Sylvain Tesson e Priscilla Telmon em Travessia a Cavalo pela Ásia Central
Segredo do peregrino:
avançar sem ansiedade, mas sem distração,
passos contados, obstinado ao longo do dia,
para vencer consideráveis distâncias.
A estepe desfila lentamente,
cinco ou seis km por hora,
sem que nada rompa a fantástica uniformidade do deserto.
Sylvain Tesson
Foram muitos os livros de Sylvain Tesson resenhados no blog ao longo destes últimos anos. A lista completa pode ser acessada através do link “Livros – Resenhas e Comentários” do menu do blog. Admiro a intrepidez do aventureiro que percorre o planeta a pé, de bicicleta ou a cavalo, trazendo ao leitor um universo tantas vezes inóspito e, para nós, inacessível. O olhar arguto de Tesson, aprimorado com o passar dos anos, encaminha-nos sempre para leituras novas das paisagens, dos costumes e dos personagens das mais variadas etnias. Esses, Tesson ausculta, capta desalentos e esperanças, entende o sedentarismo ou nomadismo a depender das circunstâncias, é introduzido nos lares singelos e rústicos e retira eflúvios ancestrais, passados através das gerações.
Em Janeiro de 2014 tive a alegria de estar presente – puro acaso – no lançamento de um de seus livros em livraria de arrondissement em Paris (vide: “Considerações sobre o Desbravar – Buscando Responder a Indagações”, 15,02,2014). Um dedo de prosa, autógrafos e vários outros livros na bagagem de volta. Para um autor que esteve tantas vezes frente à possibilidade de morrer, um fato absolutamente do cotidiano quase levou-o à morte. Aos 20 de Agosto, sofre uma queda em Chamonix ao escalar um prédio. Teve comoção cerebral. Permaneceu em coma induzido durante bom período e, segundo um comunicado da família, meses depois Tesson recupera-se: “Suas capacidades intelectuais estão milagrosamente preservadas mas devido aos muitos traumatismos, haverá necessidade de tempo e repouso”. Assim esperam seu familiares e legião de leitores. No vídeo da entrevista que concede à FR1 (20/01/2015), Sylvain Tesson, pleno de lucidez, apresenta contudo sequelas da lamentável queda (http://www.huffingtonpost.fr/2015/01/20/video-philippe-tesson-defendu-par-sylvain-tesson-propos-musulmans_n_6505336.html ).
Em “La Chevauchée des Steppes” (Paris, Robert Laffont, 2001), o escritor viajante percorre com Priscilla Telmon cerca de 3.000km a cavalo pela Ásia Central. Para tanto, adquirem três equinos no Cazaquistão – Ouroz, Boris e Bucéphale – dedicando-lhes o livro. A bela Priscilla Telmon (1975) é jornalista e escritora, viajante de longas distâncias, fotógrafa. Realizou viagem solitária pelo Himalaia em 2003-2004, seguindo as passadas da aventureira Alexandra David-Néel (vide blog, 07/12/20007), e saltou de paraquedas a 10.000m de altura sobre o Everest em 2011.
“La Chevauchée des Steppes” foi realizada entre 1999 e 2000. Trata-se de um dos primeiros livros de Sylvain Tesson (1972) e, para o leitor que tem acompanhado sua trajetória, pode-se sentir o percurso mental do autor, interessado inicialmente também na narração de fatos históricos à medida que espaços são vencidos. E essas narrativas são muitas, sob olhar arguto, a fazer comparações de toda a região em dois períodos decisivos, antes e logo após o regime soviético.
Os 3.000km abrangem uma vasta região que se estende do Cazaquistão, Quirgstão, Tajdiquistão, Uzbequistão, margeia a fronteira do Turcomenistão, prolonga-se pelos desertos uzbeques até o Mar de Aral. Aventura fantástica não desprovida de perigos, pois por várias vezes quase sucumbiram aos assaltos quando das lentas cavalgadas.
A narrativa, por vezes entremeada por escritos de Priscilla Telmon, testemunha a atração pelo desconhecido, a curiosidade em apreender costumes e retirar das mentes das tantas etnias a sabedoria ancestral. Ficaria claro que a divisão territorial empreendida pela União Soviética, com fins “aparentemente” geográficos, trouxe uma série de problemas fronteiriços e escaramuças permanentes entre os habitantes dessas inóspitas regiões. Em todas as obras do autor, quase sempre foi bem recebido pelos citadinos, nômades ou aldeões. Constante.
