Navegando Posts publicados em fevereiro, 2015

O Texto como Respiração

Todo o homem é diferente de mim e único no Universo;
não sou eu, por conseguinte, que tem de reflectir por ele,
não sou eu quem sabe o que é melhor para ele,
não sou eu quem tem de traçar o caminho;
com ele só tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever:
o de ajudar a ser ele próprio;
como o dever essencial que tenho comigo é o de ser o que sou,
por muito incómodo que tal seja, e tem sido, para mim mesmo e para os outros.
Agostinho da Silva

Aos dois de Março de 2007 nascia o primeiro post publicado no blog. Já comentei anteriormente que nada teria acontecido não fosse uma observação de meu ex-aluno Magnus Bardela. No final de Fevereiro daquele ano, após conversa amistosa a rememorar fatos,  ele – que frequentou durante quatro anos minha classe de piano na USP, formando-se brilhantemente -, propôs-me a construção de um blog. Hesitei instantaneamente, mas a argumentação de Magnus foi convincente e dias após, sem que eu soubesse, durante conselhos que me dava sobre internet, construiu o blog, dizendo-me: “Está pronto, é só inserir seus textos”. Atônito, ainda hesitei, mas aos 2 de Março “Praeambulum” dava início ao caminhar com os leitores.

Mencionei várias vezes que a não interrupção desde 2007 jamais foi um problema. Certo dia o amigo Daniel Marcos me questionou “Você não se dá férias, ao menos um mês?”. A resposta foi imediata: “Nunca dei férias para minha respiração”. O ato de escrever, de  estudar piano ou de correr faz parte desse respirar, cotidiano ativo. Quanto aos blogs, a não interrupção uma semana sequer (o post entra aos sábados às 00h05min) durante esses oito anos é fruto do pensar enquanto realizo treinamentos a correr pelas ruas de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, já mencionado em tantos blogs anteriores. A aceleração cardíaca age sobre os neurônios e as ideias fluem com naturalidade. Focalizado um tema, é só desenvolvê-lo na primeira madrugada e o texto desliza, corrente. Problemas técnicos adiaram por um ou dois dias uns poucos textos.

A pressão de ter de escrever tantos caracteres para a uma determinada publicação em tempo previamente fixado não daria resultado em meu caso particular. Essa liberdade não me impõe restrições quanto à dimensão, quiçá conteúdo. Observando os pássaros, dificilmente eles obedecem a roteiros, salvo os pombos – mormente o pombo correio ou as aves migratórias. A temática simplesmente acontece e tem acontecido sem interrupção. Música, sempre, cotidiano e suas surpresas, resenhas de livros que me atraem, impressões colhidas durante viagens e que se processam no de profundis, tardiamente quantas vezes. Diria que a observação “viajar é olhar”, da grande poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen pode ser interior. Todos os impactos que diariamente vivemos se acumulam e ficam numa espécie de álbum interior, pleno de figuras e observações. Basta um impulso, sugestão que seja, e aquela determinada página escondida no álbum interior ressurge por inteiro. “Viajar é olhar”, seja externa ou internamente. Meu celular é daqueles jurássicos, só recebe ou transmite ligações. Nada mais. Certa vez em que minhas netas se divertiam tirando fotos e selfies com aparelhos sofisticados, disse à Emanuela, a menor, que iria tirar uma foto mental simulando uma foto com tão antigo celular. Pôs-se a rir. Horas após, enviei-lhe e-mail com a imagem de meu celular e escrevi: “feche os olhos e lembre-se daquele momento, pois ele está gravado em sua mente”. Valeu como descontração, mas Emanuela guardou o episódio.

Raramente visito o universo nebuloso da política, mormente nestes últimos anos em que a mentira é vendida como verdade e a corrupção enlameia o cotidiano. Por vezes, sem o desejar, emito considerações. Jornalistas que costumo frequentar pela leitura ou escuta radiofônica têm exercido com competência a denúncia como alerta, o confronto como dialética necessária e saneadora. Há esperanças. O país não se submeterá à primazia que está a fazer sucumbir democracias latinas. Não merece.

Temas fluem e nosso universo depende invariavelmente dos tópicos atrativos. Eles lá estão. Buscamo-los à maneira de um peregrino que, ao caminhar, pormenoriza-se naquilo que já está “pré-moldado” em sua mente. Sim, há o acaso. Não o desprezo, nunca.

