Navegando Posts publicados em setembro, 2014

Considerações após Questionamento

Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.

Todo o progresso tem como meta a entropia.
Agostinho da Silva

Durante treino para corridas de rua em São Paulo e cidades vizinhas cruzei com amigo que também gosta da atividade. Bem mais jovem, Marcelo inverteu sua trajetória e acompanhou-me por alguns quilômetros. Após, retomou seu percurso. Ele pertence ao vasto universo publicitário e, por vezes, faz pulsar sua veia poética e também o afeto pelo violão.

Lera o post sobre Jean-Philippe Rameau, e o tema voltou a ser discutido. Comentou o texto com agudeza. Contudo, dele veio arguta pergunta ao falarmos da diversidade teórico-musical e dos caminhos empreendidos por Rameau relacionados a uma nova concepção da ópera francesa no século XVIII. “Há progresso e evolução na Arte?”, questionou-me. Tratamos do tema na cadência de nossas passadas, mas sem aprofundamento. Apenas respondi-lhe que o tema é complexo, pleno de controvérsias e que existem posições diametralmente opostas. Insistiu: “O que você pensa realmente a respeito?”. Respondi-lhe que, para as Artes, não entenderia adequada a palavra progresso, pois a essência da Arte é atemporal, imutável. Inovações técnicas, utilização de materiais transformados, processos os mais variados para todas as áreas que se abrigam sob seu manto são meios para a criação artística. Acredito que a conceituação do termo progresso implicaria, inclusive, a observância do contexto.

Como o espaço não comporta o debate de tantas correntes propostas por pensadores e historiadores da Arte sobre o tema, preferiria externar simplesmente minhas considerações, após décadas acumuladas a observar e estudar vários segmentos artísticos.

Consideremos progresso e outros termos como evolução (processo em movimento), inovação, invenção, descoberta, técnica e outros mais, palavras essas que pressupõem reflexões a partir de algo revelado ou prestes a sê-lo, em ebulição. Há muitas interpretações de palavras aparentemente distintas, mas que podem ter até aproximações em determinados significados. Chegam por vezes a ser sinônimos. Características de nosso rico vernáculo.

A obra de arte independeria do progresso, pois compreendê-la aceitando-se essa condição  implicaria que a próxima nessa linhagem, em princípio, será mais “avançada” do que a anterior. Haveria uma distância abissal a se pensar na comparação entre aquelas obras que permaneceram pela qualidade ou como testemunho da prática segura realizada e as que sucessivamente a história esteve a revelar, numa acumulação constante. Sob outra égide, se a obra de arte excedeu na qualidade milênios atrás, só poderia ter como parâmetro criações qualitativas realizadas através dos séculos. Não caberia, a meu ver, a aplicação do termo progresso.

Vale frisar que o progresso técnico, que levaria à reprodução da obra de arte em grande escala, inimaginável tempos atrás, traria conceitos outros quanto à criação artística. Processos visando à maior divulgação. A invenção da fotografia, o advento do cinema, a gravação, a multiplicação da arte pictórica através de tantos processos de reprodução, a evolução diária da internet,  estabeleceram conceitos questionáveis quanto à aura a que uma obra artística está sujeita. Walter Benjamin (1892-1940), em seu famoso ensaio “A obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936), fala-nos da perda da aura da obra de arte. O hic et nunc (aqui e agora) torna a obra original, inalienável, a autêntica e única detentora da aura, do sagrado. Martin Heidegger, (1889-1976) em seu não menos célebre ensaio, “A Origem da Obra de Arte”, observa a imanência que existe na obra de arte: “A experiência estética, tão invocada, não pode negligenciar a coisa que existe na obra de arte. Há a pedra no monumento, madeira na escultura sobre a madeira. No quadro, há a cor, nas obras da palavra e do som (poesia e música) há a sonoridade”. Heidegger comenta também que a obra de arte, transportada de seu lugar de origem para um museu, como exemplo, estaria deslocada e o mundo a que pertenceu, desmoronado. Numa visão material-obra conclusa, Saint-Exupéry (1900-1944) dirá em “Citadelle” que a pedra é apenas uma pedra, mas que a reunião delas (assemblage) ganharia sentido ao se converter em Templo (vide post “A Comunhão das Pedras – A Magia de Sint-Hilarius”, 03/05/2007). Sob outra égide,  Mario Vargas Llosa (1936- ) já não mais visita Bienais de Arte devido àquilo que considera um deboche ao conceito primordial de arte, não pela reprodução, mas pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade (“La Civilización del espectáculo”, 2012). Observações…

