Sérgio Monteiro e a Escolha Criteriosa

Sergio Monteiro is an artist with extraordinary creativity and energy.
When he starts playing, music comes to life.
His love for music is very strong and passionate, music loves him in return.
His pianism is brilliant, extremely generous, inspired  and particularly interesting.
Martha Argerich

Não poucas vezes escrevi neste espaço sobre compositor e intérprete, personagens fulcrais da entidade musical. Áreas outras afins existem como subsídios importantes, enriquecendo o conhecimento da música. Sob outra égide, é dado ao intérprete a possibilidade da escolha repertorial. A grande maioria dos executantes é “eleita” pelos compositores da tradição desde a tenra infância. Mortos, continuam a viver através de suas composições na interpretação sem questionamento. A comprovação está na prática dos repertórios tradicionalizados repetidos todos os anos. O intérprete que incorporou a bagagem constituída pelas obras mais ventiladas dos compositores consagrados não questiona, motivado por tantos fatores externos, e salas de concerto se habituaram a abrigar sempre as mesmas criações, dando, raras vezes, a oportunidade de se ouvir o novo ou o antigo redescoberto. O mesmo se dá com as gravações, e os intérpretes mais consagrados pelo planeta desfilam suas habilidades em repertório que serve também como comparação. A competitividade que existe nos esportes, na economia e em tantas áreas se instaura e é esse o panorama existente. Os tantos concursos internacionais de interpretação não subsistem nessa repetição infinita dos mesmos repertórios, que possibilitam a comparação?

Quanto àquele intérprete que elege seus repertórios, a desviar-se de programas sacralizados – sem os desprezar -, configura-se claramente o livre arbítrio na escolha das obras que constituirão seu acervo. Não “eleito” pelos consagrados compositores mortos, torna-se ele o protagonista da eleição. A depender de sua formação cultural, esse intérprete encontra seus compositores na gama enorme dos que viveram ou dos contemporâneos. Juízo de valor? Nenhum, apenas opções reais.

Entre os pianistas que elegem seus compositores encontramos Sérgio Monteiro, nascido em Niterói, tendo estudado no Brasil com José Henrique Duprat e Myrian Dauelsberg. Bolsista nos Estados Unidos, doutorou-se em música pela Eastman School of Music e, desde 2009, é  Diretor do Departamento de Piano na Wanda Bass School of Music, Oklahoma City University. Sérgio Monteiro tem sólida carreira pianística, atestada através de apresentações em grandes centros internacionais. Foi  o vencedor do IIº Concurso Internacional de Piano Martha Argerich, em Buenos Aires, entre outras láureas recebidas.

Durantes estes últimos dois anos trocamos e-mails a respeito das obras para piano de Henrique Oswald e foi com imenso gosto que transmiti a Sérgio Monteiro algumas informações do repertório que se faziam necessárias para o belo trabalho que está a realizar em torno do compositor em apreço. Pensa gravar CDs com suas composições para piano – ótima notícia – e a primeira mostra já é apresentada no magnífico CD Oswald gravado nos Estados Unidos na Universidade de Oklahoma (Grand Piano, distribuição Naxos).

A escolha do repertório não poderia ser mais adequada, pois privilegia compartimentos essenciais da criação oswaldiana. Oswald viveu cerca de 30 anos em Florença e, obedecendo à tendência bem enraizada na Europa da segunda metade do século XIX, tem nítida preferência pela peça de curto fôlego e elas proliferam em sua profícua e sensível produção para piano solo. Isoladas ou constituindo suítes ou folhas de álbum, a pequena peça atendia igualmente à demanda de seus alunos. Quando formatadas em coletâneas, destinavam-se também às apresentações públicas em saraus. Curiosamente, seria para o gênero camerístico que Oswald comporia obras de longo fôlego e, mercê da qualidade dessa produção, destacar-se-ia como o nosso mais representativo compositor nesse segmento, segundo o notável pianista Arnaldo Estrella (1908-1980).

Caracteriza a interpretação de Sérgio Monteiro a observância às estruturas formais escolhidas por Oswald. Essa assertiva, rigorosamente necessária, tem a “sublimá-la” o conteúdo sensível presente em todas as obras do CD. As encantadoras seis peças das Pagine d’Album op. 3 recebem um belo tratamento por parte de Sérgio Monteiro e revelam certamente as intenções íntimas de Oswald, baseadas num extraordinário senso melódico estruturado em qualidade ímpar da escrita. Esse amálgama se faz presente na interpretação do pianista nascido em Niterói. A flexibilização das frases é conduzida de maneira natural e esse aspecto agógico é um dos mistérios românticos e bem evidente em Oswald.

