Perder-se a Identidade

O vício não é outra coisa que poder mal empregado.
Saint-Exupéry
(Citadelle – cap. XVI)

Recebi em uma mensagem foto instigante, mas recorrente. Exibia família reunida em torno de uma avó em momento de visita. Todos os personagens estavam consultando seus aparelhos que um dia foram apenas celulares ou telemóveis, hoje multi-nomeados, sempre com nomes mutantes, graças à tecnologia in progress e rapidamente assimilada pelos frequentadores dessas “engenhocas”. Apenas a avó, sentada e incrédula, aguardava certamente algum contacto com seus familiares. Se o número desses aparelhos, dos simples àqueles cada vez mais sofisticados, aumenta geometricamente e ultrapassa o número de habitantes do país, simplifica-se a comunicação, ora instantânea, e acentua-se um profundo fosso cultural que só tende a crescer. Mario Vargas Llosa, em “La Civilización del Espectáculo”, denuncia com ênfase essa realidade.

Verifica-se, sob outro contexto, a ansiedade das novas gerações relacionada ao acesso às novidades que pululam. Termos envolvendo meios eletrônicos de comunicação, como tablets e smartphones, e aplicativos como facebook, linkedin, whatsApp, twitter, instagram, Skype… fazem parte do linguajar dessa juventude que, com extrema habilidade, inteira-se de todos os avanços da área. Perco-me nesse processo, pois apenas sei e entendo a palavra celular nessa dualidade, fazer e receber ligações.

Recentemente o estudante Camilo, que mora na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, disse-me: “o celular é duas vezes jurássico, palavra e utilidade”. Fiquei a pensar e, na realidade, cada vez mais esse termo perde a eficácia, mantendo-se contudo quando nos pedem os números de telefone residencial e o de celular. Em nossa conversa, concordou com minhas observações quanto ao rápido e inexorável desmonte da língua portuguesa graças às abreviações sem nexo de textos e palavras. Há nítido empobrecimento do raciocínio de seus frequentadores, pois as mensagens codificadas, apenas para transmitir o que quer que seja, retira daquele que manuseia esses aparelhos qualquer possibilidade de conteúdo mais abrangente. Quem recebe a mensagem faz parte da engrenagem que só tende a crescer. Seja num ponto de ônibus, no aeroporto, em um consultório ou qualquer outro espaço, grande parte das pessoas está fixada em seus aparelhos. Contei-lhe que nesta semana fui fazer exames rotineiros. Os oito pacientes à espera de serem chamados estavam “plugados”. Realidade triste. Ao final, disse ao Camilo que, nessa atualidade virtual, o jurássico sou eu. Descontração.

Nos últimos dias assisti a um noticiário televisivo. Alunos de uma escola, entre 14 a 16 anos, eram entrevistados a respeito de “neologismos” fabricados nos corredores. Tinham a convicção de que as palavras que “criavam” – e delas se vangloriavam -, tinham de vigorar doravante, em detrimento dos termos reais existentes, que têm a acompanhá-los origem que remonta aos gregos e romanos. Consideravam-nas palavras “caretas”. Falavam com a mais absoluta naturalidade e os colegas aplaudiam. Uma leitura superficial na tela mostrou-me a maioria com seus objetos de comunicação instantânea. Realidade da desesperança.

O compositor e pensador francês François Servenière teceu comentários a respeito de foto anexada ao e-mail denominado “Visita a avó″. Como penetra fundo nesse caminho sem volta, transmito ao leitor suas observações:

“Tão significativamente realista a foto da avó e sua família! Quando vemos zumbis nos transportes públicos, perguntamos qual a razão para que o ser humano tenha necessidade de um cérebro entre duas orelhas… A tecnologia e a máquina distanciam-nos dos contatos humanos, resultando numa triste realidade. Temos a impressão de nos tornar mais livres, mais poderosos, mais autônomos. Clássica ilusão, pois se considerado for o humano como uma ilha, entretanto vive ele para os outros e dos outros, seus semelhantes. Há certamente um fenômeno de correlação inversamente proporcional entre a evolução tecnológica das sociedades e a capacidade de empatia. Mais o homem volta-se à tecnologia, mais ele se torna independente da força de trabalho de seu vizinho, de sua ajuda, de sua complementaridade social e profissional. O início do fenômeno não remonta à nossa época, pois ele é tão velho como as primeiras manifestações do homem no planeta. Não obstante o fato, o problema tende a se acelerar de maneira exponencial com a revolução das comunicações. Certos autores veem o futuro do homem conectado eternamente sobre um leito, não vivendo que por procuração sob fones de ouvido, a transmitir a realidade virtual, como no filme Matrix…

