As Várias Manifestações Gestuais

A obra de arte não deveria ser pretexto
para o intérprete expor seus próprios estados de alma.
Tão pouco a exibição de si mesmo, ou seja, a auto-exibição.
É dever sagrado do intérprete comunicar
de maneira intacta o pensamento do compositor,
pois ele não é que intérprete, apenas.
Claudio Arrau

Dividi em duas partes o blog sobre o gesto. Este segundo post coloca-se em dois momentos: apresentar a continuação das considerações de François Servenière sobre o gesto, mormente na modernidade e, depois, tecer reflexões pessoais sobre gestualidade, concentração, mídia, tradição e modernidade, já externadas homeopaticamente em tantos posts anteriores.

Ao regressar ao pianista Lang Lang, nascido na China em 1982, Servenière comenta: “Vejo em sua maneira de interpretar algo muito original, fundamental para a maestria do futuro, mas iconoclasta para a geração mais purista, nascida sob os fundamentos batismais da rádio, onde apenas a audição era importante. Consideravam que a transmissão áudio iria travestir e trair a tradição dos intérpretes mediúnicos, podendo ‘matar’ os poucos intérpretes ungidos num panteão ainda em vida. Eram eles os únicos que poderiam se opor a esse fervilhar multifacetado que surgiu com as novas gerações de pianistas, produzidos em massa pelos conservatórios mundiais. Essa assertiva pode ser constatada através de caminhos percorridos por essa legião de intérpretes.

Por que fiquei emocionado com a interpretação de Lang Lang do famoso concerto de Tchaikovsky? Ele teria compreendido que a música de tradição, habitualmente denominada clássica ou erudita, muitas vezes com desprezo, necessitará de nova metodologia para poder concorrer com as insípidas presenças na web, que deploramos amargamente, você e eu. Lamentamos a capacidade perdida da música erudita de poder seduzir o espectador frente ao desarranjo infinito que nos é proporcionado por esses espetáculos de vídeos YouTube sem pé nem cabeça, pela apologia insana à pornografia, sem contar sexo, assassinatos e a decadência  mais estereotipada, salvo em Roma antes da queda. Até mensagens bárbaras de fundamentalistas são apresentadas! Lang Lang compreendeu que, para concorrer com a web atual, em batalha aparentemente perdida para o besteirol, seria necessário mostrar movimento, vivacidade, teatralidade, mise-en-scène e qualidade vivificada e renascida, pois a imagem alimenta-se ‘bestamente’ de movimentos e vida. Ação de muitas câmaras e gestos, montagens sofisticadas, pois, mesmo que o purismo o contradiga, evidentemente o progresso passa por uma análise de fundo e de forma! Orquestras e metteurs en scène compreenderam essa tendência. Talvez estejamos nessa fase necessária – mas não o suficiente – da transição, onde intérpretes aprendem uma nova linguagem, justamente essa da cena frente à câmara quando, pouco a pouco e por vezes tateando, compreendem a necessidade atual, vital e irreversível, dessas técnicas inovadoras. Acredito, em contrapartida, que haverá uma volta à verdade da linguagem essencial entendida por você.

Na realidade, a gestualidade de Lang Lang não é tão diferente daquela de músicos clássicos de todas as gerações, que adentravam o palco diferenciando-se da concorrência mostrando personalidades expansivas, diferentes daquilo visto até então. Estive presente em numerosas premières de jovens. A teatralidade mais ou menos excessiva, a depender da personalidade, perturbava-me, como o perturba.Compreendi com o tempo que se tratava de natural inclinação ao inusitado nesse vislumbrar da carreira. Como você demonstra com eloquência, o intérprete regressa naturalmente à tradição mais comedida e sábia de sua arte quando sua personalidade acaba sendo aceita e adubada pelo público. Stravinsky foi radical ao compor ‘A Sagração da Primavera’ e resultou, o mesmo fazendo Pierre Boulez, ainda mais radicalmente! Conheci os primórdios da carreira do pianista François-René Duchâble. Era eu ainda um menino. Extrovertido e expansivo no palco àquela época, Duchâble era de estatura pequena. Quando assisti a um seu concerto – ele deveria ter 50 anos – presenciei o sábio sobre a montanha, já sem a necessidade de fazer acrobacias e gestualidade excessiva para deslumbrar multidões. Duchâble encarnou dois personagens, o gênio precoce e o sábio. A primeira atitude, para se fazer conhecido, a segunda, para transmitir. Toda essa metamorfose em apenas uma personalidade desejosa de imortalizar a verdade da música em lances largos, elegância, profundidade. A verdade estaria nessa transformação. Penso que Lang Lang tem suficiente talento e inteligência para traçar o mesmo caminho percorrido pelos grandes mestres. Os excelsos compositores também não trilharam sendas que se metamorfosearam?  Aí estão Debussy, Mozart, Ravel, Stravinsky, Beethoven, mestres absolutos, para mais não dizer” (tradução: J.E.M.).

