Navegando Posts publicados em maio, 2015

A Poesia de Fernando Rosinha

Par les soirs bleus d’été, j’irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue :
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.

Je ne parlerai pas, je ne penserais rien :
Mais l’amour infini me montera dans l’âme,
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, – heureux comme avec une femme.

Arthur Rimbaud  (20 avril 1870)

Conheci Fernando Rosinha através de amigo comum, o ilustre musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso. A empatia foi imediata. Rosinha, nascido em 1938 em Avidagos, aldeia transmontana, mora em Paris há décadas. Casou-se com Marina (nascida Denis), intelectual francesa que foi jornalista do L’Express, tem filhos e netos. Nosso convívio se acentua quando vou a Paris para atividade musical e em casa dos Pedrosa Cardoso, em Oeiras, encontramo-nos semanas atrás em jantar de congraçamento. O casal esteve em Lisboa para o lançamento de seu último livro de poemas, um dia antes de nossa chegada, e regressaria a Paris dois dias após.

Para o leitor diria que conhecer parcela pequena do perfil de Fernando Rosinha torna-se imperativo, pois se entende sua poesia a partir de uma trajetória singular da qual o autor não hesita em nos fazer cúmplices já na apresentação, “Fernando Rosinha (na primeira pessoa)”. Mencionar alguns trechos desse desvelamento tem, pois, caráter indicativo, a evidenciar que todo um percurso incomum, que levou Rosinha às opções difíceis na vida, não retirou do poeta o sonho, a leveza, o ceticismo, a sedução, o amor e a fina observação.

Sua aldeia, “ignorada e pobre, sem luz nem água”, seus pais pobres quando o miúdo lá estava em seus 10 anos forjaram as opções, pois “passei a minha vida a saltar entre dois mundos. A fugir da insatisfação e a buscar a beleza”. Um perfil se delineia na mente de Fernando. Único, translúcido, objetivo: “Sempre admirei as mulheres e os burros da minha terra, que passavam com o peso, elas na cabeça e eles no lombo”. Seria no seminário, no Porto, que conheceria “um Deus exigente e misógino – descobri filosofia, teologia e poesia”. Prossegue nessa abertura: “Acreditando pertencer a uma raça de eleitos, em 1966 deixei-me embarcar, aos 25 anos, para Angola. Durante 4 anos ensinei nos liceus e fiz muitas perguntas. Mas obtive poucas respostas”. Renuncia em 1970, quando do retorno a Lisboa, “a esse mundo onde não me sentia ser eu”. Continua: “Desiludido e magoado, como o poeta francês Rimbaud, esqueci teologia e poesia”. Segue para Paris, onde se forma em Engenharia. Casa-se e constrói sua vida na capital francesa, onde exerce a difícil missão na Resolução de Conflitos, sem desprezar a função como formador na Universidade Lusófona do Porto.

Em “Com ar de primavera” (Lisboa, Esfera do Caos, Setembro de 2014), Fernando Rosinha mostra as faces do alento e de um discreto desencanto, do sensualismo que não resvala para o erotismo, do amor num sentido por vezes onírico, outras tantas, paradoxalmente pragmático. Sua poesia é direta, sem subterfúgios e vai de imediato aos nossos sentidos.

Dividido em três partes, “Com ar de primavera” tem, pois, “O vento e o infinito”, “As mãos e o caminho” e “A criação das rosas”. De cada secção selecionei um poema. Traduzem sentimentos até contrastantes, mas que são rigorosamente coerentes com seu pensamento em constante ebulição e acima mencionado: “E passei a minha vida a saltar entre dois mundos. A fugir da insatisfação e a buscar a beleza”.

A solidão (2012)

O instante é triste e magoado
como um grito de laranja na redonda madrugada
de calhandra estrangulada.

Na pauta imensa do espaço, paraíso inacabado,
ela é desejo a caminho
e a voz calada que acorda.

Ao vê-la um rio desborda
no prazer de ser mendigo.

Só quem se sente sozinho
abre as portas para o céu.

É no tudo dar aos outros com medo de não ser fruto
ou de vestir-me de luto
que o meu inferno sou eu.
E o vento diz-me nas veias que um rio tem de beber.

E sem resposta nem eco
em nosso corpo, agarrado a tudo haver,
corre alguém e anda o deserto
onde um vento frio e seco
caminha sempre a morrer.

Em “Meu país em agonia”, Rosinha apreende as consequências da crise que se abateu sobre o Ocidente em 2008 e que em Portugal foi sentida, mercê de problemas gerenciais dos governos anteriores e o que se seguiu.

Meu país em agonia (2014)

Mais um ano de agonia anda a monte no país.
Cobre-te o rosto a vergonha, abandonou-te a verdade.
As ruas caminham nuas. Da tua boca se evade
entre a dor e a mentira, um vento triste, infeliz.
Do alto caem palavras como pedras sobre os mortos.
Os que comandam empurram a miséria sobre os corpos
despidos e assassinados sobre a praia do Restelo.
O mar não tem caravelas. À beira do Tejo um velho
Olha o povo e amaldiçoa
que haja fome nas crianças e em prisão a liberdade.
Quem nos dará a terra dessa gaivota que voa
sobre os rumores dessa praia do Restelo?
No meu país morreram caminhos de eternidade.
Revoltado, entrou na morte, o que eu tinha de alma ao vê-lo.

