Navegando Posts publicados em novembro, 2013

Esperanças e Incertezas

…sei que só o espírito governa os homens e de maneira absoluta.
Se o homem imaginou uma estrutura, escreveu o poema,
e colocou a semente no coração dos seus semelhantes,
aí então se submetem como servidores, não apenas
interesse, mas também alegria ou razão
que serão doravante expressões no coração
ou sombra sobre o muro das realidades,
da transformação em árvore de tua semente.
Antoine de Saint-Exupéry (“Citadelle”)

Após mais de seis anos e meio de posts, inseridos semanalmente de maneira ininterrupta, chegamos aos 400.000 acessos. Cifra ínfima nessa “civilização do espetáculo”, como bem afirma Mario Vargas Llosa, nível impensável para este músico-escriba que assiste ao lento e progressivo aumento de generosos leitores. Se pensarmos no número de acessos diários de determinados blogs voltados à política, ao futebol, à violência, à moda, à música pop, como alguns exemplos, a cifra acima pareceria um simples pedregulho. De Saint-Exupéry  emerge a amplidão hermenêutica da reunião das pedras para a edificação do Templo.

Os temas do blog praticamente não mudaram. Música, cotidiano, impressões de viagens, personalidades, literatura. Ao acessar o menu à direita (resenhas e comentários), o leitor terá a lista completa de livros resenhados ou comentados desde o primeiro post. A data ao final da indicação facilita a consulta.

Alguns aspectos gostaria de frisar, pois aquele que escreve regularmente sofre os impactos de tudo que o cerca. Trabalhando em casa, raríssimas vezes saio para compromissos sociais, mas sim para tarefas do cotidiano ou para treinos de corrida nas ruas de minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo. Quanto aos compromissos musicais, não os tenho no Brasil, e a apresentação em Botucatu foi de grande alegria para o velho intérprete, mas exceção. Contudo, os paradoxos de nossa atualidade chegam-me através da internet ou de algum programa especial da TV a cabo, pois é quase impossível assistir à TV aberta, dado seu nível sempre descendente.

Nos treinos, as passadas da corrida estimulam o pensar e os temas dos posts brotam naturalmente. Mesmo as resenhas ou comentários de livros amadurecem durante os treinamentos. À noite, as horas da madrugada são propícias para a decantação dos textos que fluem. Se há beleza, e assim deveria ser sempre em tantas coisas que presenciamos, impossível não ficar indiferente ao que se passa ao nosso entorno. Em muitos posts, contrariando a minha vontade interior, abordo fatos que certamente estão a afetar o equilíbrio mental do cidadão brasileiro. Nesse preciso momento em que escrevo ouço três tiros na rua. Uma hora da manhã. Nem ouso abrir a janela. É essa parte de nossa realidade que se acentua aceleradamente e com a qual somos obrigados a conviver.

