O Bom Debate

Uma pedra atirada na água jamais erra o centro do alvo.
Sylvain Tesson
(Aphorismes sous la Lune…)

De meu dileto amigo e frequentador dos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, recebi aos 18 de Janeiro último link concernente à abertura da Filarmônica de Paris. O acontecimento comoveu a cidade e dois pianistas, entre os mais mediáticos do planeta, Hélène Grimaud e Lang Lang, apresentaram-se, respectivamente, sob a direção de Paavo Järvi, em dois dos concertos para piano e orquestra mais festejados do repertório pianístico: em sol de Maurice Ravel e em si bemol menor de Tchaikowsky. Servenière, ao me enviar o link, fez comentários, a louvar intensamente o evento, a expressiva apresentação dos dois intérpretes, mormente a do artista chinês Lang Lang, assim como a recepção pública calorosa.

Pela primeira vez neste espaço insiro e-mails que trocamos semanalmente, François Servenière e eu. Nossa correspondência iniciada em 2008 acentuou-se nestes últimos três anos e já deve beirar as 1.500 páginas. O posicionamento do excelente músico a respeito do concerto levou-me a responder-lhe, após ouvir via internet a apresentação integral. Realmente, um concerto memorável. Estilos diferentes frente à interpretação, confrontos entre a tradição e a modernidade. Escrevi-lhe:

“Ouvi o célebre Concerto de Tchaikowsky. Assim como a amigo, que conhece tão bem a partitura par coeur, trabalhei muito essa obra com Jean Doyen e Marie Thérèze Fourneau em Paris, a visar ao Concurso Tchaikovsky em Moscou (1962). Gosto imenso dessa composição. Lang Lang é um pianista de grande virtuosidade e incríveis malabarismos no teclado. Sua interpretação é envolvente. Contudo, duas atitudes de Lang Lang me incomodam, uma musical e outra gestual, esta última talvez devido à minha faixa etária e minha formação construída na tradição. Meu posicionamento é absolutamente pessoal.

A execução desse magnífico concerto de Tchaikovsky foi estabelecida desde o século XIX a partir de rigorosa tradição, que não impede nulamente a liberdade e a criatividade do intérprete. O que me incomoda na interpretação de Lang Lang é a ‘invenção’ de acentuações não nomeadas pelo autor, assim como a agógica onde a arbitrariedade, em não raras oportunidades, fica evidente. Essas atitudes se dão também em obras de outros autores por ele executadas. Inúmeras vezes, na magnífica performance do pianista, friso, performance, Lang Lang se desvia desses fundamentos tão profundos concernentes ao que o compositor realmente deixou grafado na partitura. O grande mestre e pianista francês Jacques Février escreveu que há mil e uma maneiras de se tocar Debussy e que uma apenas é equivocada, a de trair seu estilo. Mesmo considerando a performance de Lang Lang sob o aspecto pianístico, reitero, esse desvio de pilares da escritura de uma obra me incomoda. Continuo a preferir algumas interpretações desse concerto mais voltadas à grande tradição, mas entendo lindamente o seu entusiasmo verdadeiro e sincero pela performance de Lang Lang. Sob aspecto outro, Claudio Arrau confessava a Joseph Horowitz que, a partir de uma certa idade (cerca dos 50 anos), teve série crise. Era necessário decidir: agradar ao público ou transmitir a mensagem musical. Decidiu pela economia dos gestos, reduzindo sensivelmente o exagero. A gestualidade de Lang Lang empolga o grande público, graças também à enorme virtuosidade e a uma musicalidade estereotipada. Contudo, se nos ativermos unicamente ao som, há lacunas quanto ao rigor de que nos lembra Février. Será que no gesto exagerado encontraríamos o essencial da música? A teatralidade não atingiria o cerne da mensagem musical, “alterando-a”? Pianistas do passado e tantos do presente transmitiram e transmitem música sob o mais absoluto controle físico e espiritual. Hoje, hélas, alguns intérpretes utilizam-se do gesto destinado às câmaras – cada vez mais presentes – ou ao público delirante”.

François Servenière me respondeu enviando longa mensagem. Sua posição reflete a mais absoluta atualidade. Os meios eletrônicos voltados à imagem, a proliferação de vídeos que registram os pormenores antes desprezados, a concorrência, o público, que foi pouco a pouco se habituando com o espetáculo mais interativo, impulsionam a participação mais “arrojada” de certos intérpretes, que sabem estar sendo focalizados in totum. Voltarei a esse quesito no próximo blog.