Para que a sequência não tenha sofrido uma interrupção sequer ao longo dos tantos sábados, há a necessidade de querer. Meu saudoso e sábio pai nos ensinou básicos princípios que serviram aos quatro filhos: disciplina, perseverança, constância, concentração e fé naquilo em que acreditamos. Esses tópicos foram aplicados diferentemente pelos irmãos de sangue, a depender da visão individual das coisas.

Nada teria acontecido não fosse Magnus ter pressentido a ideia. Continuava a reter textos mentais em ebulição permanente, como sempre, desde meus primeiros anos. A memória tem esse poder mágico de manter o que os olhos viram externa e internamente, amalgamar olhares sem perder a precisão e, quando acionada, revelar por inteiro experiências vividas. O arquivo mental é uma de nossas dádivas maiores.

Este blog não existiria sem colaboradores dedicados que, ao longo destes anos, jamais hesitaram em ajudar-me, ignorante que sou dessa parafernália tecnológica a todo instante renovada. Difícil, nos meus 76 anos, acompanhar essas transições rápidas, sempre em direção a uma outra inovação. Desisti. Conheço o básico do básico e, graças aos amigos diletos, supro a não atualização internética.

Regina Pitta, Magnus Bardela, François Servenière, Elson Otake e Luca Vitali (in memoriam). É um privilégio tê-los a me dar suporte em esferas distintas. Desde o primeiro post, minha dileta amiga e vizinha, Regina Pitta, lê os textos e faz revisão impecável. O compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931) escreveria ao seu amigo, Furio Franceschini, que o pior revisor é o autor e, entre esses, era ele o pior. Assertiva. O texto flui  num impulso nas madrugadas e as duas ou três leituras não são suficientes para sanar gralhas (assim os portugueses definem incorreções) que parecem querer se ocultar. E como se escondem!  É humano. Regina passa a lupa, mercê de seu conhecimento de nossa gramática. Quando dúvidas pairam, recorre à Filologia. Sinto-me seguro. Após as devidas correções e sugestões – nem sempre aceitas, mas é bom ter uma outra opinião -, escreve um resumo em inglês, devido aos leitores acima do Equador que me honram com a leitura dos blogs, traduzidos sofrivelmente pelo programa do Google.

Magnus tem sido meu guru internético. Foi ele que me ensinou o que sei, isso em 2003. Só não aprendi mais por total descaso com a aceleração infalível da tecnologia. O básico possibilita-me o convívio com teclado e tela e os acessos que consigo atingir. Quando um impasse surge, é Magnus que me socorre, pois de seu computador pode acessar o meu e sempre, até agora, tudo se resolveu. Mente privilegiada a deste amigo que diariamente envia-me gravações fabulosas que dia a dia têm enriquecido o bom lado do YouTube, a contrastar com o besteirol que infesta esse meio de comunicação.

Elson Otake, não diretamente ligado ao meu blog, tem sido o responsável pela introdução no YouTube de cerca de 80 músicas por mim gravadas no Exterior. Preciosista, tem o dom da concisão e suas montagens são louvadas aqui e alhures. Maratonista, em muitas corridas de rua abdica de sua velocidade para correr ao meu lado. Um estímulo.

François Servenière. Compositor e pensador francês de altíssimo mérito, Servenière privilegia-me com mensagens de extraordinário teor. Nossa correspondência, nascida em 2008, é abastecida semanalmente. Todos os posts têm sua leitura acurada. Se a tradução Google tem tantas falhas, Servenière consegue sempre apreender a essência dos blogs e seus comentários enriquecem meus textos, pois o amigo insere leituras paralelas e reflexões profundas sobre o tema. Tão ricas são suas mensagens que o considero, hoje, um partner de meu blog. O leitor tem acompanhado, através dos Ecos, que ele está sempre presente. Fundamental é a possibilidade de novo olhar de um autêntico intelectual francês. Estimula a comparação, faz-nos apreender aspectos que por vezes nos passam desapercebidos. Privilégio.