Como não ficar alheio às reivindicações de centenas de milhares de pessoas que foram às ruas ultimamente? Como esquecer o descaso matreiro dos políticos pelos pacíficos protestos, mercê do tempo que corrobora esse olvidar? Como entender a arbitrariedade e despreparo de um alcáide que eleva o IPTU de maneira desastrosa para cidadãos que têm seus salários e aposentadorias constantemente achatados e que prometeu, em campanha, mudanças devido à sua capacidade de “renovação”? Pensou o atual burgomestre na real situação de tradicionais moradores que nada têm a ver com a especulação imobiliária e que já pagariam alto imposto se vendessem seus imóveis, através do ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos), de competência do município, e, no caso da transmissão ser por herança (“Causa mortis”), do ITCMD, imposto estadual? Um acinte absoluto o estratosférico IPTU, pois várias vezes acima da inflação. A votação favorável na Câmara foi um dos episódios dantescos daquela Casa. O Ministério Público Estadual está atento. Como não desconfiar da vontade do partido majoritário de tudo conquistar, com o absoluto, ferrenho e irrestrito “desejo” de seus dirigentes e militantes? Como exemplo de arrogância, o termo presidente só é pronunciado com o “a” final, ao invés do “e”, graças à aceitação plena dos adeptos. Basicamente só estes são rigorosamente fiéis ao emprego da palavra num feminino inexistente. Ante tamanho ataque à língua portuguesa, como reagiriam Eça, Machado e outros luminares do passado? Como não se preocupar com um Supremo Tribunal Federal, majoritariamente constituído por ministros indicados, nestes últimos 10 anos, por mandatários de um mesmo partido? E o “Mensalão” e seus personagens maiores, que pouco a pouco estão a sair do noticiário por conta de intermináveis recursos – hélas – e julgados pelo atual STF? Calendas gregas? Jorge Hage, ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, em entrevista a jornalistas após o 1º Fórum Regulatório da América Latina, realizado em São Paulo, observou: “Eu sempre disse que um processo no Brasil contra um criminoso de colarinho branco endinheirado só termina em menos de 20 anos se ele quiser. Se ele não quiser, não termina”. Continua: “O problema é a legislação processual brasileira, que não tem paralelo no mundo em matéria das possibilidades infinitas de recursos que ela oferece aos réus, sobretudo aos réus endinheirados, que podem contratar os melhores escritórios de advocacia do País para encontrar as brechas nas leis, não só de possibilidades de recursos quanto de outros incidentes protelatórios” (Portal Terra, 04/11/2013, 18:45). Como não se estarrecer com a leva de milhares de médicos cubanos, “espécie de escravos da medicina familiar e comunitária”, segundo o comentarista das Organizações Globo Alexandre Garcia, para abastecer com seu trabalho os cofres da hedionda ditadura cubana, onde habita o mais antigo ditador do planeta?  Contraria o Planalto a legislação concernente ao contrato de trabalho vigente no Brasil em nome de uma ideologia que “gostaria” de ver implantada no país. Como ficar indiferente ao vandalismo que destrói diariamente bens públicos e privados, sem que as autoridades penalizem com rigor bandos de celerados? Como não se entristecer ao ler notícias sobre a Universidade de São Paulo, que, em ranking estabelecido por relevante entidade internacional, é rebaixada bem além do nº 200? Falta de autoridade intra e extra-muros, incontroláveis e irracionais manifestações provocadas por minoria de alunos e funcionários, que ocuparam a reitoria e fecharam portões em nome de ideologia retrógrada. Melhores alunos, mais eficientes funcionários? Ledo engano. Estou a me lembrar de que jamais participei de greves quando docente. Em uma oportunidade, quando chefe de Departamento, só, em minha sala, ouvi gritos de alunos grevistas que queriam forçar a porta de entrada, pois sabiam que eu lá estava. Abri a porta e uma das alunas, completamente transtornada, dirigiu-se a mim e, com dedo em riste que quase me tocou, proferiu palavras de ordem, injuriosas. Tinha as iniciais de um partido político de ultra esquerda gravadas na testa. Disse-lhe que se ela encostasse o dedo em mim prontamente deixaria o prédio, pois estaríamos voltando à barbárie. Após xingamentos e palavras impublicáveis de alguns alunos, retiraram-se. Jamais em nossa terra a “civilização do espetáculo” esteve a mostrar tão abertamente suas chagas. Se tantas distorções existem, se nossos canais de televisão aberta ou o rádio divulgam aproximadamente 90% de notícias relacionadas ao crime e à violência em todos os níveis, assim como escândalos relacionados à corrupção, que pululam todos os dias, há que se pensar que, nesse caso específico de corruptores (quase sempre na sombra) e corruptos, algo positivo e bom ainda teima em sobreviver. E, ao que parece, nossos meios de comunicação ainda têm autonomia, apesar da permanente tentativa do Poder Central de silenciá-los.

A Cultura, palavra tão utilizada à maneira de uma chave mestra, está agonizando. Pelo menos aquela tradicionalmente aceita. Sentimos essa mutação a cada dia. Educação e Cultura são palavras tão próximas e tão desprezadas, mormente pela classe política. Todavia, a busca neste espaço de alguns ideais voltados à tradição ainda me norteiam. Um livro que me interessa a abordar os vários níveis do conhecimento; as experiências das viagens; o cotidiano renovado a cada dia e a música, companheira desde a infância, são temas constantes. Poucos e fiéis amigos e a família, essência essencial na minha vida. Continuarei ligado às temáticas. Creio que o grão de areia tem muito a contar a respeito da praia e do deserto. Enquanto o sopro persistir em meus pulmões, continuarei a tocar e a escrever. A sugestão de meu dileto amigo Magnus Bardela, num passado que já se faz longínquo, para que começasse a escrever outros textos, independentemente dos artigos e ensaios para revistas arbitradas internacionais, frutificou, e desde 2 de Março de 2007 convivo com meus leitores, sem jamais ter deixado de postar um texto por semana. Oxalá ainda persista por muitos anos nesta prazerosa atividade.

This week my blog reached 400.000 visitors. I’m still faithful to the subjects that are dear to me ─ music, travel, literature, people ─ though the world around me often forces me to address issues that I would rather forget. My thanks for all who helped me reach this milestone.

