Preservação da Memória Musical de uma Cidade

Temos, sobretudo, de aprender duas coisas:
aprender o extraordinário que é o mundo
e aprender a ser bastante largo por dentro,
para o mundo todo poder entrar.
Agostinho da Silva

Uma cidade que não preserva seu passado é como uma árvore estéril. Não há frutos, tampouco flores. Estiola-se sem ter deixado rastros de sua história, ou sementes que possam rememorar suas origens. Cresce desprovida de alma pois olvidou o longo percurso empreendido. Guardar os traços da urbe pode ter várias vertentes. Em uma delas, sob o olhar acadêmico, resgata-se o passado, mas tantas vezes o texto se torna árido, previsível, enfadonho e não se sente a aura das gerações que se foram. Um dos males da Academia é não ter o olhar e os ouvidos para essa vibração, só perceptível se houver envolvimento do cuore. Fatos e personagens longínquos revivem, participam de nosso cotidiano e servem de exemplo para os pósteros. Não importa a dimensão da cidade. Grande ou pequena, teve suas figuras humanas que ajudaram a edificá-la sob muitos aspectos. Quando o gravador, escritor e idealista português Sérgio Sá escreve “Memórias de uma Aldeia” (1990), retrata  preferencialmente o pulsar musical de Cidadelha, aldeia que remonta ao século XIII. Amorosamente, Sérgio Sá recupera a respiração musical e artística a partir dos primórdios do século XX. É um passo. Uma fatia da história permanecerá imorredoura, pois fixada. O multum in minimo está preservado e Cidadelha ressurge sonora e no cotidiano da gente que lá viveu.

Maria Amélia de Toledo Piza é vocacionada ao aprofundamento. Artista plástica sensível, musicista e interessada na história artística da cidade de Botucatu, empreendeu preciosas incursões no campo de acervos depositados na cidade. Seu caminho acadêmico levou-a a dois trabalhos referenciais. Um primeiro, mestrado, em que se detém nos magníficos afrescos realizados por Henrique Bicalho Oswald e encomendados pelo saudoso arcebispo de Botucatu, D. Henrique Golland Trindade (“O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu”, UNESP, 1997) e o consequente doutorado na mesma Universidade a versar sobre temática afim, pois estuda pormenorizadamente a obra do pai de Henrique, Carlos, pioneiro da gravura em metal no Brasil (“A Poética da Luz na Obra de Carlos Oswald”, UNESP, 2004). A continuidade desse aprofundar nas obras do neto e do filho, respectivamente, do grande compositor romântico brasileiro Henrique Oswald bem demonstra a trajetória coerente, sem subterfúgios de Maria Amélia. A visão onírica da pintura, que é uma de suas linguagens, concentrar-se-ia inicialmente nos afrescos da Capela botucatuense da Santíssima Trindade e daí para a universalidade contida nas criações de Carlos Oswald.

Trabalho hercúleo estava ainda a ser feito. Se a Capela da Santíssima Trindade com seus afrescos está a revelar, possivelmente, a mais sensível obra de arte de Botucatu; se o estudo relacionado à criação de Carlos Oswald evidencia a “origem” do pensamento pictórico do autor das pinturas no templo sagrado, seria, contudo, no levantamento e na ênfase relativa à importância da música para a cidade de Botucatu que Maria Amélia cresce ainda mais, pois através do amálgama de seu acervo cultural encontraria a harmonia absoluta do aprofundamento. Seu livro “Botucatu – Notas Musicais”, livre das amarras e do ranço acadêmico que tantas vezes oblitera a espontaneidade – não é o seu caso nos dois trabalhos mencionados -, entrelaça as temáticas. O texto desliza amorosamente, a trazer ao leitor a história, os personagens, a vivência, as escolas de música, a ação de professores dedicados e proles através das décadas que perpetraram o cultivo da música como verdadeira respiração. Tem-se a impressão de que essas figuras – tantas que partiram – caminham lado a lado com o leitor, legando a dedicação carinhosa à arte musical.

Maria Amélia perpassa a trajetória de Botucatu bem antes de ter sido erigida cidade e esse caminhar dá sentido pleno à temática, centralizada nas diversas manifestações voltadas à música. O imenso aprofundamento através da ação de músicos que atuaram e atuam em Botucatu, assim como a busca incansável de iconografia riquíssima, testemunham a qualidade de “Botucatu – Notas Musicais”.

