Projeto de Trinta Anos que Chega a Termo (1985-2015)

Há o real e há o irreal.
Além do real e além do irreal há o profundo.
Henry de Montherlant

O grão de areia não impede o fluxo das ondas.
Sylvain Tesson

Na transição das décadas de 1960-1970, após três anos voluntários longe do piano, retomei os estudos. Esse tempo foi determinante. Trabalhara anteriormente parte expressiva do repertório tradicional, mas a perspectiva das décadas futuras, a ter de repetir infinitamente as mesmas obras, causava-me até mal estar. Foi essa a causa essencial de minha interrupção. Ao retornar ao piano após o período “sabático”, que me levou à reflexão sobre o prosseguir, amadurecia a ideia de não apenas tocar aquilo de que gostava, mas preferencialmente também penetrar no repertório altamente meritório e pouco explorado. Estendia-se essa reflexão à criação competente da atualidade. Esse posicionamento não excluiu o repertório tradicional. Fez-me apenas um visitante homeopático. Paralelamente, interessaram-me as integrais, e compositores como Jean-Philippe Rameau, Claude Debussy e Moussorgsky povoaram meus almejos a visar à apresentação da opera omnia para piano. Todavia, o trabalho “arqueológico” chamou-me e, em 1978, iniciava a pesquisa moderna em torno do nosso compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), que me daria dois gostos imensos: o redescobrir e verificar que, a partir dessa caminhada, quantidade expressiva de estudiosos surgiu. Abria-se, concomitantemente ao debruçamento perene sobre a criação oswaldiana,  um leque que me levaria à apresentação de inúmeras obras extraordinárias do passado europeu relegadas ao ocultamento. Neste espaço sempre insisti em pontos que entendo precisos: o público tem necessidade da comparação, sentindo-se inseguro frente ao desconhecido; empresários e sociedades de concerto apostam basicamente no repertório super ventilado, que traz audiência e, consequentemente, lucro; a crítica, sem formação específica, louva os que se rotularam perpetuadores do repertório consagrado e o intérprete, que preferencialmente se dedica ao repetitivo, tem lá suas razões para que o extraordinário acervo repertorial – jamais o desmereceria – siga seu curso.

Em 1985, quando de um caderno com oito composições em Homenagem a Henrique Oswald publicado pela USP, conversei com um dos compositores, o americano Stephen Hartke  (1952- ), que no futuro desenvolveria brilhante carreira nos Estados Unidos. Nascia “Template”, estruturado a partir do “Sherzo-Étude” (1902) de Oswald, a primeira obra de um projeto. Ricardo Tacuchian (1939- ), com o “Il Fait de Soleil”, seria o segundo a compor Estudo para uma sequência a abranger três décadas. Frise-se que esta obra de 1981 receberia o título de Estudo tardiamente.

Ao descrever o esboço do projeto ao compositor Gilberto Mendes, o respeitado músico incentivou-me, citando seu outro amigo, o pianista e compositor norte-americano Ivar Mikhashoff (1941-1993), que encomendou, entre 1983 e 1991, 127 Tangos para 127 compositores. Considerei em nossa conversa que o Estudo por possibilitar o multidirecionamento, pois um gênero abstrato, poderia motivar uma liberdade não encontrável no Tango, devida à tipificação deste. E haveria sempre a possibilidade da virtuosidade que caracteriza incontáveis Estudos através da História.

Sob outra égide, intrigava-me a técnica pianística do Estudo. Sendo ele, em princípio, o depositário de processos específicos que cada compositor imagina para o modelo, nada mais significativo do que apreender num espaço de trinta anos, fronteira do milênio, a panorâmica do Estudo. Aonde teriam chegado as formulações? Tradição e inovação poderiam caminhar juntas? Pouco a pouco, de 1985 a 2015, recebi Estudos das mais diversas procedências. Alguns compositores foram convidados, outros escreveram espontaneamente. Um aspecto é fulcral nesse universo acadêmico em que a imensa maioria dos projetos têm mais de uma assinatura e são financiados pelo Estado, por Fundações ou pela Universidade. Jamais solicitei apoio e jamais os compositores que abraçaram a causa falaram-me em remuneração. Sob outra égide, o imediatismo torna irreal um projeto tão longo. O carvalho só é exemplo mercê do tempo de crescer, o vinho, da paciente maturação.