Estou a me lembrar de opinião de minha saudosa amiga, a notável gregorianista portuguesa Júlia de Almendra (1903-1992). Indaguei-lhe certa vez, ao manusear antifonário que estava sobre sua mesa, como ela situava os cantos lá contidos. Disse-me que aquele, em particular, era depositário de cantos gregorianos praticados em Portugal e que os considerava verdadeiras joias do gênero. Emocionava-se ao comentar apresentação desses cantos que fizera com coral no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa.  Poder-se-ia dizer o mesmo do “O Passionário Polifônico de Guimarães”, cuidadosamente estudado e publicado sob a orientação do Professor José Maria Pedrosa Cardoso (vide post sob o mesmo título de 23/11/2013). Sob o contexto da obra-prima mencionemos os Motetos de Guillaume de Machaut (séc. XIV), fugas do Cravo Bem Temperado e as Paixões de J.S. Bach (1685-1750), assim como algumas óperas de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), exemplos de criações que se perenizaram. Os dois últimos posts evidenciaram a importância do tratado de harmonia de Rameau (1722) e o impacto que suas teorias teriam doravante na composição. Da Idade Média ao presente, incontáveis aqueles que deixaram obras indeléveis. Pergunta poderia ser feita, melhores a cada período? Melhores não, diferentes sim, pois processos técnicos foram sendo acrescidos, propiciando aos compositores bafejados pelas musas sucessivas criações extraordinárias. Daqueles cantos gregorianos mencionados, percorrendo-se o longo caminho sonoro criativo, a determinadas criações mais recentes de Claude Debussy (1862-1918), Villa-Lobos (1887-1959), Dmitri Shostakovitch (1906-1975), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Olivier Messiaen (1908-1992) e outros mais, podem-se selecionar obras esplêndidas.

Seria a incessante busca pelo Belo que não nos permitiria falar em progresso em arte se compararmos a arte pictórica pré-Renascença e aquela dos pintores renascentistas que dominaram a técnica, propiciando a noção da perspectiva que nos levou a apreender profundidades.

Policleto de Argos (460-410 a.C.) ao escrever seu notável tratado “O Cânone”, propõe regras precisas para a escultura na Grécia. Suas teorias relativas às proporções do corpo humano vigorariam através de milênios. Se a arte da escultura grega daquele século V a.C. tornou-se dogma durante 25 séculos, assim como a perspectiva  renascentista séculos afora, assistiu-se, mormente a partir do século XX, à descrença na infalibilidade dessas regras fixas. Não que pintores e escultores desconhecessem essas normas, mas pelo fato de que o caminhar da história das sociedades e do pensar levaram a essas posições. Se os gregos Fídias (490 – 430  a.C.), Policleto e Praxísteles (395-330 a.C.) esculpiram obras-primas, é também certo que Michelangelo  (1475-1564) e Rodin (1840-1917), entre tantos, também o fizeram, sendo que o escultor francês já encaminharia a arte escultural para a ruptura dos cânones. O mesmo ocorreria com a pintura a partir da segunda metade do século XIX. Todavia, nas obras pré-renascentistas, renascentistas, flamengas, românticas, impressionistas, expressionistas, cubistas e tantas mais tendências encontramos obras excelsas. Progresso? Diria mais novo olhar, novas técnicas, processos outros influenciados por uma infinidade de condicionamentos.