Segue a mensagem do músico completo, François Servenière:
“Sem dúvida estou entusiasmado pela virtuosidade teatral transmitida pelas câmaras. Não há qualquer dúvida a esse respeito, tenho de ser honesto comigo mesmo. Como espectador, fiquei impactado pela imagem e pelo som. Acredito que o caminho futuro para a transmissão da mensagem renovada – ‘despoeirada’, dirão alguns! – da música clássica deve passar pelos gênios modernos da interpretação como Lang Lang (1982- ), que sabem se utilizar das mídias modernas, comparativamente aos mais antigos, que ficavam fieis à tradição do gesto puro. Essa interpretação  causaria enfado talvez – mercê das novas técnicas de mediação universal – aos espectadores do século XXI, habituados à instantaneidade trepidante da web. Herbert von Karajan (1908-1989) compreendeu o novo paradigma. Tinha um estúdio privado e uma equipe audiovisual que o seguia sempre. Seu sucesso incrível dependia unicamente dessa capacidade de se adaptar ao seu tempo, sempre na frente quanto ao universo musical como sobre as técnicas audiovisuais, carros, aviões, iates, todo um esplendoroso sucesso graças ao seu talento imenso como regente, mas que não teria alcançado a glória sem a personalidade carismática, tão ‘magnificente’ mercê da imagem. Na verdade, podemos admirar suas interpretações sonoras por muitas razões que não encontrariam espaço nessa mensagem; mas sem a sua imagem, teríamos dúvidas se suas interpretações seriam aceitas como superiores às de seus colegas contemporâneos, que possuíam igualmente ‘provas acústicas’ irrefutáveis de seus talentos”. Lembraria que Mario Vargas Llosa, em “La Civilización del espectáculo”, já observaria que, na atualidade mediática, a não promoção individual de reais talentos leva ao desconhecimento público e ao fatal olvido.

Prossegue Servenière: “Na realidade, sua análise refere-se à essência da música, à verdade verdadeira da arte. Concordo sem nenhuma dificuldade. Não obstante, está em jogo a cruel necessidade da teatralização revisitada pela internet e a comunicação visual para a transmissão da mensagem da música clássica nos nossos dias, que condiciona sua sobrevida. Você tem 100.000 razões ao ficar maravilhado diante da tradição de Horowitz (1903-1989) e de Arrau (1903-1991) – o testemunho de Arrau é magnífico e autenticamente puro. Conheço muitas de suas interpretações. Acredito que a tradição se estabelece a partir dessas interpretações, a fim de ser transmitida no futuro como pérolas de referências e padrão que varrerão todas as execuções ‘acessórias’ e mal digeridas. Admiro o seu saber imenso que, à la manière dos seguranças do templo, digo, no aspecto positivo, deve manter a excelência do conhecimento acumulada através de séculos.

Admiro também a capacidade de transmissão de Lang Lang, pois é ele da geração dos 30 anos, pessoas focadas na internet e nos costumes mais recentes da comunicação eletrônica instantânea desde os tempos da mamadeira. Trata-se de ‘nova tradição’ que, revoluciona a nossa: a sua, que é defensor da agógica de Horowitz, a minha, que me entendo como mediador entre as duas gerações, tendo absorvido uma e outra, o que me faz ‘sentar em duas cadeiras’, numa alusão jocosa.  Parece-me desconfortável, aliás, estar entre gerações tão distintas em suas preocupações. Mas todas a gerações assim procederam e fizeram a intermediação entre o antigo e o moderno.

Nada está perdido! Temos de acreditar na capacidade dos jovens em compreender a mensagem dos séculos transmitida pelos antigos. Trata-se de confiança no futuro. Acredito que estarão à altura dos desafios que virão. Certamente com a ajuda de métodos modernos da divulgação do conhecimento, entendendo-se, contudo, que haja uma perda residual nesse transmitir. Nada a fazer! Observe todavia a magia da Wikipedia! Poderíamos supor em 1970 uma tal profusão informativa, mesmo que a sua utilização atual seja caótica, como na verdade acontece com todas mídias revolucionárias!

Posso afirmar que você é o sábio sentado no fundo do templo e que conhece as imensas colunas do saber que faltam a tantos incultos e fundamentalistas! Você observa jovens eleitos talentosos e inteligentes, avançarem com a arrogância da juventude… Você mostra-lhes os caminhos necessários como as sendas da escalada em direção ao cume que eles deverão percorrer para chegar à  sabedoria que apenas o acúmulo dos anos possibilita, à cumeeira da arte… e da vida, por extensão. Os dois movimentos da vida não são incompatíveis e todos nós passamos, você, eu e outrem, de maneiras diferentes, por essa arrogância de supremacia própria da juventude – ‘se a juventude soubesse, se a velhice pudesse’ – que nos fez cometer tantos ‘pecados da juventude’, frutos da somatória de nosso entusiasmo e nosso formidável apetite de vida.

Estando no meio das faixas etárias sua e de Lang Lang, entusiasmo-me tanto pelo seu saber, como tesouro adquirido ao longo das décadas de muito estudo, como pela juventude conquistadora e inteligente de Lang Lang, assim como admiro Usain Bolt de joelhos em seu posto de arranque, mas também os heróis do Olimpo com o olhar perpetrado pelas lendas transmitidas através dos séculos. É tão difícil analisar em tempo real a época que estamos a viver! Obrigado à história” (tradução – J.E.M.).

No próximo blog publicarei a continuação da mensagem de François Servenière. O gesto na interpretação estará em causa, assim como a tradição. Sugerirei ao leitor links que podem servir de comparação. Comentarei o comprometimento do intérprete com o ato musical em sua essência essencial, mas também o gestual voltado à transmissão da mensagem musical na modernidade como expressão “necessária” frente às câmaras, ao marketing, ao público. Tendências distintas.

In this post I transcribe e-mail messages exchanged between the French composer François Servenière and myself, addressing pianists choreographing their playing and the differences between old-school performers and contemporary ones, who belong to the internet era and know the value of drama, instant effect and excess to win public acclaim.