Idalete Giga e a intimidade poética

A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro

Todo o meu ser
é embalado
pela Mãe-Natureza
que canta baixinho
sempre mais baixinho
até me adormecer
Idalete Giga

Idalete Giga está sempre a me surpreender. Conheci-a em Lisboa no início dos anos 1980, quando assistente da saudosa e notável gregorianista Júlia d’Almendra (1903-1992). Não poucas vezes estive na Igreja de Santo Antônio em Lisboa e tanto como coralista, sob a direção da mestra, como a substituí-la, pude aferir o profundo senso de plasticidade musical durante o encantamento de inefáveis cantos gregorianos. A amiga esteve sempre presente aos meus recitais em Portugal, desde aqueles longínquos anos. Estreitou-se a amizade, estendida através dos anos à minha mulher Regina, filhas e netas. A semana em que passou em nossa casa durante tórrido verão em Fevereiro último ratificou a admiração pelo talento multidirecionado da musicista-poetisa (vide Idalete Giga – Visita que Marcou, 22/02/2014). Sua sátira para três jograis, Zoprotikaviform e o Reino da Quantidade, teve recepção calorosa em meu clã.

Acompanhar Idalete em sua fala sempre inflamada tanto no amor absoluto à música, como na crítica ardorosa à corrupção que infesta Brasil e Portugal, corroendo-os nas entranhas, surpreende o interlocutor. Idalete é sempre incisiva em suas posições, mercê de uma irretocável condução na existência. Íntegra. Paradoxalmente, a amiga, quando conduzida pelo devaneio à arte da poesia, transfigura-se, e essa metamorfose se dá de maneira surpreendente. É possível entender que essa alentejana da gema encontre sua tebaida na planura do Alentejo, na aldeia de Ciborro, lá se refugiando do entulho de toda espécie que as grandes cidades despejam sobre o cidadão diariamente. Céu translúcido, planura e horizonte infindo, silêncio, “asa protetora que me envolve”, segundo a poetisa em seu poema “Hino ao Silêncio”. Esses elementos integram um vasto acúmulo de sensações que foram somadas em camadas homogêneas, a formar o todo da harmonia. O amor ilimitado pela natureza tem sido substância essencial para a musicista-poetisa, exemplificado pela regente coral impecável em sua condução do Coro Capela Gregoriana Laus Deo e através da veia poética emergindo como magma vulcânico. No “Hino à Natureza” a poetisa não professaria seu amálgama absoluto? “Hoje/quero/apertar na alma/a Natureza toda/num abraço Infinito”.

Idalete não se utiliza do ferramental da pontuação. A ausência de vírgulas e pontos seria uma temeridade não fosse a autora especialista ilustre do canto gregoriano. Tem-se a fluência própria e a disposição dos poemas navega nas plácidas ondulações sonoras e vocalizadas. Transfere para seus poemas a magia flutuante e a “pontuação” se integra à respiração. Idalete tem a sabedoria da condução da frase que em todos os poemas segue seu curso melódico e sereno. Se utilizada, a rima tornar-se-ia amarra. As palavras apreendem o maravilhamento do canto. “Cantar é moralizar o som”, no conceito de Guerra Junqueiro.

A leitura de “Canto da Palavra” (Lisboa, Chiado, 2014) transporta aquele que percorre os singelos poemas de Idalete ao universo onírico e imaculado. Inexiste subterfúgio, tampouco a intenção de agradar, contudo a seduzir e muito o leitor.

Poder-se-ia afirmar que as longas sendas trilhadas por Idalete levaram-na ao que de mais sensível existe nas terras do Alentejo e a fizeram perpassar em versos experiências captadas pelos sentidos. A alma da poetisa vibra em consonância com as gradações depreendidas da terra, do mar, da luz, do espaço. A leitura, a obedecer a disposição dos conceitos, emana sonoridades, ritmo e respiração. Das profundezas do Alentejo apreende o significado do isolamento em “Alentejo Profundo”:

O Alentejo
é a pura solidão
total
vestida de silêncio

O Alentejo
é um mar
de sobreiros a sangrar
magoado
de profunda nostalgia

O Alentejo
é um choro de menino
abandonado
é um grito ancestral
estrangulado
perdido
no Infinito.