Sob outro prisma, o emprego do termo progresso para tantos avanços materiais pareceria correto. A ciência está plena de exemplos de aperfeiçoamentos, invenções, descobertas que levam à aplicação da palavra. Sem contar o emprego correto em outras áreas. Progresso poderia implicar o abandono de aparelhagem que se estiolou  com o passar do tempo. Voltaríamos  aos primeiros computadores gigantescos, lentos, tela escura, impossíveis para uso doméstico? Haveria o regresso aos celulares pesados, imprecisos? Seria possível entendermos hoje as comunicações, que tardavam a ser realizadas? Estou a me lembrar de que, no longo período que permaneci em Paris a estudar música, há mais de 50 anos, apenas não mais de cinco vezes consegui falar com meus pais pelo telefone em São Paulo. Programavam a chamada para 24 ou 48 horas e cruzava os dedos para que não surgisse algum problema de ordem técnica ou meteorológica. Trocávamos telegramas para que não houvesse distração, pois aquele breve contato telefônico era sagrado!!! Houve extraordinário progresso, mercê de invenções e descobertas, aperfeiçoamento dos materiais utilizados, abandonando-se o que ficou ultrapassado, peças de museus específicos ou sucata, simplesmente. E é justamente esse abandono que dimensionaria o progresso nessas áreas e em tantas outras, como a indústria automobilística, a aviação… Quanto à música por processos eletrônicos, preferiria aguardar a passagem do tempo, “infalível e insubornável”, segundo Guerra Junqueiro. Nestes últimos 50 anos assisti à glorificação, durante lustros ou décadas, de compositores e à bruma post-mortem ocultá-los inexoravelmente. O denominado work in progress, tão decantado na era da música com suporte tecnológico eletroacústico tem lá sua razão, pois nesse segmento há constante mutabilidade e processos hoje utilizados serão considerados jurássicos, por vezes em menos de uma década. A sucessiva troca de materiais mais recentes para esse fim não tenderia a evitar que a criação se sedimente da maneira que foi concebida? Entenderia que nessa área da música possamos empregar a palavra progresso.

Das obras de arte do Egito antigo às contemporâneas, do canto gregoriano ao presente, de Camões (1524-1580) a Fernando Pessoa (1888-1935) ou Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), sempre pairaria sobre inúmeras criações a aura da excelência, cultuadas pois ad aeternum.

A obra de arte, ao atingir essa qualificação, é testemunho de sua época. Única, fixada no tempo, ela contém a aura da imanência. A obra-prima na Arte é um milagre e a ideia do artista, que leva à criação, um mistério. Milagres não progridem, tampouco o mistério. Estando há tantas décadas na esfera da interpretação, a trajetória pela vida tem sido a do observador que, a cada criação musical, principalmente aquela que jamais ouvira e que me atrai pela inefabilidade, sente o estímulo que conduz à revelação. A razão de pouco frequentar, desde meus 40 anos, o repetitivo repertorial residiria na efêmera existência que me fez conhecer obras-primas do passado ao presente, mas que aponta a partir daquela época ao descortino de tantas criações excelsas, mantidas em silêncio por motivos tão complexos já ventilados ao longo de mais de sete anos neste espaço.

Is there progress in Art ? In this post I give my views on the subject, concluding that we may talk about progress in the advent of new techniques, new instruments, new media. In the Arts there are just changes, new art forms that are not worse or better than previous ones. They are different, but still a continuity from earlier generations. As for the masters of each historical period, time will tell.

 

 

A Mesmice Repertorial a Eclipsar o Genial Compositor

Desde que se queira provar o efeito de um canto,
necessário torna-se a sustentação de toda a harmonia que ele depende;
é nessa harmonia mesma que reside a causa do efeito,
nunca na melodia, que não é senão produto da harmonia.
Jean-Philippe Rameau
(“Observations sur Notre Instinct pour la Musique”)

Ao longo de sete anos e meio tenho situado tantas vezes a problemática dos repertórios repetitivos, que anualmente persistem em nossas programações de concerto. A inclusão de obras pouco executadas do passado é esparsa e uma espécie de concessão de intérpretes e daqueles que se incumbem das programações, não se descartando o empresário, para o qual, basicamente, o repertório consagrado torna-se parte substancial de sobrevivência. As temporadas de ópera do Teatro Municipal de São Paulo têm merecido forte guarida da mídia paulistana e são exemplos claros da constante repetição. Todos os anos a concentração maior volta-se aos mesmos títulos de compositores consagrados. Quantas vezes já não produziram em São Paulo Carmen, de Bizet, La Bohème, Tosca e Madame Butterfly, de Puccini, La Traviata, Il Trovatore e Aida, de Verdi, Cavalleria Rusticana, de Mascagni, ou I Pagliacci, de Leoncavallo? Louve-se a temporada do Theatro São Pedro neste ano. Através de critério mais arejado tem revelado ao longo de 2014 óperas inéditas em São Paulo, do barroco à contemporaneidade. Duas óperas entre cinco privilegiam autores brasileiros, Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Ronaldo Miranda (1948-  ).