Um outro aspecto essencial. Como estava a pensar na técnica pianística tradicional e renovada por tantos compositores de mérito, só não quis, voluntariamente, receber contribuições com o auxílio da eletrônica ou, então, destinadas ao piano preparado. A visão in loco de um piano no Reino Unido, basicamente destruído na noite anterior ao meu recital por um intérprete que “preparou” o instrumento de tal maneira que afetou cordas, martelos e até a tábua harmônica, deixou-me chocado. Felizmente, a sala de concertos tinha três pianos à disposição. Estaríamos, nestes casos, em outro compartimento, que não atenderia a desideratos precisos. Conheço inúmeras criações que recebem a colaboração da eletroacústica. Sem entrar no mérito, o piano acústico é suficientemente rico para abrigar, ainda, incontáveis contribuições, independentemente das tendências técnico-composicionais de seus autores.

Dos mais de oitenta Estudos recebidos, provenientes de vários países – Bélgica, Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha, Bulgária, Japão – e inúmeros outros Estudos de nossos compositores, a maioria foi apresentada, mormente no Exterior. Considero que determinados Estudos da coletânea estarão futuramente no patamar mais elevado, junto daqueles considerados obras primas, pois não apenas apresentaram inovações técnico-pianísticas como articularam com maestria processos tradicionais acumulados desde o início do século XIX.

A edificação foi lenta, como também aquela voltada às gravações. Tendo perpassado, como a maioria dos pianistas, as excelsas coleções de Estudos de Chopin e Liszt, que têm quantidade enorme de gravações, muitas delas hors concours, importavam-me os Estudos compostos do final do século XIX às primeiras décadas do século XX. Como Alexandre Scriabine (1872-1915) e Claude Debussy (1962-1918) eram e são constantes temas de meus aprofundamentos, gravei na Bélgica a integral desses Estudos para o selo De Rode Pomp. Anos após, foram lançados no Brasil pelo selo Clássicos. Os derradeiros de Scriabine (Três Estudos op. 65) e os 12 de Debussy (1915) contêm ainda a mais precisa modernidade. Pierre Boulez, em entrevista ao jornal “Le Monde” (24/03/2000, p. 35), afirmaria que os Estudos de Debussy, juntamente com obras de Stravinsky (“Sagração da Primavera”), Schönberg (“Pierrot Lunaire”) e Bela Bartok (“Quarteto nº 4″), se fossem compostas hoje, seriam modernas, tão grande as inovações propostas. Em “Témoignages” nº 4 (Université Paris-Sorbonne, 2012), acrescentei “Vers la Flamme”, de Alexandre Scriabine.

Interessou-me gravar na Bélgica seleção dos Estudos que enriqueciam o projeto. Nascia o CD de Estudos Contemporâneos Belgas (selo De Rode Pomp), quando 10 compositores expressivos do país entenderam a dimensão do projeto. Fi-lo logo após em relação aos Estudos Brasileiros (selo da Academia Brasileira de Música), tendo como primeira obra do CD os magníficos “Estudos Transcendentais” (1931), de Francisco Mignone, que a meu ver são os pioneiros do gênero nesse aspecto da modernidade no Brasil. No final de Abril estarei a gravar na Bélgica CD com Estudos franceses, portugueses, da Bulgária e do Brasil. Teremos assim, nesses três CDs mencionados, uma panorâmica do gênero Estudo nessa transição tumultuada dos milênios. Digo panorâmica, pequena aliás, pois repertoriar o que foi criado nesse período pelo mundo seria impensável. Os cerca de oitenta Estudos atenderam a objetivos precisos e entendo que esses foram amplamente atingidos, graças à colaboração dos compositores que acreditaram no projeto.

