Quantas Revelações se Fazem Presentes

Aquele que foi não pode doravante não ter sido,
pois esse fato misterioso e profundamente obscuro
de ter vivido é seu viático para a eternidade.
Vladimir Jankélévith

Marisa, viúva de nosso saudoso amigo Luca Vitali, tem mantido conosco a relação de amizade que nos fez tão próximos ao longo dos anos. Veio dela uma pergunta intrigante a respeito da fotografia e das tantas interpretações que dela podemos inferir. Trata-se de tema muito estudado, com resultados por vezes surpreendentes, pois uma foto pode apresentar verdades que um texto dificilmente desvela. Fotografia e texto literário têm muito a “dizer”, não apenas do objeto, da natureza, da figura humana e até do imaginário. A fotografia é uma Arte e a leitura da imagem um dos exercícios de maior interesse. Sob contexto outro, a polícia investigativa tem no pormenor do pormenor de uma foto, tantas vezes, os indícios que levarão à solução de um crime.

Selecionei fotografias de músicos que bem revelam preferências, índole e até conformação física para tentativa de explicação da obra produzida. Trata-se de uma infinitesimal amostragem. Os compositores Claude Debussy (1862-1918), Henrique Oswald (1852-1931) e Alexander Scriabine (1872-1915) apresentam ingredientes reveladores, suscetíveis de leituras através das imagens.

A atração que a arte do Extremo Oriente teve sobre Debussy é comprovada. Sabe-se da impressão decisiva que as troupes, que apresentaram músicas e danças de Java e dos anamitas durante a Exposição Universal de Paris em 1889, provocaram no compositor. Ter conhecido a fina arte da gravura japonesa foi outro fator decisivo. Sua música se impregna de escalas e sonoridades vindas do longínquo. Comprova-o a leitura da fotografia com Stravinsky, tirada em sua casa na Avenue du Bois de Bologne em Paris (1910). Duas gravuras que representavam o afeto do compositor francês por esse gênero: de Katsushika Hokusai (1760-1849), a célebre La Vague, que teria inspirado o tríptico sinfônico La Mer; e na mesma foto que ilustra este post, logo abaixo, possivelmente uma gravura de Kitagawa Utamaro (1753-1806). Essa fixação estaria explícita na carta de Debussy a seu amigo e editor, Jacques Durand, após finalizar aquela excelsa criação para piano, os doze Estudos: “Ouf!… A mais minuciosa das estampas japonesas é um brinquedo de criança ao lado do grafismo de certas páginas, mas estou feliz, é um bom trabalho” (30/09/1915). Ao acessar o YouTube o leitor poderá ouvir alguns Études de Debussy que gravei na Bélgica para o selo De RodePomp. Quantas não são as obras em que o compositor francês expressa a incontida admiração pela arte gráfica e sonora vinda do Extremo Oriente!

Tantas outras fotos de Debussy, ao serem perscrutadas, revelam parte essencial de seu universo sonoro. Amigos pintores (não impressionistas, frise-se), poetas e intelectuais  prevaleciam sobre amizades de músicos. Fotografia reveladora apresenta Debussy em casa do poeta Pierre Louÿs (1870-1925), autor da imagem (1897) do compositor com Zohra ben Brahim, algeriana, irmã de Meryem-bent-Ali. O poeta escreveria “Eu recomecei inteiramente Bilitis a partir do dia em que a vi”. Três das Les Chansons de Bilitis (1894), uma das mais importantes obras de Pierre Louÿs, foram musicadas por Debussy. Sem nomear explicitamente, as Six Épigraphes Antiques para piano a 2 ou 4 mãos (1914) tiveram inspiração direta das Les Chansons de Bilitis.   