No último livro de Daniel Barenboim, “La musique est en tout”, há segmentos  em que o notável pianista, regente e pensador responde a perguntas formuladas. Aliás, a meu ver a única seção de menor interesse. São espaços consideráveis dedicados às óperas Walkíria, de Wagner, Carmen, de Bizet e Don Giovanni, de Mozart. As perguntas, verdadeiro “lugar comum”, retomam temas exaustivamente tratados através dos decênios em detrimento de tantos outros que poderiam focalizar óperas fabulosas, do barroco ao presente, tesouros minimamente apresentados e muitos deles guardados em arquivos. Logo a seguir há um texto original de Barenboim sobre Verdi, possivelmente o de maior valia nesse compartimento do livro dedicado à ópera, pois a abranger a concepção verdiana e aspectos voltados à dinâmica e às indicações metronômicas. Em breve haverá a resenha.

A mesmice repete-se também no repertório sinfônico, incluindo concertos para instrumento e orquestra, cujo resultado chega a ser constrangedor. Assistimos  todos os anos a intérpretes visitando nossas terras e repetindo obras durante… décadas. Sem rubor algum.

Outro aspecto está relacionado a efemérides. Em ano festivo, são apresentadas obras numa escala superior à habitual, mas logo após tudo volta ao normal. Contudo, nesses festejos ao menos pode-se aferir uma parcela maior da produção de um compositor.

Quanto a Jean-Philippe Rameau, neste ano em que se comemoram os 250 anos de sua morte, esforços foram realizados em França, tímidos, diria, mas estimulantes. Apenas para mencionar Outubro, será apresentada em várias datas a ópera Castor et Pollux no Théatre des Champs Elysées, em Paris, sendo que o Festival Baroque de Pontoise prestará, entre Setembro e Outubro, homenagem ao mestre nascido em Dijon.

Rameau. Les Niais de Sologne. Piano J.E.M.
Rameau. L’Egyptienne. Piano J.E.M.

Comentários de leitores saudaram a homenagem prestada a Rameau neste espaço. O compositor e pensador francês François Servenière expõe conceitos para reflexão que se estendem, numa comparação da linguagem musical, à contemporaneidade. Frise-se que nesse compartimento há incontáveis tendências, sendo que os inesgotáveis processos contraponto e harmonia, à la manière de combinações do jogo de xadrez, longe estão do esgotamento. Contudo, após o serialismo e com o advento posterior da música a empregar meios eletro-acústicos, territórios mostrar-se-iam distintos. Polêmico, voltado aos nossos dias, mas a empregar processos do contraponto e da harmonia, Servenière reflete em seu texto, como em outros anteriores, a autenticidade de um músico que não se esquece da tradição assimilada. Eis sua mensagem:

“Acabei de ler seu artigo sobre Jean-Philippe Rameau e fico emocionado ao perceber o seu amor por sua obra e por outros compositores franceses, pelo espírito francês dessa música que você definiu como clara e concisa, menos carregada que aquela de seu vizinho alemão mais sério, e menos alegre, infelizmente, do que o estilo italiano.

Rameau é um compositor verdadeiramente sério, mesmo se considerarmos sua música como aquela do coração. É necessário tempo para se deixar tocar pela alegria da ética musical, pelo rigor levado ao seu mais alto degrau.  Malgrado tudo, Rameau, como J.S.Bach, tem o efeito de unguento universal, pois é verdadeiramente música que não se deteriora, sendo, pois, inalterável através das épocas, sem sofrer efeito de moda. Já discutimos várias vezes que não sabemos qual o futuro da música contemporânea. Contudo, parece-nos flagrante que ela esqueceu de falar aos corações. Por quê? Há evidentemente ideologia modernista e totalitária subjacente. Sim, havia a necessidade de reformar uma linguagem amparada por uma época, o século XIX, mas o que se seguiu não foi devidamente dominado pelos novos modernos, que se deixaram cair na própria armadilha dialética e de poder, novo paradigma no qual não encontraram a porta de saída e preferiram a fuga adiante, até o absurdo. Rameau torna-se pois, como Bach, Mozart, Debussy, Ravel e Stravinsky, o nó original ao qual necessariamente tem-se de voltar para que o senso de uma história esquecida e o senso de uma música feita de sensações e sentimentos sejam primazia. A vida musical não pode continuar a crescer sobre galhos mortos. Há a imperiosa necessidade de voltar-se às referências, aos antigos cruzamentos, após perder-se em sendas que não levam a nenhum lugar e a fim de que seja encontrado o bom caminho, aquele que nos levará ao futuro seguro. Era esse também o senso de meus Études Cosmiques e de minha obra em seu conjunto, apesar de meus estudos superiores de música terem sido realizados numa conjuntura para a qual só a música serial é tolerada. ‘O compositor que não compuser empregando o serialismo não tem qualquer interesse hoje’,  segundo Pierre Boulez. Temos de reencontrar um caminho perdido.