A tradição obedece à constância, dela é integrante. Porém, fluxos motivados pela passagem do tempo, não a tornam imutável. Impossível seria tratando-se de interpretação. A tradição pressupõe pequenas flexibilizações. Se assim não fosse, estaria embutida, aprisionada. Contudo, a espinha dorsal – mercê da partitura, das fontes, do debruçamento de estudiosos e da oralidade – é salvaguarda para que a continuidade tradicional permaneça. Se a modernidade e a tecnologia sempre in progress avançam para cenário cada vez mais exposto, intérpretes adeptos da tradição no suceder de gerações não têm essa preocupação com o efeito gestual e a transmissão da mensagem musical. Antolha-se-me que o gesto expõe o carimbo rigorosamente individual quando dos excessos nos tempos atuais. Insubstituível, personalíssimo, o gesto mediático exacerbado não encontra imitadores. Ele é efêmero, pois estiola-se com o “criador”. Tem, sim, descobridores de outras “técnicas” de expressão corporal. Seria do mais extremo mau gosto uma réplica de Lang Lang em suas transformações corpóreo-faciais, como beiraria o grotesco a adoção postural excêntrica de Glenn Gould frente ao piano. Os gestuais do virtuosístico e estereotipado Lang Lang e os praticados por Glenn  Gould, artista de raríssima inteligência, não têm e não tiveram, respectivamente, seguidores, mas servem e serviram para autopromoção. Impossível a indiferença ao vermos essas duas personalidades em ação. Não obstante, é fácil entender que há fundamental diferença entre os dois, pois no pianista canadense, apesar das excentricidades, a presença da plena convicção quanto à interpretação meticulosamente planejada torna-se transparente.

Esse debate me fez percorrer vídeos de alguns pianistas, do passado ao presente. Apresento alguns links que poderão ser acessados pelo leitor. Acredito que a economia dos gestos, quase que sine qua non no passado, ajudava a transmissão da mensagem musical nesse respeito absoluto à tradição. Se houve exceções bem anteriores, inclusive a de Franz Liszt (1811-1886), frise-se que o extraordinário pianista e compositor húngaro teria sido o primeiro a apresentar recital sem partitura e parte essencial de suas récitas era constituída de obras de sua lavra. Seu gestual era único, segundo relatos. No meu entender, ratifico, torna-se improvável o não contágio do gesto sobre a transmissão. Interfere na frase musical, nas acentuações, sensivelmente na agógica e no estilo. Certamente o intérprete de gestual exacerbado, que está a “transmitir-se”, preferencialmente à mensagem musical, não deverá ser aquele que carrega a chama olímpica da tradição. Daí minhas observações no e-mail a Servenière, postado no blog anterior. Porém, ele tem razão em suas considerações. Tempos modernos clamam pelo gestual. E não apenas isso. Empresários, que visam obviamente ao lucro, plateias que se empolgam com o virtuose “fenômeno”, que entendem a gestualística como meio fundamental, sociedades de concerto que aceitam ser aquele o “cara” a ser cultuado, pois adorado pelo público que acorrerá numeroso ao evento, mídia “comprometida”. Todo um esquema estaria montado e tende à aceleração. Essa tendência hodierna, regada fartamente pelas câmaras onipresentes, favorece o gesto. Intérpretes se submetem. É a lei do mercado. Todavia, tantos da média e nova geração não são atraídos pelo canto das sereias. A meu ver, felizmente. Questão de estilo.

Os links levam aos vídeos. Intercalo atitudes frente à transmissão da mensagem musical.

Vladimir Horowitz (1903-1989)
Schubert-Liszt / Soirée de Vienne – Valse Caprice nº 6

 

Lang Lang (1982- )
Scriabine / Étude op. 8 nº 12 – Patético

A não compreensão do mood do  Estudo – a sinfonia nº 6 de Tchaikovsky também leva o nome de Patética – é clara. O termo patético, ligado aos afetos, estaria mais próximo do drama ou mesmo da tragédia. O gestual totalmente voltado às câmaras contradiz intenções contidas na palavra.

Arturo Benedetto Michelangeli (1920-1995)
Domenico Scarlatti / Sonata in B minor

 

Mitsuko Uchida (1948- )
Mozart / Concerto in D minor / K466

A interpretação, nitidamente voltada às câmaras traduz, inclusive, paradoxos. A pianista está a reger e sendo amplamente filmada. O gestual exagerado não combina com a atitude dos ótimos músicos, inteiramente voltados à partitura. Praticamente não olham para os gestos de Uchida quando a reger! A regência mostra-se, pois, “virtual” a enfatizar a regente-pianista.

Glenn Gould (1932-1982)
J.S.Bach / Partita nº 4 / Sarabanda

 

Jean  Doyen (1907-1982)
Chopin / Fantaisie-impromptu Op.66

 

In today’s post I resume François Servenière’s views on pianists that act dramatically to dazzle audiences, followed by my own comments on the subject. As illustration, a series of links with videos of pianists of different personalities and styles, so that readers can compare them and draw their own conclusions.