Pergunta Intrigante de Leitor

Conhecimento verdadeiro de si próprio
só é dado ao ser humano
quando ele desenvolve interesse afetuoso para com os outros;
conhecimento verdadeiro do mundo,
o ser humano só alcança
quando ele procura compreender seu próprio ser.
Rudolf Steiner

Não poucas vezes questionaram-me sobre o discurso musical e a atividade esportiva que desenvolvo nestes últimos oito anos. Contudo, a pergunta de Reinaldo mostrou-se bem incisiva, pois o leitor tem interesse em saber o porquê de um músico, sedimentado através das décadas, tornar-se arauto caloroso da prática esportiva.

Historiar é preciso. Primeiramente, responderia que aos 20 anos de idade recebi bolsa do governo francês para estudar piano em Paris, cidade na qual permaneci  durante alguns anos. Antes de viajar, meu saudoso pai, àquela altura nos seus 60 anos, ensinou-me exercícios que ele denominava ginástica sueca e que eu deveria realizar pela manhã. A partir do dia a seguir minha chegada até presentemente – portanto, lá se vão 56 anos -, realizo esses exercícios durante 15 minutos após levantar. Ao atento Reinaldo diria que meu pai teria praticado essa ginástica desde a juventude em Portugal e, poucos meses antes de sua morte em 2.000, aos 102 anos de idade, realizava um dos exercícios à perfeição: colocar as mãos espalmadas sobre o piso sem flexionar os joelhos. Seu filho aos 76 anos também não os dobra. Ao todo são 11 exercícios que envolvem braços, pernas, movimentos giratórios, alongamentos, respiração e o todo a abranger parte essencial de nosso corpo. Recentemente mostrei a um experiente fisioterapeuta esses movimentos. Disse-me que jamais aconselharia um seu paciente a realização dessa prática. Perguntei-lhe se poderia mudar para outros exercícios. Respondeu-me no ato: “De jeito nenhum, continue. Se durante todo esse tempo tem funcionado, assim como foi proveitoso para seu pai, mudar a essa altura será um enorme equívoco”. Continuarei, pois, mas atento.

Foi apenas após um sério tratamento quimioterápico em 2004 que iniciei parcimoniosamente um caminhar que se transformaria, com os meses, em imperiosa necessidade de intermediá-lo com breves trotes. Com o tempo alongou-se a distância e do trote passaria para as corridas de 5 a 15km, 10 preferencialmente.

A consciência do ritmo da corrida associada à música veio-me depois de alguns anos dessa prática esportiva. Interessavam-me o aprimoramento físico, o cadenciar passadas e respiração e, curiosamente, pensar nos temas dos posts semanais, que seguem ininterruptos desde Março de 2007. É nos treinos que eles se sedimentam. Retenho-os até a primeira madrugada, quando fluem de um só impulso.

Foi a partir do assimilar batidas cardíacas durante um treinamento que mais pensei na agógica (agogia = da raiz grega agog: conduzir, levar dirigir). Trata a agógica de mudanças do movimento rítmico, aceleração, retenção ou mesmo interrupção – regular ou não – desse   processo. Mais acentuadamente, fui buscar identidades, não as expressivas, que nos levam à música, mas as flexibilizações físicas, motoras. O ato de correr não poderia ser considerado expressivo, estando mais ligado a uma ação automatizada proposta pela mente, para mais não dizer. Como afirma meu amigo e maratonista Nicola, “se o seu corpo estiver preparado a mente o levará ao destino desejado”. Decidimos e corremos. Quando das corridas de rua podemos sofrer alterações do batimento cardíaco que interferem no ato, diria, mecânico. Corredores que nos ultrapassam ou são ultrapassados, desvios da linha reta ao nos depararmos com grupo de atletas amadores, geralmente formado por companheiros de academia ou empresa que, mais lentos, correm lado a lado.  As batidas cardíacas inflexíveis sofrem, nesses casos, alterações que podem ser sensíveis. No entusiasmo da corrida coletiva, quantas vezes não somos propensos a dar um “tiro”, ou seja, correr bem mais rápido durante curto período. A prática estimula a circulação sanguínea, a provocar aceleração dos batimentos.

Na música há intrínseca ligação da agógica com a dinâmica (gradações das intensidades sonoras), nas corridas a “agógica” do batimento cardíaco conduz a sensíveis alterações, flexibilizando o número de batidas por determinado período. Poder-se-ia acrescentar que mesmo a diminuição progressiva de andamento e sua aceleração posterior (ou vice versa), representados na música através dos ritardandos, acelerandos ou mesmo o rubato (roubado, em italiano) encontram “paralelo” na corrida. O rubato é a palavra que determina na música uma liberdade rítmica não arbitrária, frise-se, pois ao sair de tempo padrão “rouba-se” da “inflexibilidade” através dessas acelerações e necessárias contenções que conduzirão o discurso musical, após essa flutuação, ao seu fluxo “normal”. Para o corredor, quantas não são as vezes, mormente nos treinos, que se tem uma espécie de rubato “mecânico”, pois a constância das passadas no treinamento pode variar por pequenas alterações de velocidade que levam, logo após, à normalidade. Diria, um rubato sem expressão, pois rigorosamente automatizado. Foi preferencialmente no período romântico que a palavra teria a ampla aplicação indicada na partitura musical. Determinados compositores, ao assinalarem tempo rubato permanente em algumas obras, expandem extraordinariamente o conceito ao mostrar que a música não é mecânica e contém carga emotiva. Contudo, rubato na música só deve ser harmonioso, pois, se não o for, penetra-se no equívoco. Em outro contexto da criação, quantas não são as composições inflexíveis quanto ao tempo, metronômicas, no batimento exato. Nesses casos, o compositor indica com precisão a sua vontade explícita. Não se passa o mesmo em muitos atletas excepcionais que têm o ritmo imperturbável das passadas na mente?

Num contexto bem próximo à associação acima, estudos aprofundados têm mostrado significativos resultados numa preciosa área, a Euritmia. Se a agógica teve em Hugo Riemann (1849-1919) um de seus “enunciadores”, deve-se a Rudolf Steiner (1861-1925) aprofundamentos relacionados à Euritmia. Segundo o notável educador, esoterista e pensador, movimento, palavra e canto faziam parte de uma atividade definida na antiguidade. Basicamente, um dos fundamentos de sua teoria reside na realização de tipos de movimentos que serviriam como impulso ao ser humano num sentido bem harmonioso, poder-se-ia dizer, totalizante. Quantidade de estudos posteriores realizados por especialistas na área têm colaborado nessa interação do movimento com o gesto, o som, a palavra, a dança… A Euritmia é, pois, um precioso caminho nessa busca eterna de um “amálgama” do movimento corporal com manifestações artísticas e também com a palavra.

Seria pois nesse sentido rítmico – não expressivo, friso – que entendo o ato de correr como um “amálgama” com a agógica e a dinâmica, pois aceleração e relaxamento nas corridas têm lá suas intensidade “sonoras” ou de “ruídos” nitidamente comprovadas pelo estetoscópio que amplifica essas alterações dos batimentos cardíacos.

Creio ter respondido ao atento Reinaldo em tema que me fez refletir sobre aspectos tão importantes envolvendo o movimento como fulcro essencial para, basicamente, todas as áreas.

A corrida de Natal deste último dia 14 de Dezembro promovido pela Corpore reuniu milhares de atletas amadores. Aproveito o momento para desejar a todos os leitores que prestigiam meu blog um Natal pleno de paz e de confraternização.

Reflection on the correlation between body movements and artistic expressions, music in particular.