À guisa de exemplificação, mencionaria compositores que, ao longo desses trinta anos, privilegiaram o projeto mais de uma vez. Da Bélgica, Raoul De Smet (1936-  ) entendeu que a proposta não se extinguiria com apenas um Estudo. Conversamos a cada ida minha ao país e dos seus polidirecionados 15 Estudos transcendentais, apresentei os seis primeiros em Gent e na Antuérpia. Boudewijn Buckinx (1945- ), numa visão totalmente oposta, criou sete instigantes e curtos Estudos pós-modernos, que fazem parte do CD já mencionado. Gilberto Mendes (1922- ), nosso compositor referencial, elaborou sete Estudos ao correr dos anos. Foram surgindo após entendimentos e, desses, dois são versões para piano solo de obras camerísticas.  O saudoso Almeida Prado (1943-2011) compôs os já célebres “Três Profecias em Forma de Estudo” (1988) e o Estudo in memoriam Alexandre Scriabine. As profecias tiveram gravação na Bélgica para o CD de Estudos brasileiros. Podem ser acessados através do YouTube. Paulo Costa Lima (1954- ), da Bahia, enriqueceu a coletânea com quatro Estudos significativos, sendo que três foram gravados em Sofia, na Bulgária, para CD lançado na Bahia. H.J. Koellreutter (1915-2005), Willy Corrêa de Oliveira (1938- ) e Celso Mojola (1960- ) comporiam três Estudos; Mário Ficarelli (1935-2014) e Ricardo Tacuchian (1939- ) criaram dois cada e as obras também integram o CD de Estudos brasileiros. De Tacuchian, a “Avenida Paulista” está no YouTube. Salientaria que Estudos de Gilberto Mendes (“Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos Mares do Sul”), Almeida Prado (“Três Profecias em forma de Estudo”), Willy Corrêa de Oliveira (“Etüde für klavier – Hanns Eiler in memoriam: für das Volk der DDR”), entre outros Estudos Contemporâneos, foram apresentados em recitais nas cidades de Potsdam e Berlin, cinco meses antes da queda do famigerado muro em 1989, pois criados para os eventos. Há uma curiosidade que transmito ao leitor. Quando recebi o programa do recital no Palácio Sanssouci, em Potsdam, indaguei ao Diretor do Hans-Otto-Theater da cidade o porquê de terem excluído “ao povo da DDR”, expresso por Corrêa de Oliveira. A resposta foi imediata e vinda de um cidadão que acumulava o exercício como deputado: “Há dois regimes diferentes, o deles e o nosso (referindo-se à Alemanha dividida). Contudo, só há um povo alemão, pois não existe um povo da República Democrática da Alemanha. Daí termos retirado a menção”.

Os Sete “Études Cosmiques + Automne Cosmique”, do françês François Servenière (1961- ), a “Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos)”, do compositor português Eurico Carrapatoso (1962- ), o Estudo “Et Iterum Venturus”, do búlgaro Gheorghy Arnaoudov (1957- ), o consagrado “Étude V – Die Reihe Courante”, do também português Jorge Peixinho (1940-1995) e “Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos Mares do Sul” de Gilberto Mendes serão objeto de comentários no próximo blog, que abordará o recital na mesma Sociedade Brasileira de Eubiose, marcado para o dia 11 de Abril.

O projeto chega a termo com a gravação do CD mencionado acima, em fins de Abril, na Bélgica. Sinto-me feliz ao verificar que mais de 20 Estudos, dos mais de 80 recebidos, foram editados no Exterior. Creio que o tempo fará compreender que permanecerão.

Nestes oito anos de blogs ininterruptos tenho salientado de maneira repetitiva, mas a atender  convicções essencialmente pessoais, que a grande dádiva de minha trajetória musical foi ter encontrado sendas diferenciadas, não me esquecendo dos percursos. Estes sedimentaram projetos nunca abandonados e propiciaram-me algo inefável, estar sempre a redescobrir a joia rara repertorial ou a apresentar hic et nunc o que está a brotar dos cérebros de compositores bafejados pelas musas.

This post addresses my Etude project, a three decade-long work that began in 1985 with the North-American composer Stephen Hartken’s “Template” and ends in 2015. With more than 80 etudes received for the project, it gives a panoramic view of this musical genre at the turn of the 20th to 21st century. In a recital to be held on 11 April next in São Paulo, I will present etudes written by composers François Servenière, Eurico Carrapatoso, Gheorghy Arnaoudov, Jorge Peixinho and Gilberto Mendes.