Ao escrever “Gostar de tudo” o autor mostra-se o observador que, apesar de momentos de ceticismo existentes no livro de poemas, não deixa de captar os eflúvios do belo e de sentir a alegria da existência:

Gostar de tudo (2011)

Acredito
e juro
que Deus criou as rosas.
E até murmuro
e também grito
que os homens gostam de abusar das coisas.
Mas a única verdade
é quando eu olho à minha volta e sinto como um rito
de paixão que andam gestos de veludo
a viver esta alegria de gostar de tudo.

“Com ar de primavera”, lançado na sempre bela primavera em Portugal, tem as imagens da instigante capa e dos separadores realizadas por Dominique Mathieu-Poyeton.

This post is an appreciation of the book “Com Ar de Primavera”, by Fernando Rosinha. Born in Avidagos, Portugal, Rosinha lived in Angola before settling down in Paris, where he has been living since the seventies. His verses convey at the same time hope and disenchantment, sensuality without eroticism, chimeric and paradoxically pragmatic love. Without subterfuges, he expresses contrasting feelings that are perfectly consistent with his aim in life: escaping from dissatisfaction and the search for beauty.

 

 

 

Bélgica e Portugal em Pauta

Não sou um optimista.
O que sou é determinado naquilo em que me apetece ser determinado,
e continuo convicto até entender que a convicção estava errada e tenho de mudar.
Mas isso não tem acontecido muito.
Agostinho da Silva

O evento a comemorar os vinte anos da Associação Lopes-Graça na Câmara Municipal de Moita foi marcado por muita emoção. Houve jantar a preceder breves intervenções de cinco membros escolhidos pela Associação. Fui um deles e enfatizei o vergonhoso desconhecimento que se tem no Brasil de Fernando Lopes-Graça, a meu ver, ao lado de Villa-Lobos, um dos nomes maiores da composição luso-brasileira em toda sua história. Sem primazia alguma. Dois coros se apresentaram, o Alius Vetus e o da Academia de Amadores de Música caríssimo a Lopes-Graça, e dirigido amorosamente por José Robert.

Em termos brasileiros, nossos músicos não frequentam a obra de Lopes-Graça e nem sequer a música de concerto portuguesa, com raríssimas exceções. Mesmo a popular, o fado, fica restrito basicamente ao culto que lhe professam descendentes lusos. E de pensar que esforço considerável tem sido realizado quanto às edições e gravações de Lopes-Graça em Portugal, sem que se sensibilizem consciências musicais no Brasil. Recentemente foram editadas as “Músicas Festivas” para piano, coletânea com as 23 peças gravadas recentemente pelo notável pianista português António Rosado. A Associação Lopes-Graça presenteou os participantes da mesa que se pronunciaram antes do concerto coral, com duas gigantescas caixas contendo as 267 Canções Regionais Portuguesas (coro a capella) reunidas em 24 cadernos!!! (Fermata, Associação Lopes-Graça). O revisor da obra, José Luís Borges Coelho, músico competente em várias áreas, escreve texto a dar a ideia geral da planificação do conjunto magnífico das Canções e cita depoimento de Lopes-Graça a justificar a recolha dos cantos e suas adaptações esmeradas e fiéis ao impulso original da manifestação vocal popular.

Em resumo, a tournée pela Bélgica e por cidades portuguesas atingiu objetivos almejados. Os longos dias a gravar na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, sempre perdida na planura flamenga, o recital em Gent, assim como as masterclasses e recital em meu outro templo europeu, a Academia de Amadores de Música em Lisboa, a apresentação precedida de palestra na Canto Firme de Tomar ficaram registrados em minha memória.

Na tarde de 13 de Maio, o encontro com alunos e professores na AAM da capital portuguesa, a versar sobre a obra para piano de Henrique Oswald, quando falei e toquei inúmeras obras do mestre, ratificou em alunos e professores a ascendência francesa na escrita do autor de “Il Neige”.

Foram três semanas de intensa atividade musical na Bélgica e em Portugal. Após a sequência de eventos, os amigos diletos, musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e Manuela, e mais a gregorianista Idalete Giga, levaram-nos a passeios que sempre trazem captações que o olhar  não assimilou anteriormente. O Convento de Mafra; Sintra e seus palácios, moradias e o Castelo dos Mouros; Queluz e seu palácio, que nos faz pensar sempre, miniaturizado, no palácio de Versalhes, foram visitados e os diálogos que travamos com tão cultos amigos ainda nos levam a acreditar que a preservação do belo é o eixo de equilíbrio de que necessitamos frente ao mundo atual.