Você pode observar a que ponto estou a defender princípios em sintonia com a música de Rameau, pois meu propósito não é diferente do seu. Continuo a pensar e compondo eu pratico. A música é a mistura da harmonia e do contraponto, com um acréscimo fundamental desenvolvido mormente no século XX, o ritmo. Não sinto contraponto na obra de Boulez, e determinados contemporâneos rejeitam a técnica, entendendo-a como figura do passado… Que erro! Neles, o contraponto passa ao largo, pois produzem obras aglomeradas de artifícios e de artefatos. Componho utilizando-me da harmonia e do contraponto, a partir de minha formação como cantor de coral, logicamente.

Não me espanta o fato de Debussy ter admirado Rameau, toda a sua música ressente-se dessa herança, pois há contraponto, harmonia sem perder o espiritual e  o sensual. A história da música nos diz que ela é construída através do contraponto e tem desenrolar expressivo em todas as maneiras de compor. Algumas músicas descritivas, mesmo no cinema, causam impacto, mas elas não se traduzem como obras duráveis ou de efeito profundo sobre o pensamento. Tem-se somente aspectos decorativos, muitas vezes inteligentes e sábios; contudo, somos subjugados pelo espírito contrapontístico quando a sua essência eclode.

A música do coração nasce de sua prática. Poder-se-ia afirmar que os corações acabam por se afinar quando os corais (as diferentes vozes, como as diferenças entre indivíduos na sociedade) findam por harmonizar suas discordâncias a fim de interpretar a mesma partitura. Este seria o principal defeito de certas tendências da música contemporânea: tem-se um prazer onanista. Não divisível, não partícipe! O que faz com que toda música coral e contrapontística seja também ramista.” (tradução: J.E.M.)

Rameau. La Folie da Ópera Bufa Platée. François Leroux, barítono; Mireille Delunsch, soprano; Les Musiciens du Louvre sob a direção de Marc Minkowsky. Fonte YouTube.

Nossas sociedades de concerto estariam abertas ou cederiam espaço frente à pressão que vem do hemisfério norte no sentido da repetição ad nauseam de repertório sacralizado? O público, ao ouvir sempre o que já se fez ouvir tantas vezes, habitua sua escuta unicamente ao conhecido. Disfarçam temporadas inserindo na programação alguma obra inusitada que não voltará mais ao repertório, pois o sacralizado tem que dar continuidade a esse rio sem os meandros que lhe conferem encanto. Prevalece o retilíneo, imutável. Perde o público a genialidade de tantos autores. As extraordinárias óperas de Rameau aguardam uma possível “condescendência”. Haveria interesse descompromissado? Seria almejar muito.

In this week’s post I resume the reflection about the works of Jean-Philippe Rameau, this time including message received from the French composer François Servenière with his own views on the subject.

 

 

 

 

 

 

Um dos Maiores Músicos da História

A verdadeira música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau

Enquanto Rameau não ocupar o lugar ao qual
tem direito  entre os maiores mestres,
a história da música do século XVIII
e através dos séculos não terá sua total orientação.
Georges Migot

Em post bem anterior (vide “Jean-Philippe Rameau – Origem de Fascinante Envolvimento”, 14/11/2009), abordei a atração despertada desde a juventude pela obra do genial compositor e teórico, certamente o mais completo músico de seu tempo. Como compositor sua obra é vasta e obedece a períodos definidos quanto aos gêneros propostos; como teórico – numa explicação básica para o leitor – traçou o caminho que fixaria definitivamente a harmonia (organização das notas musicais em acordes – processo vertical), após um longo reinado do contraponto (organização das notas em linhas – processo horizontal). Harmonia e Contraponto constituiriam, pois, essencialidades da música polifônica. Persistem.