 


 

 

Preservação da Memória Musical de uma Cidade

Temos, sobretudo, de aprender duas coisas:
aprender o extraordinário que é o mundo
e aprender a ser bastante largo por dentro,
para o mundo todo poder entrar.
Agostinho da Silva

Uma cidade que não preserva seu passado é como uma árvore estéril. Não há frutos, tampouco flores. Estiola-se sem ter deixado rastros de sua história, ou sementes que possam rememorar suas origens. Cresce desprovida de alma pois olvidou o longo percurso empreendido. Guardar os traços da urbe pode ter várias vertentes. Em uma delas, sob o olhar acadêmico, resgata-se o passado, mas tantas vezes o texto se torna árido, previsível, enfadonho e não se sente a aura das gerações que se foram. Um dos males da Academia é não ter o olhar e os ouvidos para essa vibração, só perceptível se houver envolvimento do cuore. Fatos e personagens longínquos revivem, participam de nosso cotidiano e servem de exemplo para os pósteros. Não importa a dimensão da cidade. Grande ou pequena, teve suas figuras humanas que ajudaram a edificá-la sob muitos aspectos. Quando o gravador, escritor e idealista português Sérgio Sá escreve “Memórias de uma Aldeia” (1990), retrata  preferencialmente o pulsar musical de Cidadelha, aldeia que remonta ao século XIII. Amorosamente, Sérgio Sá recupera a respiração musical e artística a partir dos primórdios do século XX. É um passo. Uma fatia da história permanecerá imorredoura, pois fixada. O multum in minimo está preservado e Cidadelha ressurge sonora e no cotidiano da gente que lá viveu.

Maria Amélia de Toledo Piza é vocacionada ao aprofundamento. Artista plástica sensível, musicista e interessada na história artística da cidade de Botucatu, empreendeu preciosas incursões no campo de acervos depositados na cidade. Seu caminho acadêmico levou-a a dois trabalhos referenciais. Um primeiro, mestrado, em que se detém nos magníficos afrescos realizados por Henrique Bicalho Oswald e encomendados pelo saudoso arcebispo de Botucatu, D. Henrique Golland Trindade (“O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”, UNESP, 1997) e o consequente doutorado na mesma Universidade a versar sobre temática afim, pois estuda pormenorizadamente a obra do pai de Henrique, Carlos, pioneiro da gravura em metal no Brasil (“A Poética da Luz na Obra de Carlos Oswald”, UNESP, 2004). A continuidade desse aprofundar nas obras do neto e do filho, respectivamente, do grande compositor romântico brasileiro Henrique Oswald bem demonstra a trajetória coerente, sem subterfúgios de Maria Amélia. A visão onírica da pintura, que é uma de suas linguagens, concentrar-se-ia inicialmente nos afrescos da Capela botucatuense da Santíssima Trindade e daí para a universalidade contida nas criações de Carlos Oswald.

Trabalho hercúleo estava ainda a ser feito. Se a Capela da Santíssima Trindade com seus afrescos está a revelar, possivelmente, a mais sensível obra de arte de Botucatu; se o estudo relacionado à criação de Carlos Oswald evidencia a “origem” do pensamento pictórico do autor das pinturas no templo sagrado, seria, contudo, no levantamento e na ênfase relativa à importância da música para a cidade de Botucatu que Maria Amélia cresce ainda mais, pois através do amálgama de seu acervo cultural encontraria a harmonia absoluta do aprofundamento. Seu livro “Botucatu – Notas Musicais”, livre das amarras e do ranço acadêmico que tantas vezes oblitera a espontaneidade – não é o seu caso nos dois trabalhos mencionados -, entrelaça as temáticas. O texto desliza amorosamente, a trazer ao leitor a história, os personagens, a vivência, as escolas de música, a ação de professores dedicados e proles através das décadas que perpetraram o cultivo da música como verdadeira respiração. Tem-se a impressão de que essas figuras – tantas que partiram – caminham lado a lado com o leitor, legando a dedicação carinhosa à arte musical.

Maria Amélia perpassa a trajetória de Botucatu bem antes de ter sido erigida cidade e esse caminhar dá sentido pleno à temática, centralizada nas diversas manifestações voltadas à música. O imenso aprofundamento através da ação de músicos que atuaram e atuam em Botucatu, assim como a busca incansável de iconografia riquíssima, testemunham a qualidade de “Botucatu – Notas Musicais”.