Grata surpresa a gravação dos três Álbuns opus 32, 33 e 36. Criações posteriores, quando Oswald já regressara ao Brasil. Tem-se outra atmosfera e apreende-se o entendimento que o compositor teria da criação francesa de curta duração, a partir, frise-se, da enorme quantidade de titulações francesas para suas pequenas peças para piano.

Dos seis Estudos de Henrique Oswald, Sérgio Monteiro gravou cinco. Os Trois Études de 1910 e o Étude (1897) são interpretados com arroubo e emoção e apreendidos stricto sensu no aspecto virtuosidade, característica da grande maioria dos Estudos para piano. Contudo, trata-se de aspecto semântico e que depende da compreensão de cada intérprete. O magnífico Étude pour la main gauche (1921) tem tratamento cuidadoso em seus vários segmentos. Convence plenamente.

Duas peças avulsas compõe o CD, Valsa Lenta, op. posth., e a delicada En Nacelle. Tanto En Nacelle (no cesto de balão), como In Hamac (na rede), quarta das Pagine d’Album, op 3, ou Bébé s’endort, do Álbum op. 36, pertencem a um universo tão caro a Oswald, o do balanço, que é integrado também pela barcarola e pela berceuse e que tão intimamente marcou a criação do grande compositor francês Gabriel Fauré (1945-1924), um dos modelos oswaldianos. O ilustre musicólogo e filósofo francês Vladimir Jankélevitch (1903-1985) apreenderia à perfeição esse movimento do berço ou das águas tranquilas como inerentes a tantas produções de Fauré. Estendo os comentários a Henrique Oswald. Sérgio Monteiro soube compreender o lirismo pueril e sereno que emana dessas obras voltadas a esse ondular.

Para o velho pianista e professor que “redescobriu” Henrique Oswald no longínquo 1978, guiado pela diletíssima amiga e neta do compositor, a saudosa Maria Izabel Oswald Monteiro, é sempre motivo de surda alegria a difusão da obra de Oswald em alto nível, caso do CD com o qual Sérgio Monteiro nos brinda. Não basta ser um hábil pianista. Para buscar  compreender Henrique Oswald no seu de profundis é necessário o pulsar sensível e amoroso. Sérgio Monteiro desvela-se por inteiro nesse magnífico CD. Recomendo-o vivamente.

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Uma observação que se faz necessária e que tem menor impacto no ótimo CD de Sérgio Monteiro. Explico-me. Reiteradas vezes, em CDs lançados nestes últimos anos e relacionados a Henrique Oswald, há a menção de primeira gravação mundial para determinadas obras que gravei. No caso do CD em apreço pode-se até alegar que registros se deram em outra categoria de mídia, o long playing, o hoje lendário LP. Pagine d’Album op. 3 (seis peças), En Nacelle e Estudo (edição póstuma), já as tinha gravado em LP lançado pela Funarte em 1983; Sonata para violino e piano op. 36, gravamos (Elisa Fukuda – violino) em 1988 para o selo Funarte e, em 1995, (Paul Klinck – violino) em Bruxelas, para o selo PKP, mas anos após músicos pátrios inseriram em suas gravações  “primeira gravação mundial”; Quarteto de cordas e piano op. 26, gravado em 2003 na Bélgica (quarteto belga Rubio), lançado pela USP e Concerto / Clássicos e, precedido pela edição da obra pela Edusp em 2001 (edição José Eduardo Martins), mas há anos atrás gravado por músicos brasileiros em São Paulo como sendo em primeira audição mundial; Six Morceaux op. 4, obra gravada na Bélgica e a constar do CD “O Piano Intimista de Henrique Oswald”, lançado pela Academia Brasileira de Música em 2010, mas também mencionada como primeira audição mundial num CD gravado por pianista brasileiro na França e lançado pela Naxos. Se desconheciam, é uma lacuna, pois os dados constam do meu perfil na wikipedia. Fica apenas o registro.

It has been a pleasure to listen to the just released CD of the excellent Brazilian pianist Sérgio Monteiro, head of the Wanda Bass School of Music Piano Department, Oklahoma City University. The CD is entirely dedicated to our foremost Romantic composer, Henrique Oswald (1852-1931). I strongly recommend it.