Jean-Philippe Rameau nasceu em Dijon, aos 25 de Setembro de 1683, e faleceu em Paris  aos 12 de Setembro de 1764, há exatamente 250 anos. Seu caminhar pela história jamais teve pelos pósteros a dimensão merecida, possivelmente por ter sido um músico que viveu em plena monarquia, apreendendo a magnificência da obra lírica teatral em França, vindo a falecer 25 anos antes da eclosão da revolução francesa. Valores monárquicos foram ferozmente descartados. Todavia, Rameau foi um dos mestres que maior influência teve sobre a música, mormente a partir de sua obra teórica. Como afirmaria Claude Debussy (1862-1918), grande admirador de Rameau, seria possível que essa dualidade tivesse eclipsado o compositor extraordinário.

Compositor e teórico. Dois caminhos que motivariam Rameau durante sua longa trajetória. A criação composicional obedece a períodos distintos. Cantatas, motetos, peças para cravo e umas poucas para pequeno conjunto de câmara, as Píèces de clavecin en concert, de 1741. Nos últimos 30 anos dedicar-se-ia à música lírica, a traduzir o esplendor da ópera em França. Sua obra teórica se estende de 1722 a 1760. Guy de Chabanon (1730-1792), no “Éloge de M. Rameau” (1764), relataria que auscultaram Rameau e este teria lamentado o tempo dado à composição em detrimento dos aprofundamentos dos princípios de sua Arte. Em síntese para o leitor poderíamos acrescentar que o teórico propôs normas da composição e o compositor  aplicou-as.

Sabe-se pouco a respeito das primeiras décadas. Desempenhou a função de organista em várias cidades, mas, paradoxalmente, não legou sequer uma obra para o instrumento. Ao escolher Paris como cidade definitiva, Rameau já se impusera como teórico. Ao conhecer o mecenas Le Riche de la Pouplinière (1693-1762), é recebido em seus salões e conhece artistas, literatos, libretistas, entre eles Voltaire (1694-1778). A plena penetração na criação lírica fá-lo distanciar-se das estruturas de seu predecessor, Jean-Baptiste Lully (1632-1687). A proposta de Lully apreende as características do Ballet de Cour e da tragédia-declamada de autores como Corneille (1606-1694) ou Racine (1639-1699). Rameau modifica essa concepção,  pois dimensionará o recitativo e terá novas concepções quanto à estrutura. Dessa criação lírica têm-se diversas destinações: a comédie-lyrique e, preferencialmente, a ópera-ballet e a tragédie-lyrique. Mencionemos entre as inúmeras criações de Rameau para a cena musical: Hyppolite et Aricie, Les Indes Galantes (faria a redução para cravo de alguns segmentos dessa ópera-ballet), Castor et Pollux, Dardanus, PlatéeLes Fêtes de Polymnie, Zoroastre, Les Boréades. Esta útima composta aos 80 anos.

Air pour Borée et la Rose de Les Indes Galantes. Transcrição de Rameau para clavecin. Piano J.E.M.

Em suas óperas, não suficientemente frequentadas, hélas, Rameau aplica suas teorias já consagradas. Há um nítido descortino. Sob outra égide, Rameau acolhe libretos com enredos mitológicos, a atender a vontade da corte francesa e de um público ávido do maravilhoso. A fim de obter resultados musicais, por vezes interfere nesses textos. A dança, tão fundamental em suas óperas-ballet, recebia atenção especial. Um de seus mais credenciados biógrafos, Cutberth Girdlestone (1895-1975), observa, a ratificar os conhecimentos de Rameau sobre a dança, mencionando Gardel, mestre de ballet: “Rameau advinhou o que os dançarinos ignoravam, o que nos leva a entendê-lo como nosso primeiro mestre”. Outro aspecto importante é a utilização da maquinaria. Necessária, mormente graças as salas quase às escuras, a utilização de máquinas em cena agradava ao público. Exemplo claro poderia ser visto pela Corte e público ao final do ato dos Incas de Les Indes Galantes, quando há a erupção do vulcão. Frise-se que mestres nessa arte da machinerie eram muito considerados.