Em torno do mistério alentejano nunca desvelado por inteiro desfilam sentimentos da autora, em êxtase na sintonia contemplativa. Idalete em seu mundo metafórico torna lírico o rude, o inóspito quiçá,  dando-lhes a interação com o belo. O observar a entender a metamorfose da terra. Impossível não compartilhar todo o processo de transformação ofertado pela poetisa. O Alentejo irmana-se à Terra Prometida, ao Shangrilá dos sonhadores.

Pintora das palavras, Idalete filtra a luminosidade alentejana. Nada escapa ao olhar ávido do lirismo das cores: “Ao longe/muito ao longe/quase a perder de vista/uma faixa de luz rósea/a esmaecer/cingia o horizonte” em “Crepúsculo”, ou “A brancura das flores de esteva/ iluminando/o roxo rosmarinho/o amarelo vivo/das giestas/languidamente curvadas/à beira do caminho” do poema “Aquarela da minha infância”. Há sempre a pulsar uma alvura espontânea, característica dos autênticos. No silêncio, tão presente em tantos poemas como sereno leitmotiv, Idalete encontra luminosidade e “Hino ao Silêncio” testemunha a afeição pelo inaudível “És a Luz/transparente/onde me encontro/a asa protetora/que me envolve”.

Idalete tem plena empatia pela onomatopeia. Senti esse seu afeto sincero e natural nas muitas viagens que, ao longo dos anos, fiz com a amiga de Lisboa a Évora para recitais de piano, que apresento anualmente no Convento Nossa Senhora dos Remédios, promovidos pelo Eborae Musica, sob a dedicada direção da Profª Helena Zuber. Sons e ruídos não lhe escapam. Sensibilizava-me o seu maravilhamento ao ver cegonhas aninhadas nas torres de transmissão. Inundava-a entusiasmo  juvenil. Sob outro contexto, o canto dos pássaros têm efeito de sedução e Idalete deixa-se encantar. Emulação integral com os cantos de seu Coro Gregoriano Laus Deo, que flutuam nas naves das igrejas onde se apresenta. No poema “Aves Canoras”, a poetisa desvela-se por inteiro:

Pequeninos
deuses alados
vestidos
de graciosidade
e de leveza

Dádiva Divina
do Criador à Amada Mãe-Natureza

Sábios
Mestres cantores

Excelsos improvisadores
de ritmos incontáveis
e sons encantatórios

Músicos do céu

Símbolos vivos
do Espírito liberto
do peso da Terra

Idalete se refugia em seu mundo interior e essa viagem ao insondável torna-a sensível e, ao revelar frutos desse recolhimento, faz-nos entender parte de seus segredos. Em “Canto Breve” revela: “Por isso me escondo/no silêncio/na solidão acompanhada/e na nudez/da minha irreverência/e rebeldia”. As incursões no desconhecido ancestral e sobrenatural fazem parte do todo voltado ao silêncio e ao olhar interior, que descobre passados atemporais. “Morri de Saudades” é pungente exemplo:

Correm-me nas veias
sangue nómada

Fui cigana e cigano
noutras vidas

Morri de saudade
de solidão
amarga e doce
em eternas chegadas
e partidas

Em sua sabedoria, Idalete tem o dom do recato. Não se expande, não busca a sedutora e tantas vezes traiçoeira divulgação. Reconhece seu espaço e admira os bons, aqueles que deixaram exemplos em suas áreas através do saber e das qualidades intrínsecas. Presta homenagens em poemas despojados a Olivier Messiaen, Jorge Peixinho e à poetisa maior alentejana, Florbela Espanca, que foi fruto de um substancioso ensaio no livro “Mulheres do Alentejo na República” (vide post 28/01/2012). Essa pequena grande mulher da planura alentejana vive para a entrega plena ao Belo, à Música, à Poesia, à Amizade, ao próximo. Discretamente finaliza no poema “Nada sei”: “A alma e o coração/segregam-me baixinho/Ama e sonha/Ama e cria/Ama e confia”. Idalete Giga permanecerá.

On the book “O Canto da Palavra”, written by the Portuguese musicologist, choral conductor, poetess and also my personal friend Idalete Giga. In free verses, the poems are principally associated with nature, landscapes and sounds of her native Alentejo, carrying readers to a dreamlike and immaculate universe, at the same time unveiling the author’s inner feelings and reflecting on universal themes.