Rendo tributo ao meu saudosíssimo amigo e extraordinário artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Durante anos, Luca foi colaborador dedicado. Tantas vezes mencionei que o amigo tinha um lápis no cérebro. Ao conhecer um texto, um ou dois dias após enviava-me um desenho alusivo ao tema. Alguns eram charges de humor bem refinado. Faz-me muita falta o convívio semanal que mantinha com Luca. Arte era nosso assunto fulcral. François Servenière, ao ver as ilustrações da magnífica Série Cósmica (acrílico sobre tela) do artista, ficou tão impactado que escreveu sete Études Cosmiques para piano e, após a partida de Luca, mais um Estudo, Outono Cósmico. Em Abril voltarei ao tema, pois deverei gravá-los na Bélgica juntamente com Estudos Contemporâneos de outros compositores.

A família. Sem a harmonia que nos faz unidos indelevelmente, confesso que dificilmente conseguiria empreender trajetórias. Ela me traz a serenidade necessária. Epicentro essencial.

Se já ultrapassamos os 600.000 acessos, devo esse estímulo unicamente aos leitores que têm prestigiado minha coluna. Continuarei. É o que sei fazer.

This week my blog completes eight years of nonstop work, leading me to reflect on the pleasure of posting an entry every week – a flow of ideas that come to me during my street races. In this post I recall the subjects that are dear to me, expressing gratitude for the services of those who, behind the scenes, help me in this endeavor.

 

 


As Várias Manifestações Gestuais

A obra de arte não deveria ser pretexto
para o intérprete expor seus próprios estados de alma.
Tão pouco a exibição de si mesmo, ou seja, a auto-exibição.
É dever sagrado do intérprete comunicar
de maneira intacta o pensamento do compositor,
pois ele não é que intérprete, apenas.
Claudio Arrau

Dividi em duas partes o blog sobre o gesto. Este segundo post coloca-se em dois momentos: apresentar a continuação das considerações de François Servenière sobre o gesto, mormente na modernidade e, depois, tecer reflexões pessoais sobre gestualidade, concentração, mídia, tradição e modernidade, já externadas homeopaticamente em tantos posts anteriores.

Ao regressar ao pianista Lang Lang, nascido na China em 1982, Servenière comenta: “Vejo em sua maneira de interpretar algo muito original, fundamental para a maestria do futuro, mas iconoclasta para a geração mais purista, nascida sob os fundamentos batismais da rádio, onde apenas a audição era importante. Consideravam que a transmissão áudio iria travestir e trair a tradição dos intérpretes mediúnicos, podendo ‘matar’ os poucos intérpretes ungidos num panteão ainda em vida. Eram eles os únicos que poderiam se opor a esse fervilhar multifacetado que surgiu com as novas gerações de pianistas, produzidos em massa pelos conservatórios mundiais. Essa assertiva pode ser constatada através de caminhos percorridos por essa legião de intérpretes.

Por que fiquei emocionado com a interpretação de Lang Lang do famoso concerto de Tchaikovsky? Ele teria compreendido que a música de tradição, habitualmente denominada clássica ou erudita, muitas vezes com desprezo, necessitará de nova metodologia para poder concorrer com as insípidas presenças na web, que deploramos amargamente, você e eu. Lamentamos a capacidade perdida da música erudita de poder seduzir o espectador frente ao desarranjo infinito que nos é proporcionado por esses espetáculos de vídeos YouTube sem pé nem cabeça, pela apologia insana à pornografia, sem contar sexo, assassinatos e a decadência  mais estereotipada, salvo em Roma antes da queda. Até mensagens bárbaras de fundamentalistas são apresentadas! Lang Lang compreendeu que, para concorrer com a web atual, em batalha aparentemente perdida para o besteirol, seria necessário mostrar movimento, vivacidade, teatralidade, mise-en-scène e qualidade vivificada e renascida, pois a imagem alimenta-se ‘bestamente’ de movimentos e vida. Ação de muitas câmaras e gestos, montagens sofisticadas, pois, mesmo que o purismo o contradiga, evidentemente o progresso passa por uma análise de fundo e de forma! Orquestras e metteurs en scène compreenderam essa tendência. Talvez estejamos nessa fase necessária – mas não o suficiente – da transição, onde intérpretes aprendem uma nova linguagem, justamente essa da cena frente à câmara quando, pouco a pouco e por vezes tateando, compreendem a necessidade atual, vital e irreversível, dessas técnicas inovadoras. Acredito, em contrapartida, que haverá uma volta à verdade da linguagem essencial entendida por você.