O “Mercure de France” (1765) publicaria carta de Rameau a um jovem músico. Reflete seu pensamento sobre a ópera: “É necessário estar a par do espetáculo, ter durante muito tempo estudado a natureza para pintá-la o mais verdadeiramente possível, apreender todas as suas características, ser sensível à dança, aos seus movimentos, sem falar de todos os acessórios; conhecer a voz, os atores…  Eu acompanhei o espetáculo desde a idade de 12 anos, não compondo para a ópera senão aos 50, ainda não me acreditando capaz; eu tentei, fui feliz, continuei”.

Dois anos após o nascimento de Rameau nasciam J.S.Bach, D.Scarlatti e G.F.Haendel. Coincidentemente, temos quatro autores de obras significativas para cravo. Rameau, compositor do multum in minimo nesse gênero, tem contudo uma extraordinária importância. Se comparada à monumental criação de François Couperin (1668-1733), que compôs 27 Ordres (algumas dessas bem extensas e constituídas de reunião de peças), a produção de Rameu restringe-se a 5 suítes e mais algumas poucas obras, entre as quais La Dauhine. Somem-se a essa produção as reduções de segmentos da ópera-ballet Les Indes Galantes. Entendo que, se Couperin se presta essencialmente ao cravo, o mesmo não se pode aplicar a Rameau. Seu grande tratado de harmonia foi escrito no período de suas expressivas criações para cravo. A visão da harmonia e a presença das fundamentais como estrutura, a dar fluência ao curso melódico, tornam sua opera omnia para teclado bem mais adequada ao piano, mercê dos amplos recursos e das ressonâncias características que o instrumento propicia. As palavras do grande musicólogo francês François Lesure, ao escrever o prefácio da gravação da integral de Rameau para teclado, que realizei ao piano, testemunham a clareza de raciocínio: “No caso de Rameau, o debate cravo-piano não tem mais sentido, na medida  em que não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete. Passou o tempo do Barroco entreguista e a utilização de instrumentos de época deixou de ser dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Ter fixado as bases da harmonia, que vigorariam durante séculos e ainda hoje subsistem com vigor em tantas tendências composicionais, felizmente, estabelece a qualidade nessas pouco mais de 50 peças originais para teclado. O piano moderno que surgiria, após longa trajetória e triunfante a partir do século XIX, período que assistiu ao silêncio absoluto do cravo, dará guarida essencial às fundamentais de Les Cyclopes, às modulações inusitadas em Le Rappel des Oiseaux, às ressonâncias de L’Enharmonique, à consistência estrutural em Les Niais de Sologne, às dissonâncias ousadas do Prélude da Suíte de 1706. Rameau, observador da natureza, é descritivo ou imitativo em La Poule, Le Rappel des Oiseaux, La Boîteuse, Le Tambourin; entende os sentimentos em Les Tendres Plaintes, L’Entretien des Muses, Les Soupirs;  é virtuosístico em Les Cyclopes, Les Niais de Sologne, Les Tourbillons, Les Trois Mains, L’Égytienne; mestre na organização de variações em Gavotte Variée; descontraído nos rondós La Villageoise, em Fanfarinette et La Follette, La Joyeuse ou La Triomphante. Está-se realmente diante de uma das mais importantes produções para teclado da história.

Le Rappel des Oiseaux. Piano J.E.M.

Les Cyclopes. Piano J.E.M.

Rameau teórico. Distingue-se in totum de todos os seus eminentes coetâneos. Suas teorias atravessaram os séculos. Observador, cartesiano, Rameau só teoriza após certezas dedutivas. Em quatro tratados considera seus sistemas a partir de método progressivo. “Le Traité de l’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels” é certamente o mais conhecido e data de 1722. Sente-se a influência de René Descartes (1596-1650), mormente de sua obra “Abregée de Musique”, de 1618. A herança pitagórica, exercida e desenvolvida pelo pensamento de Descartes, é captada por Rameau, a servir-lhe de norte para experiências essenciais à música.