Consideremos essas maquininhas terríveis, que deveríamos utilizar somente para a comunicação real, positiva, e não imposta pelas firmas mundiais e suas publicidades invasoras, prenhes de jogos imbecis e debilitantes. Chegaremos à conclusão de que essa empresas obrigam-nos a pensar e a reagir segundo normas e esquemas, e pouco a pouco modeladoras do cérebro das novas gerações desde a mais tenra idade.

Em minha casa o celular estará sob controle até o final do curso colegial, no mínimo. A utilização do computador pelos meus filhos tem sido mais racional e a leitura dos verdadeiros livros, obrigatória. Sob outro contexto, mercê da publicidade e da adesão em termos mundiais, esses aparelhos estão custando muitíssimo e comumente entram em pane. Essa legião perdeu o contato com os livros, isso é certo.

Há dias estive em Caen e procurei um cabina pública (no Brasil temos o orelhão), pois estava sem o telemóvel. Percorri a cidade inteira em busca de uma cabina e nessa Caen, que mantinha uma em cada esquina, nada mais existe. Acabou a era dessas cabinas públicas. Fiquei estupefato. A cabina telefônica tinha uma vocação democrática, pois cada um podia ter acesso segundo suas necessidades. Quando jovem, era meu único meio de me comunicar com a família. Distorção democrática: os sem teto e os esquecidos pela sociedade estariam obrigados a ter celulares? Nem de  um mínimo abrigo têm eles a possibilidade!

Confesso, amo a tecnologia, desde sempre. Todavia, nos tempos atualíssimos o mundo caminha a cada minuto mais aceleradamente. Envelheço, certamente… (Servenière tem apenas 54 anos!!!). Quero continuar um bio, não me tornar um robô, um clone ou um zumbi. Um dia a máquina dirá para essa multidão espalhada pelo planeta: ‘façam isso, façam aquilo’, ‘matem seu vizinho que não está conectado, ele é recalcitrante, não obedece à matriz’. A legião obedecerá como um cordeirinho. Não eu. Jamais serei um escravo. Muitos já o são, como esses que estão na foto que você me enviou. Ao longo dos próximos 10, 20, 30, 50 anos, quem terá a coragem de abandonar essa dependência infernal?”. ( Tradução: JEM).

Que essa revolução é sem volta, todos sabemos. Perguntas ficariam sem resposta: caminhamos para a destruição do humanismo? A cultura tradicional colocada em xeque-mate, sobreviverá? O mental, mercê do “desprezo” pelos valores do passado, está a sofrer mutação sempre mais aceleradamente em direção a outros valores efêmeros. A sociedade como um todo é levada ao consumismo sem freios que provoca, de um lado a pseudo satisfação, e sob outro manto, enriquece os que produzem um infindável número de mercadorias que seduzem. Enquanto interesses abjetos existirem, corrupção sem limites sendo praticada impunemente pelo Estado e fora dele, “vaidade não como vício, mas como doença” (segundo Saint-Exupéry), manutenção do Poder não importando os meios, nosso país continuará à deriva, sem vislumbre, assim como tantos outros dessa instável América Latina, eivada de regimes ditatoriais bisonhos e sanguinários. Creio que o problema não residiria na eterna disputa ideológica voltada ao Poder. Há que se repensar o Homem. Nele estão pergunta e resposta. Essa reinvenção passaria pelo edificar valores hoje negligenciados: Moral, Ética, Verdade e a compreensão, sem quaisquer demagogias, do Próximo.

This post reflects on how mobile devices are disrupting human to human communications: people speak and write in a “new language” and have more – but apparently less meaningful – relationships.