Maria Amélia, após ter pacientemente coletado todo o material, transpôs para o texto não apenas os fatos musicais que ocorreram e a ação contínua de professores, alunos, intérpretes e conjuntos, mas os revive, mercê, em parte, dessa ruptura das amarras – necessárias na Academia -, a propiciar ao leitor conviver, participar, entrar em ambientes físico- musicais que se foram, mas que permanecerão registrados ad eternum no texto e na imagem. O debruçar “arqueológico” a que se propôs Maria Amélia abriga carinhosamente  manifestações eruditas e populares. Seu olhar abrange o todo musical, sem distinção. Se o erudito prevalece, certamente estaria caracterizado o ensino, as Escolas de Música que se instalaram na urbe ao longo da história. Maria Amélia se detém nas origens que levaram à instauração do Conservatório Musical Santa Marcelina em 1959. Significativa a erudição que a ordem das Marcelinas demonstrava, trazendo para Botucatu parte da metodologia professada na Itália. Nesse período, a cidade, que tivera a primeira menção de um piano em 1865, contava com 80! Centrado no instrumento, desenvolveu-se no lugar um verdadeiro culto ao piano. No salão nobre das Marcelinas apresentei-me inúmeras vezes nos anos 1950-1970 a convite de D. Henrique Golland Trindade. Na década de 1960, durante anos, mensalmente dei aulas de piano no Conservatório, podendo atestar o verdadeiro entusiasmo que os jovens botucatuenses tinham pela música, pelo aprimoramento pianístico e por repertórios. Ficou gravada para sempre a dedicação da Superiora, irmã Fedele Nuzzacci, e das irmãs Lúcia de Castro Alves e Lilia Aguiar Ayres.

Impressiona o interesse de Botucatu pelos conjuntos em suas múltiplas configurações: orquestras abrangendo vários agrupamentos,  bandas, orfeões escolares, corais… Maria Amélia traz ao conhecimento do leitor todo esse comovente pulsar da cidade, confessadamente vocacionada.

“Botucatu – Notas Musicais”, da erudita Maria Amélia Blazi de Toledo Piza, não desvia o olhar de todas as sensíveis manifestações populares. O folclore, a moda-de-viola e aqueles que criaram na cidade uma genuína música caipira. É o debruçar da autora imparcial nas escolhas? É-o, sobremaneira pelo fato de, com uma cultura abrangente, Maria Amélia, nesse livro felizmente não acadêmico, friso bem, em nenhum instante  demonstrar sua preferência. É-o, na medida em que, carinhosamente, músicos eruditos e populares se confraternizam sob a pena da autora. Todos cultuam o Belo, e Maria Amélia entende como poucos, em seu significativo tributo, a mensagem musical como uma dádiva. Passado e presente de mãos dadas. Amálgama.

Ao inserir, como apêndice, “Semeadores”, “Sementes” e “Frutos”, a autora relaciona todos aqueles, radicados ou não, que tiveram  relação com a vida musical em Botucatu. Sob outra égide, a autora conseguiu reunir uma preciosíssima iconografia relativa a professores e seus alunos, conjuntos musicais, edificações relacionadas à música.

Apesar da modéstia de Maria Amélia, característica da autora “Só fizemos uma pequena parte. Outros botucatuenses farão outras”, é inegável que temos em “Botucatu – Notas Musicais” um extraordinário documento sobre a vida musical da ybytucatu, vocábulo tupi que daria origem ao nome da cidade dos “bons ares, bons ventos”. E que o livro sirva de estímulo maior à continuação sonora de Botucatu.

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O evento do dia 26 de Outubro, realizado no auditório do Colégio Santa Marcelina, em Botucatu, foi intenso no congraçamento. Recital de piano assistido por público numeroso e atento, que correspondeu às expectativas. Após minha apresentação houve um momento que me levou à comoção. Os menores da Vila dos Meninos Sagrada Família subiram ao palco para me entregar um mimo. Meu apreço pela meritória Vila vem de 1954. Após aqueles instantes, Maria Amélia Blasi de Toledo Piza autografou seu belo livro. A renda integral do recital e dos livros foi entregue ao Presidente da Vila dos Meninos, Robert Muller. Maria Amélia e eu apreendemos intensamente os instantes mágicos vividos.

Last week I went to Botucatu for a recital, followed by the launch of the book “Botucatu – Notas Musicais” (literally: Botucatu – Musical Notes), written by Maria Amélia Blasi de Toledo Piza. This post is about her book, the result of a research about the history of the city since its founding, alongside with an investigation of the musical events that kept pace with the development of the place.