Henrique Oswald foi certamente nosso mais importante compositor romântico. Dediquei-lhe alguns posts. Os aprofundamentos que me levaram à primeira tese de doutorado sobre o músico (1988), seguida felizmente por inúmeras outras, defendidas nas Academias do Brasil e do Exterior por estudiosos, o que é bom louvar, evidencia o homem que viveu durante toda a existência a batalhar pela sobrevivência, sempre a exercer a atividade musical no Brasil, na Itália e, finalmente, no país natal novamente. Todavia, diários de sua mãe e de sua esposa, assim como as poucas cartas por ele deixadas, não deixam de indicar a presença do olhar aristocrático, detectada na alta qualidade de suas composições; no respeito a ele dispensado por figuras proeminentes do Poder desde o Império; nas atitudes do cotidiano que o levavam a receber como anfitrião, em sua casa,  grandes personalidades do mundo musical pátrio e do Exterior. Se na vida real Oswald era exemplo de denodo incansável na dedicação à música, como compositor e professor –  prova evidente seria a agenda de aulas preenchida de manhã ao anoitecer no estertor da existência -, a atitude aristocrática não o abandonaria. Inúmeros desenhos, que realizou em dois cadernos conservados pelos descendentes, atestam a presença de reis, nobres, espadachins. Oswald praticou esgrima e deixou-se fotografar com florete. Essas características, pertencentes à denominada aristocracia, estão presentes em muitas das fotos existentes. De pequena estatura, ao ser fotografado Oswald demonstra a altivez, dimensionada por seu rosto de finos traços e a barba branca impecavelmente cuidada. O leitor encontrará no YouTube várias obras de Henrique Oswald que gravei na Bélgica.

Uma das linguagens pianísticas mais tipificadas é a de Alexander Scriabine. Muitas de suas obras, como algumas Sonatas, Estudos e Poemas, estão entre o que de mais complexo foi escrito para piano. Após a leitura de sua opera omnia para o instrumento escrevi monografia publicada pelo MASP (1977), a apontar a quase não utilização da passagem do polegar em suas composições para piano. Ratificaria meu posicionamento em artigo para os “Cahiers Debussy” (1983), já àquela altura com posições respeitadas de especialistas, entre as quais a do Dr. Heitor Ulson, professor de cirurgia da mão da UNICAMP.

Scriabine foi bom pianista e, a partir da juventude da idade madura, só se apresentava em público tocando suas obras. Em seus programas incluía algumas de suas composições mais complexas sobre o aspecto técnico-pianístico, o que corroborou a mitificação do compositor-intérprete. Um fato, contudo, chamaria atenção. Apesar de sua desenvoltura, que pode ser comprovada em gravações antiquíssimas da década de 1910, entre as quais a do célebre Estudo Patético (op. 8 nº 12), Scriabine tinha físico frágil, mediana estatura, mãos pequenas e dedos finos, como comprovam várias fotos. Jamais tocou um de seus mais emblemáticos estudos, o op. 65 nº 1 para o intervalo de nona. Se considerarmos os programas por ele interpretados em público, fácil notar que, sob outra égide, Scriabine deveria conseguir excelente abertura das mãos (Clique para ouvir, no Youtube, o Estudo Op.42 no.1, com J.E.M. ao piano. ), a tirar delas o maior proveito. A ausência da passagem do polegar, que poderia fazer entender consequências do Mal de De Quervain (1868-1940), segundo o Dr. Heitor Ulsson, implicou a instauração de virtuosismo atípico, fora dos padrões convencionais. Contudo, em termos da “escuta”, essa característica pode passar desapercebida, mercê de uma extraordinária criatividade do compositor russo.

O incontável número de fotos, verdadeiro universo, está sempre aberto ao desvelamento. O simples olhar pouco acrescenta, a não ser um mero “verniz”, que camuflaria intenções profundas. Num sentido bem mais amplo, pintores ao longo da história não deixaram misteriosos traços em tantas obras? Estudiosos estão sempre a revelar descobertas de elementos novos em uma obra de arte. Para tanto, só há uma possibilidade. Deter-se sobre o que se antolha diante de nós.

This post discusses photographic portraits and their power to capture not only physical likeness, but also something of the subject’s character, feelings, lifestyle or, in other words, to reveal much of a person’s essence for the camera. As examples, I give my “reading” of portraits of composers Claude Debussy, Henrique Oswald and Alexander Scriabine.