Regina e eu ainda assistimos à missa na Igreja de Santo Antônio em Lisboa, junto à Sé. O coro, dirigido por Idalete Giga, transporta o fiel, fá-lo estabelecer um elo com o Criador. A absoluta segurança e a leveza com que Idalete conduz os cantos gregorianos fazem-me lembrar de sua mestra, a grande gregorianista Júlia d’Almendra, figura ímpar na cultura portuguesa, que nos deixou em 1992. Idalete é sua herdeira legítima, insofismável, e tem com coragem e competência mantido a chama desses cantos que, desde a Idade Média, elevam o ser humano, cristão ou não.

Algumas imagens recapitulam a digressão intensamente musical. Não seguem uma ordem cronológica. Outra longa digressão já está sendo agendada. Novos projetos. Oxalá vinguem. Assim contamos.

Apesar da intensidade houve espaço para a prova de rua em Ninove, entre Gent e Bruxelas, já mencionada em um dos posts anteriores. Frio de 5°, vento cortante e chuva. Tineke, esposa do excepcional engenheiro de som, Johan Kennivé e eu participamos. Alegria contagiante. Nossos tempos registrados foram compatíveis.

This post is a summary of the musical and “sports” activities taking place during my recent trip to Belgium and Portugal.

 


Chegado a Lisboa, esperavam-me dois dias intensos de master classes. Ouvi alunos entusiasmados pela arte do piano. Como sempre faço nessas oportunidades, interessa-me explanar as causas de tal obra, o contexto histórico e a necessidade imperiosa de o aluno abrir a mente “além” do limite do teclado. A interpretação inteligente é fruto de denodo, disciplina, concentração, análise e muito estudo. O intérprete deve abrir os horizontes. É só querer. A intuição e o sensível, em reconhecimento por esse preparo soberano, chegam à mente levados pelas musas. Tocar significa o acúmulo de toda uma dedicação. Os alunos atentos, de diversas faixas etárias, entenderam as mensagens, que se prolongaram por dois dias, das 14h30min às 19h!!!

Confessei tantas vezes ao leitor que dois templos têm para mim a aura do sagrado. Mantê-la é saber que a música continua a pulsar em minhas veias. A Capela de Sint-Hilarius, em Müllem, e a Academia de Amadores de Música, em Lisboa. Nesse templo dei meu primeiro recital na Europa, a convite do imenso compositor Lopes-Graça (1906-1994). Dia 14 de julho de 1959!!! Como não me lembrar da data e dos aproximados 15 recitais apresentados ao longo dos anos… Se na minha juventude subia a correr os 49 degraus que levam ao segundo andar, onde está a sede da AAM, hoje, nos meus 76, subo-os tranquila e amorosamente.

O recital de sábado à noite em Lisboa teve numeroso público e, entre ilustres ouvintes, Mário Vieira de Carvalho, Eurico Carrapatoso, José Maria Pedrosa Cardoso, Idalete Giga, António Ferreirinho, Alexandre Branco Weffort. Como ocorreu em São Paulo, em Gent e agora em Lisboa, foi incrível a aceitação dos Estudos de Eurico Carrapatoso e de François Servenière. Tinha-se a impressão de que pertenciam ao repertório sacralizado, tão grande a acolhida.

Sigo para Tomar, cidade envolta em mistérios. Segredos muitos já foram revelados, mas há, em torno do extraordinário Convento de Cristo, histórias e lendas que dimensionam o imaginário. Sob a égide musical, a cidade viu nascer o extraordinário compositor, músico absoluto e pensador notável, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Apresentei-me pela primeira vez em Tomar em 1982 e  anos subsequentes. A partir de 2003 retorno prazerosamente à cidade e apresento-me no Canto Firme, dirigido pelo professor e dileto amigo António Souza. Já foram muitos os recitais e palestras. Nunca faltou a música portuguesa, mormente Lopes-Graça.

O recital em Tomar foi algo mágico para o velho intérprete. Saber que todo aquele repertório apresentado foi criado por compositores extraordinários a partir da acolhida que deram ao projeto de Estudos Contemporâneos, nascido em 1985 e que se encerra neste ano!!!! Todas as obras novas acolhidas com o maior entusiasmo!!! Sentir que não há por que não adentrar no universo desconhecido. Se a obra é de qualidade e a transmissão amorosa, como não aceitá-la? E duas obras rigorosamente herméticas, os Estudos de Gheorghi Arnaoudov e de Jorge Peixinho, tiveram a mesma acolhida de outras que vão direto aos sentimentos, ao coração, mais precisamente. Precedido de conferência horas antes, o público entendeu a extensão do projeto e compreendeu que o repertório sacralizado ─- importantíssimo, diga-se ─ não é o único.

Em Lisboa um dia após, na Academia de Amadores de Música, dei palestra-recital em torno da obra para piano de nosso grande compositor romântico Henrique Oswald. Provoquei alunos professores, que entenderam, nas obras para piano que apresentei ─- gravara-as dias antes na Bélgica ─, a filiação francesa dessas magníficas criações, algumas inéditas.

Na próxima semana escreverei sobre homenagem que será prestada a Fernando Lopes-Graça. Participarei com pronunciamento sobre o contributo extraordinário do grande mestre tomarense.