Na realidade, a gestualidade de Lang Lang não é tão diferente daquela de músicos clássicos de todas as gerações, que adentravam o palco diferenciando-se da concorrência mostrando personalidades expansivas, diferentes daquilo visto até então. Estive presente em numerosas premières de jovens. A teatralidade mais ou menos excessiva, a depender da personalidade, perturbava-me, como o perturba.Compreendi com o tempo que se tratava de natural inclinação ao inusitado nesse vislumbrar da carreira. Como você demonstra com eloquência, o intérprete regressa naturalmente à tradição mais comedida e sábia de sua arte quando sua personalidade acaba sendo aceita e adubada pelo público. Stravinsky foi radical ao compor ‘A Sagração da Primavera’ e resultou, o mesmo fazendo Pierre Boulez, ainda mais radicalmente! Conheci os primórdios da carreira do pianista François-René Duchâble. Era eu ainda um menino. Extrovertido e expansivo no palco àquela época, Duchâble era de estatura pequena. Quando assisti a um seu concerto – ele deveria ter 50 anos – presenciei o sábio sobre a montanha, já sem a necessidade de fazer acrobacias e gestualidade excessiva para deslumbrar multidões. Duchâble encarnou dois personagens, o gênio precoce e o sábio. A primeira atitude, para se fazer conhecido, a segunda, para transmitir. Toda essa metamorfose em apenas uma personalidade desejosa de imortalizar a verdade da música em lances largos, elegância, profundidade. A verdade estaria nessa transformação. Penso que Lang Lang tem suficiente talento e inteligência para traçar o mesmo caminho percorrido pelos grandes mestres. Os excelsos compositores também não trilharam sendas que se metamorfosearam?  Aí estão Debussy, Mozart, Ravel, Stravinsky, Beethoven, mestres absolutos, para mais não dizer” (tradução: J.E.M.).

A tradição obedece à constância, dela é integrante. Porém, fluxos motivados pela passagem do tempo, não a tornam imutável. Impossível seria tratando-se de interpretação. A tradição pressupõe pequenas flexibilizações. Se assim não fosse, estaria embutida, aprisionada. Contudo, a espinha dorsal – mercê da partitura, das fontes, do debruçamento de estudiosos e da oralidade – é salvaguarda para que a continuidade tradicional permaneça. Se a modernidade e a tecnologia sempre in progress avançam para cenário cada vez mais exposto, intérpretes adeptos da tradição no suceder de gerações não têm essa preocupação com o efeito gestual e a transmissão da mensagem musical. Antolha-se-me que o gesto expõe o carimbo rigorosamente individual quando dos excessos nos tempos atuais. Insubstituível, personalíssimo, o gesto mediático exacerbado não encontra imitadores. Ele é efêmero, pois estiola-se com o “criador”. Tem, sim, descobridores de outras “técnicas” de expressão corporal. Seria do mais extremo mau gosto uma réplica de Lang Lang em suas transformações corpóreo-faciais, como beiraria o grotesco a adoção postural excêntrica de Glenn Gould frente ao piano. Os gestuais do virtuosístico e estereotipado Lang Lang e os praticados por Glenn  Gould, artista de raríssima inteligência, não têm e não tiveram, respectivamente, seguidores, mas servem e serviram para autopromoção. Impossível a indiferença ao vermos essas duas personalidades em ação. Não obstante, é fácil entender que há fundamental diferença entre os dois, pois no pianista canadense, apesar das excentricidades, a presença da plena convicção quanto à interpretação meticulosamente planejada torna-se transparente.

Esse debate me fez percorrer vídeos de alguns pianistas, do passado ao presente. Apresento alguns links que poderão ser acessados pelo leitor. Acredito que a economia dos gestos, quase que sine qua non no passado, ajudava a transmissão da mensagem musical nesse respeito absoluto à tradição. Se houve exceções bem anteriores, inclusive a de Franz Liszt (1811-1886), frise-se que o extraordinário pianista e compositor húngaro teria sido o primeiro a apresentar recital sem partitura e parte essencial de suas récitas era constituída de obras de sua lavra. Seu gestual era único, segundo relatos. No meu entender, ratifico, torna-se improvável o não contágio do gesto sobre a transmissão. Interfere na frase musical, nas acentuações, sensivelmente na agógica e no estilo. Certamente o intérprete de gestual exacerbado, que está a “transmitir-se”, preferencialmente à mensagem musical, não deverá ser aquele que carrega a chama olímpica da tradição. Daí minhas observações no e-mail a Servenière, postado no blog anterior. Porém, ele tem razão em suas considerações. Tempos modernos clamam pelo gestual. E não apenas isso. Empresários, que visam obviamente ao lucro, plateias que se empolgam com o virtuose “fenômeno”, que entendem a gestualística como meio fundamental, sociedades de concerto que aceitam ser aquele o “cara” a ser cultuado, pois adorado pelo público que acorrerá numeroso ao evento, mídia “comprometida”. Todo um esquema estaria montado e tende à aceleração. Essa tendência hodierna, regada fartamente pelas câmaras onipresentes, favorece o gesto. Intérpretes se submetem. É a lei do mercado. Todavia, tantos da média e nova geração não são atraídos pelo canto das sereias. A meu ver, felizmente. Questão de estilo.