As tantas intervenções da antiga União Soviética nos recursos hídricos dos vastos territórios teriam sido desastrosas. Com fins unicamente de retirar as riquezas do solo, represas foram feitas sem o respeito criterioso aos recursos naturais e Tesson e Telmon testemunham o desastre de cidades e as consequências de leitos de rios secos, cidades moribundas e a sensível diminuição das águas do Mar de Aral, um dos quatro maiores lagos do planeta há 50 anos, hoje reduzidíssimo (vide ilustração). Um dos rios que o abastece, o Amou-Daria, que foi fonte de sobrevivência para os países em questão, está em situação calamitosa, diminuído, poluído. Tem interesse o relato de Tesson em terras usbeques ao abordar o interesse da ex União Soviética em transformar as planícies do Uzbequistão em celeiro de algodão: “O Amou-Daria e o Syr-Daria, dois rios tributários do Mar de Aral, converteram-se brutalmente em vulgares tubos de irrigação. Bombeiam-se suas águas míticas. A planície foi estriada por canais feitos a céu aberto, alimentados pelos dois cursos de água. O algodão cresce. As cifras incharam. O Aral agoniza, sacrificado sob o altar das estatísticas de produção”. Catástrofe. Mutatis mutandis, não se tenta no Brasil, nessas últimas gestões planaltinas, a transposição do Rio São Francisco, o rio da integração nacional? Obra faraônica com consequências imprevisíveis. Independentemente das chuvas, já houve a diminuição do fluxo de nosso rio mítico. Sob outra égide, o desmatamento da vasta região amazônica, que deveria ter fiscalização plena, está a recrudescer e parte da falta das chuvas, que chegavam também ao sudeste, é devida a essa verdadeira incúria.
À medida que nossos aventureiros atravessam desertos, estepes e adentram cidades e aldeias, relatam o presente e reportam-se ao passado. Os habitantes mais velhos lembram-se de tempos mais venturosos do período da piscicultura ancestral. Será Priscilla Telmon a narrar o resultado das pragas e insetos que quase levaram Tesson à septicemia: “Por força de desafiar de manhã à noite as regras de higiene, dividindo as noites com percevejos nos leitos, mosquitos sanguinários durante o dia, pulgas e outros mais insetos, foi vítima de uma infecção nos canais linfáticos. De um minúsculo abscesso situado sob o punho surgiram longas manchas vermelhas, que subiram até os ombros. Os gânglios foram atingidos. Mais alguns dias e teríamos a septicemia. Essa só não chegou graças à dose cavalar de antibióticos, mais violenta do que meses de cavalgada”.
O longo convívio serviu para leitura de um sem número de livros que os dois aventureiros levaram. O cotejamento história-atualidade reveste-se de charme, pois rememoram desde Genghis Khan aos séculos mais recentes e sentem um quase prazer de pisar solo anteriormente frequentado por cavaleiros e guerreiros. Comentam o islamismo, descrevem mesquitas e minaretes. Encantam-se com Samarcanda, a segunda cidade uzbeque. Pormenorizam-na, pois fazia parte da rota da seda entre China e Europa. Extasiam-se com Bukhara, essa cidade murada do século X, sua mesquita mor e seu alto minarete de Kalian (50m). De lá, o khan ordenava a queda dos condenados à morte. Tem certa dose de humor negro o relato de Tesson, que subiu ao topo com Priscilla “Era a última visão que os condenados à morte levavam antes da queda, empurrados pelo carrasco. Derradeira graça concedida pelo khan: oferecia-lhes um último olhar sobre as belezas do mundo”.
Melancólica a chegada ao Mar de Aral. Todo o projeto a visar ao final esse mar que está a morrer. Tesson comenta “Na cabeceira do mar nós choramos, pois o mar está morto e nossa viagem chega ao fim”. Doados ao Museu de Artes Savitsky, em Noukus, Uzbequistão, os fiéis cavalos Boris, Ouroz e Bucéphale ganham a liberdade no dia seguinte, não sem emoção de Sylvain e Priscilla.
Sedimentavam-se em 2.000 tantos outros projetos que levariam Sylvain Tesson a percorrer a pé, a cavalo ou de bicicleta vasta região do planeta, traduzidos em instigantes livros já resenhados. Esperemos que a narrativa do conturbado mundo em que vivemos, lenta e serenamente, sob olhar inusitado, perdure.
This post is an appreciation of the book “La Chevauchée des Steppes”, written by the French geographer and traveler Sylvain Tesson. In 1999-2000, together with the photographer Priscilla Telmon, he crossed the steppes of Asia from Kazakhstan to Uzbekistan, reaching the Aral Sea . He tells us about customs of different ethnic groups, their difficulties and dreams, witnessing the devastation and shrinking of the lake that was formerly one of the four largest lakes in the world.