizado pela nossa geração naqueles anos 1970. Esvai-se ante a sanha desse Leviatã que tudo devora. Planalto, classe política, montadoras, empreiteiras, incorporadoras… Nada a fazer, a não ser esperar pelo pior, que já bate à porta.
Two key problems, among others, are affecting the mental and physical health of dwellers of large cities in Brazil: gigantic traffic jams due to our constantly growing automobile fleet and the irrational construction of skyscrapers within the expanded city centres. Authorities – unable to see beyond the immediate future – encourage both, which they see as two of the driving forces of the Brazilian “development”.