Os links levam aos vídeos. Intercalo atitudes frente à transmissão da mensagem musical.

Vladimir Horowitz (1903-1989)
Schubert-Liszt / Soirée de Vienne – Valse Caprice nº 6

 

Lang Lang (1982- )
Scriabine / Étude op. 8 nº 12 – Patético

A não compreensão do mood do  Estudo – a sinfonia nº 6 de Tchaikovsky também leva o nome de Patética – é clara. O termo patético, ligado aos afetos, estaria mais próximo do drama ou mesmo da tragédia. O gestual totalmente voltado às câmaras contradiz intenções contidas na palavra.

Arturo Benedetto Michelangeli (1920-1995)
Domenico Scarlatti / Sonata in B minor

 

Mitsuko Uchida (1948- )
Mozart / Concerto in D minor / K466

A interpretação, nitidamente voltada às câmaras traduz, inclusive, paradoxos. A pianista está a reger e sendo amplamente filmada. O gestual exagerado não combina com a atitude dos ótimos músicos, inteiramente voltados à partitura. Praticamente não olham para os gestos de Uchida quando a reger! A regência mostra-se, pois, “virtual” a enfatizar a regente-pianista.

Glenn Gould (1932-1982)
J.S.Bach / Partita nº 4 / Sarabanda

 

Jean  Doyen (1907-1982)
Chopin / Fantaisie-impromptu Op.66

 

In today’s post I resume François Servenière’s views on pianists that act dramatically to dazzle audiences, followed by my own comments on the subject. As illustration, a series of links with videos of pianists of different personalities and styles, so that readers can compare them and draw their own conclusions.

 

 

 

O Bom Debate

Uma pedra atirada na água jamais erra o centro do alvo.
Sylvain Tesson
(Aphorismes sous la Lune…)

De meu dileto amigo e frequentador dos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, recebi aos 18 de Janeiro último link concernente à abertura da Filarmônica de Paris. O acontecimento comoveu a cidade e dois pianistas, entre os mais mediáticos do planeta, Hélène Grimaud e Lang Lang, apresentaram-se, respectivamente, sob a direção de Paavo Järvi, em dois dos concertos para piano e orquestra mais festejados do repertório pianístico: em sol de Maurice Ravel e em si bemol menor de Tchaikowsky. Servenière, ao me enviar o link, fez comentários, a louvar intensamente o evento, a expressiva apresentação dos dois intérpretes, mormente a do artista chinês Lang Lang, assim como a recepção pública calorosa.

Pela primeira vez neste espaço insiro e-mails que trocamos semanalmente, François Servenière e eu. Nossa correspondência iniciada em 2008 acentuou-se nestes últimos três anos e já deve beirar as 1.500 páginas. O posicionamento do excelente músico a respeito do concerto levou-me a responder-lhe, após ouvir via internet a apresentação integral. Realmente, um concerto memorável. Estilos diferentes frente à interpretação, confrontos entre a tradição e a modernidade. Escrevi-lhe:

“Ouvi o célebre Concerto de Tchaikowsky. Assim como a amigo, que conhece tão bem a partitura par coeur, trabalhei muito essa obra com Jean Doyen e Marie Thérèze Fourneau em Paris, a visar ao Concurso Tchaikovsky em Moscou (1962). Gosto imenso dessa composição. Lang Lang é um pianista de grande virtuosidade e incríveis malabarismos no teclado. Sua interpretação é envolvente. Contudo, duas atitudes de Lang Lang me incomodam, uma musical e outra gestual, esta última talvez devido à minha faixa etária e minha formação construída na tradição. Meu posicionamento é absolutamente pessoal.