Para o compositor, o Tratado seria completado através da “Genération Harmonique”, de 1737, após ter conhecido os trabalhos do geômetra e físico Joseph Sauveur (1653-1716) sobre a acústica. Dois outros tratados, “Nouveau Système de Musique” (1726) e “Demonstration du Principe de l’Harmonie (1750), completam esse segmento. Em outros escritos relevantes, Rameau se posiciona como didata e em outros mais polemiza e defende-se contra os ataques de adversários que contrariavam suas posições teóricas e suas obras. Teríamos a célebre Querelle des Bouffons, que se estenderia de 1752 a 1754, a causar sensível abalo na ópera essencialmente francesa.

Entre os atributos de Jean-Philippe Rameau contam-se austeridade, rigor e dedicação exclusiva a duas obsessões, compor e teorizar. Sua vida privada esteve basicamente velada. Entre as poucas referências, sabe-se que se casou aos 42 anos com uma jovem de apenas 19. O modelo musical que lhe foi oferecido era monárquico e a ele se adequou, renovando-o. Criou inimigos. Por volta de 1745, um severo julgamento seu sobre composições de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teria sido decisivo, pois o grande filósofo só é lembrado como compositor graças ao grande pensador que permaneceu na história. O estopim da Querelle des Bouffons se deu quando uma troupe italiana de bouffons apresenta, na Academia Real, a ópera bufa La Serva Padrona, de Pergolesi (1710-1736). Cenas do cotidiano, o povo em cena, a contrastar com a magnificência da ópera francesa. Os enciclopedistas e filósofos aproveitam os momentos para atacar o literário e a música contidos na ópera monárquica. Visam, na realidade, à estrutura do poder. Prenúncio da Revolução francesa. Um dos importantes biógrafos de Rameau, Jean Malignon, escreve: “Diderot visa ao espírito mesmo de Versalhes, Grimmm, ao espírito francês em sentido total e Rousseau visa a um homem”.

Duas estéticas se degladiam, a clássica e a da sensibilidade. Rameau e Rousseau têm leituras distintas da natureza. Para o primeiro, natureza das coisas, para Rousseau, natureza do homem. Entende Rousseau a supremacia da melodia sobre a harmonia, enquanto que Rameau, após exaustivos estudos e experiências, tem visão contrária, o que não implica serem suas obras imbuídas de melodias penetrantes. Contudo, crê na estrutura, nas fundamentais, na geração dos acordes, essências da harmonia.

Durante a Querelle des Boufons, essa “guerra” estética entre adeptos da música italiana e os fiéis à tradição da ópera francesa monárquica, foram publicados cerca de 60 textos, cartas e panfletos, por vezes inflamados.

Jean-Philippe Rameau. Permaneceu como um dos pilares da música ocidental. Legou algumas das mais importantes óperas em França do século XVIII. Seu pensamento teórico é coluna mestra que orientaria toda a trajetória da música nos séculos seguintes. Sua obra lírico-musical tem sido resgatada, lenta mas progressivamente, a deslumbrar gerações atuais. Sua criação para teclado é única na concisão, no rigor e nas fórmulas propostas.

Les SauvagesRondeau des Indes Galantes de Rameau interpretado por Magali Léger, Laurent Naouri e os Musiciens du Louvres sob a direção de Marc Minkowski em versão de concerto.

Em 1954 ouvi pela primeira vez a gravação da integral para cravo executada ao piano pela excelsa Marcelle Meyer (vide post “Marcelle Meyer – 1897-1958 – A Redescoberta Merecida”. 06/03/2007). Em 1971 executava pela primeira vez no Brasil essa fabulosa integral, que seria repetida em 1983 – ano do tricentenário de nascimento – no Brasil e em Portugal. Gravei-a em 1997, em Sófia, gravação que seria lançada no ano 2.000 pelo selo De Rode Pomp (duplo CD), na Bélgica e, em 2009, pela Concerto, em São Paulo. Em um texto publicado no “saudoso” “Cultura”, de “O Estado de São Paulo”, comemorava o tricentenário (nº 172, ano IV, 25/09/1983, pp. 5-7). Sessenta anos escoados e que apenas dimensionam a profunda admiração pela música e pelas teorias de Jean-Philippe Rameau, do primeiro impacto ao presente. Estou longe de desvendá-lo. Uma vida é suficiente?

On 12 September 1764 – exactly 250 years ago – died in Paris Jean-Philippe Rameau, the most accomplished musician of his time. This post addresses his works as a composer – harpsichord music, operas, motets, cantatas – and also as a music theorist, whose treatises continue to influence musical thinkers up to the present days.