Maria Amélia, após ter pacientemente coletado todo o material, transpôs para o texto não apenas os fatos musicais que ocorreram e a ação contínua de professores, alunos, intérpretes e conjuntos, mas os revive, mercê, em parte, dessa ruptura das amarras – necessárias na Academia -, a propiciar ao leitor conviver, participar, entrar em ambientes físico- musicais que se foram, mas que permanecerão registrados ad eternum no texto e na imagem. O debruçar “arqueológico” a que se propôs Maria Amélia abriga carinhosamente  manifestações eruditas e populares. Seu olhar abrange o todo musical, sem distinção. Se o erudito prevalece, certamente estaria caracterizado o ensino, as Escolas de Música que se instalaram na urbe ao longo da história. Maria Amélia se detém nas origens que levaram à instauração do Conservatório Musical Santa Marcelina em 1959. Significativa a erudição que a ordem das Marcelinas demonstrava, trazendo para Botucatu parte da metodologia professada na Itália. Nesse período, a cidade, que tivera a primeira menção de um piano em 1865, contava com 80! Centrado no instrumento, desenvolveu-se no lugar um verdadeiro culto ao piano. No salão nobre das Marcelinas apresentei-me inúmeras vezes nos anos 1950-1970 a convite de D. Henrique Golland Trindade. Na década de 1960, durante anos, mensalmente dei aulas de piano no Conservatório, podendo atestar o verdadeiro entusiasmo que os jovens botucatuenses tinham pela música, pelo aprimoramento pianístico e por repertórios. Ficou gravada para sempre a dedicação da Superiora, irmã Fedele Nuzzacci, e das irmãs Lúcia de Castro Alves e Lilia Aguiar Ayres.

Impressiona o interesse de Botucatu pelos conjuntos em suas múltiplas configurações: orquestras abrangendo vários agrupamentos,  bandas, orfeões escolares, corais… Maria Amélia traz ao conhecimento do leitor todo esse comovente pulsar da cidade, confessadamente vocacionada.

“Botucatu – Notas Musicais”, da erudita Maria Amélia Blazi de Toledo Piza, não desvia o olhar de todas as sensíveis manifestações populares. O folclore, a moda-de-viola e aqueles que criaram na cidade uma genuína música caipira. É o debruçar da autora imparcial nas escolhas? É-o, sobremaneira pelo fato de, com uma cultura abrangente, Maria Amélia, nesse livro felizmente não acadêmico, friso bem, em nenhum instante  demonstrar sua preferência. É-o, na medida em que, carinhosamente, músicos eruditos e populares se confraternizam sob a pena da autora. Todos cultuam o Belo, e Maria Amélia entende como poucos, em seu significativo tributo, a mensagem musical como uma dádiva. Passado e presente de mãos dadas. Amálgama.

Ao inserir, como apêndice, “Semeadores”, “Sementes” e “Frutos”, a autora relaciona todos aqueles, radicados ou não, que tiveram  relação com a vida musical em Botucatu. Sob outra égide, a autora conseguiu reunir uma preciosíssima iconografia relativa a professores e seus alunos, conjuntos musicais, edificações relacionadas à música.

Apesar da modéstia de Maria Amélia, característica da autora “Só fizemos uma pequena parte. Outros botucatuenses farão outras”, é inegável que temos em “Botucatu – Notas Musicais” um extraordinário documento sobre a vida musical da ybytucatu, vocábulo tupi que daria origem ao nome da cidade dos “bons ares, bons ventos”. E que o livro sirva de estímulo maior à continuação sonora de Botucatu.

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O evento do dia 26 de Outubro, realizado no auditório do Colégio Santa Marcelina, em Botucatu, foi intenso no congraçamento. Recital de piano assistido por público numeroso e atento, que correspondeu às expectativas. Após minha apresentação houve um momento que me levou à comoção. Os menores da Vila dos Meninos Sagrada Família subiram ao palco para me entregar um mimo. Meu apreço pela meritória Vila vem de 1954. Após aqueles instantes, Maria Amélia Blasi de Toledo Piza autografou seu belo livro. A renda integral do recital e dos livros foi entregue ao Presidente da Vila dos Meninos, Robert Muller. Maria Amélia e eu apreendemos intensamente os instantes mágicos vividos.

Last week I went to Botucatu for a recital, followed by the launch of the book “Botucatu – Notas Musicais” (literally: Botucatu – Musical Notes), written by Maria Amélia Blasi de Toledo Piza. This post is about her book, the result of a research about the history of the city since its founding, alongside with an investigation of the musical events that kept pace with the development of the place.