A execução desse magnífico concerto de Tchaikovsky foi estabelecida desde o século XIX a partir de rigorosa tradição, que não impede nulamente a liberdade e a criatividade do intérprete. O que me incomoda na interpretação de Lang Lang é a ‘invenção’ de acentuações não nomeadas pelo autor, assim como a agógica onde a arbitrariedade, em não raras oportunidades, fica evidente. Essas atitudes se dão também em obras de outros autores por ele executadas. Inúmeras vezes, na magnífica performance do pianista, friso, performance, Lang Lang se desvia desses fundamentos tão profundos concernentes ao que o compositor realmente deixou grafado na partitura. O grande mestre e pianista francês Jacques Février escreveu que há mil e uma maneiras de se tocar Debussy e que uma apenas é equivocada, a de trair seu estilo. Mesmo considerando a performance de Lang Lang sob o aspecto pianístico, reitero, esse desvio de pilares da escritura de uma obra me incomoda. Continuo a preferir algumas interpretações desse concerto mais voltadas à grande tradição, mas entendo lindamente o seu entusiasmo verdadeiro e sincero pela performance de Lang Lang. Sob aspecto outro, Claudio Arrau confessava a Joseph Horowitz que, a partir de uma certa idade (cerca dos 50 anos), teve série crise. Era necessário decidir: agradar ao público ou transmitir a mensagem musical. Decidiu pela economia dos gestos, reduzindo sensivelmente o exagero. A gestualidade de Lang Lang empolga o grande público, graças também à enorme virtuosidade e a uma musicalidade estereotipada. Contudo, se nos ativermos unicamente ao som, há lacunas quanto ao rigor de que nos lembra Février. Será que no gesto exagerado encontraríamos o essencial da música? A teatralidade não atingiria o cerne da mensagem musical, “alterando-a”? Pianistas do passado e tantos do presente transmitiram e transmitem música sob o mais absoluto controle físico e espiritual. Hoje, hélas, alguns intérpretes utilizam-se do gesto destinado às câmaras – cada vez mais presentes – ou ao público delirante”.

François Servenière me respondeu enviando longa mensagem. Sua posição reflete a mais absoluta atualidade. Os meios eletrônicos voltados à imagem, a proliferação de vídeos que registram os pormenores antes desprezados, a concorrência, o público, que foi pouco a pouco se habituando com o espetáculo mais interativo, impulsionam a participação mais “arrojada” de certos intérpretes, que sabem estar sendo focalizados in totum. Voltarei a esse quesito no próximo blog.

Segue a mensagem do músico completo, François Servenière:
“Sem dúvida estou entusiasmado pela virtuosidade teatral transmitida pelas câmaras. Não há qualquer dúvida a esse respeito, tenho de ser honesto comigo mesmo. Como espectador, fiquei impactado pela imagem e pelo som. Acredito que o caminho futuro para a transmissão da mensagem renovada – ‘despoeirada’, dirão alguns! – da música clássica deve passar pelos gênios modernos da interpretação como Lang Lang (1982- ), que sabem se utilizar das mídias modernas, comparativamente aos mais antigos, que ficavam fieis à tradição do gesto puro. Essa interpretação  causaria enfado talvez – mercê das novas técnicas de mediação universal – aos espectadores do século XXI, habituados à instantaneidade trepidante da web. Herbert von Karajan (1908-1989) compreendeu o novo paradigma. Tinha um estúdio privado e uma equipe audiovisual que o seguia sempre. Seu sucesso incrível dependia unicamente dessa capacidade de se adaptar ao seu tempo, sempre na frente quanto ao universo musical como sobre as técnicas audiovisuais, carros, aviões, iates, todo um esplendoroso sucesso graças ao seu talento imenso como regente, mas que não teria alcançado a glória sem a personalidade carismática, tão ‘magnificente’ mercê da imagem. Na verdade, podemos admirar suas interpretações sonoras por muitas razões que não encontrariam espaço nessa mensagem; mas sem a sua imagem, teríamos dúvidas se suas interpretações seriam aceitas como superiores às de seus colegas contemporâneos, que possuíam igualmente ‘provas acústicas’ irrefutáveis de seus talentos”. Lembraria que Mario Vargas Llosa, em “La Civilización del espectáculo”, já observaria que, na atualidade mediática, a não promoção individual de reais talentos leva ao desconhecimento público e ao fatal olvido.

Prossegue Servenière: “Na realidade, sua análise refere-se à essência da música, à verdade verdadeira da arte. Concordo sem nenhuma dificuldade. Não obstante, está em jogo a cruel necessidade da teatralização revisitada pela internet e a comunicação visual para a transmissão da mensagem da música clássica nos nossos dias, que condiciona sua sobrevida. Você tem 100.000 razões ao ficar maravilhado diante da tradição de Horowitz (1903-1989) e de Arrau (1903-1991) – o testemunho de Arrau é magnífico e autenticamente puro. Conheço muitas de suas interpretações. Acredito que a tradição se estabelece a partir dessas interpretações, a fim de ser transmitida no futuro como pérolas de referências e padrão que varrerão todas as execuções ‘acessórias’ e mal digeridas. Admiro o seu saber imenso que, à la manière dos seguranças do templo, digo, no aspecto positivo, deve manter a excelência do conhecimento acumulada através de séculos.

Admiro também a capacidade de transmissão de Lang Lang, pois é ele da geração dos 30 anos, pessoas focadas na internet e nos costumes mais recentes da comunicação eletrônica instantânea desde os tempos da mamadeira. Trata-se de ‘nova tradição’ que, revoluciona a nossa: a sua, que é defensor da agógica de Horowitz, a minha, que me entendo como mediador entre as duas gerações, tendo absorvido uma e outra, o que me faz ‘sentar em duas cadeiras’, numa alusão jocosa.  Parece-me desconfortável, aliás, estar entre gerações tão distintas em suas preocupações. Mas todas a gerações assim procederam e fizeram a intermediação entre o antigo e o moderno.

Nada está perdido! Temos de acreditar na capacidade dos jovens em compreender a mensagem dos séculos transmitida pelos antigos. Trata-se de confiança no futuro. Acredito que estarão à altura dos desafios que virão. Certamente com a ajuda de métodos modernos da divulgação do conhecimento, entendendo-se, contudo, que haja uma perda residual nesse transmitir. Nada a fazer! Observe todavia a magia da Wikipedia! Poderíamos supor em 1970 uma tal profusão informativa, mesmo que a sua utilização atual seja caótica, como na verdade acontece com todas mídias revolucionárias!

Posso afirmar que você é o sábio sentado no fundo do templo e que conhece as imensas colunas do saber que faltam a tantos incultos e fundamentalistas! Você observa jovens eleitos talentosos e inteligentes, avançarem com a arrogância da juventude… Você mostra-lhes os caminhos necessários como as sendas da escalada em direção ao cume que eles deverão percorrer para chegar à  sabedoria que apenas o acúmulo dos anos possibilita, à cumeeira da arte… e da vida, por extensão. Os dois movimentos da vida não são incompatíveis e todos nós passamos, você, eu e outrem, de maneiras diferentes, por essa arrogância de supremacia própria da juventude – ‘se a juventude soubesse, se a velhice pudesse’ – que nos fez cometer tantos ‘pecados da juventude’, frutos da somatória de nosso entusiasmo e nosso formidável apetite de vida.

Estando no meio das faixas etárias sua e de Lang Lang, entusiasmo-me tanto pelo seu saber, como tesouro adquirido ao longo das décadas de muito estudo, como pela juventude conquistadora e inteligente de Lang Lang, assim como admiro Usain Bolt de joelhos em seu posto de arranque, mas também os heróis do Olimpo com o olhar perpetrado pelas lendas transmitidas através dos séculos. É tão difícil analisar em tempo real a época que estamos a viver! Obrigado à história” (tradução – J.E.M.).

No próximo blog publicarei a continuação da mensagem de François Servenière. O gesto na interpretação estará em causa, assim como a tradição. Sugerirei ao leitor links que podem servir de comparação. Comentarei o comprometimento do intérprete com o ato musical em sua essência essencial, mas também o gestual voltado à transmissão da mensagem musical na modernidade como expressão “necessária” frente às câmaras, ao marketing, ao público. Tendências distintas.

In this post I transcribe e-mail messages exchanged between the French composer François Servenière and myself, addressing pianists choreographing their playing and the differences between old-school performers and contemporary ones, who belong to the internet era and know the value of drama, instant effect and excess to win public acclaim.