Outras reflexões sobre o tema

O piano ou é fácil ou impossível.
Arthur Rubinstein (1887-1982)
(frase atribuída ao notável pianista)

Conversava com um amigo, músico amador, a respeito de vários temas ligados à área musical. Veio uma pergunta bem pertinente referente à interpretação e às tantas leituras diferenciadas frente à execução. Durante um curto que tomamos em nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, tentei explicar ao João Paulo algumas considerações de músicos renomados e minha posição pessoal sobre relevantes questões.

Hoje temos o YouTube a divulgar ad infinitum intérpretes de todos os níveis. Nome do compositor e título da obra servem para abertura de extenso leque que expõe um sem número de executantes para as composições consagradas, mas também vasto repertório basicamente desconhecido do grande público, tendo, logicamente, raras performances.

João Paulo quis saber a razão de a mesma obra, por vezes, ter interpretações antagônicas, mesmo se considerarmos grandes músicos a tocar. Sob outra roupagem já tratei desse tema, que se está a acentuar hodiernamente. Questão intrincada. As transformações tecnológicas que se deram a partir, sobremaneira, da segunda metade do século XX  influenciaram mais aceleradamente posturas diferenciadas frente à interpretação. Glenn Gould (1932-1982) foi um pianista que rompeu tradições expressamente, razão a acrescer à grande popularidade que o pianista canadense granjeou. Teve e ainda tem admiradores pelo mundo, mas deixou um legado rigorosamente individual. O extraordinário pianista evidencia acurada consciência em todas as suas interpretações, endossadas  em tantos depoimentos colhidos por Otto Friedrich (“Glenn Gould – Uma vida e variações”, 2000). Estimulam opiniões polêmicas tributadas à sua postura frente à obra. Imitações sempre carregam viés caricato, e seu exemplo tenderia a ser único. Sob outra égide, poder-se-ia aventar até que, com o passar das décadas, a discografia de Glenn Gould possa estiolar-se, permanecendo sua herança musical como fato característico de uma época. Talvez. Numa outra leitura, não estaria a interpretação hodierna a romper as amarras da tradição, o que valeria a dizer que Glenn Gould tenda a se fixar no panteão glorioso dos pioneiros? Suposições. Os caminhos por que trilha a Cultura como um todo são imprevisíveis e a mídia sempre esteve atenta às figuras que se destacam muito acima de seus pares, mas também é iconoclasta tão logo revelações denigram esses eleitos.

Vieram a propósito, durante nosso curto, considerações de dois grandes músicos a respeito da interpretação e seus elementos integrantes, como flexibilização de andamentos, dinâmica, percepção auditiva, gestual,  “atualização” da leitura da partitura. Neste último caso, mais e mais está a ser aceita certa arbitrariedade que causa impacto. Dir-se-ia estar havendo um determinado “temor” por parte de intérpretes na manutenção da traditio. Há público caloroso, irreverente até, e concorde com a postura que faz entender a Música de Concerto, Clássica ou Erudita como parte integrante da grande transformação por que passa a Arte no planeta. Mario Vargas Llosa não deixa de denunciar sistematicamente essa ação, que provoca resultados díspares na civilização. Artistas consagrados fazem permanentemente concessão quanto ao repertório não de concerto, gravam obras de cunho popular com roupagem “erudita” e prosseguem carreiras triunfantes.

A uma pergunta de João Paulo sobre andamentos das músicas consagradas, comentei que não é difícil constatar que mais e mais intérpretes, pianistas hodiernos como tipicidade, têm dado mostras de que os tempi das obras executadas, quando rápidas, tendem à aceleração ainda maior. Por várias vezes em meus posts referi-me ao exemplo dos esportes, que encontram no cronômetro a aferição que leva às premiações. Recordes são batidos para gáudio de atletas, patrocinadores e multidões. Impossível não perceber veracidade nessa comparação. Os tantos concursos de piano espalhados pelo mundo dão mostras dessa assertiva. Habilíssimos executantes  extasiam  público e jurados através da impecabilidade da interpretação e performances, por vezes acrobáticas e alucinantes no que tange à virtuosidade. Lógico que há que se considerar tantos outros fatores, como a musicalidade, a compreensão estilística, o respeito à forma. Todavia, o jamaicano Usain Bolt e sua incrível marca de 9,58 segundos para os 100 metros rasos (Berlim 2009) é exemplo em tantas atividades. Impossível não considerar que a intensa concentração mediática em torno de recordes não produza efeitos nas mais diversas áreas. Estou a me lembrar de que anos atrás assisti a um concerto no qual os músicos finalizavam com uma obra rápida. Calorosamente aplaudidos, os intérpretes regressaram para a tradicional música extraprograma e um deles, ao se dirigir ao público, disse que tocariam essa última peça de concerto, muito conhecida, aliás, em tempo ainda mais rápido. A performance foi razoável, mas o numeroso público ao final se levantou e aos berros saudou os “virtuoses”. Outros tempos. Saí cabisbaixo. Nada a fazer. A música apenas a serviço do aplauso fácil!!!

O cronômetro a fixar Usain Bolt é exato, irreversível, mas a interpretação musical velocista pode prejudicar a transparência. Há magia e simulação que anuviam nossa percepção. Daniel Barenboim é preciso ao afirmar que o excesso de “velocidade” está contra a possibilidade da percepção auditiva. A consideração do pianista-regente-pensador tem fundamento. Basta o ouvinte comparar as interpretações da Valsa Mefisto, de Franz Liszt, nas execuções da georgiana Khatia Buniatishvili e do russo Daniil Trifonov para tirar suas deduções. Indico os links (fonte YouTube):

Clique para ouvir as duas interpretações:

Buniatishvili

Trifonov

Na de Trifonov tudo está lá extraordinariamente exposto e a compreensão da partitura é plena. Virtuosidade a serviço essencialmente da música. Na interpretação de Buniatishvili, a virtuosidade extrapola, e os dons incríveis da velocista estariam a serviço de seu impulso a visar ao impacto. Quem sofre? A diabólica criação de Liszt certamente, pois nem tudo é rigorosamente transparente e, nesse élan, passagens técnicas ficam comprometidas pela não certeza auditiva de que tudo da partitura lá esteja exatamente transcrito na execução da pianista. Vê-se que haveria, por parte de Buniatishvili, a necessidade de bater recordes. O que é mais preocupante é a recepção calorosa que a pianista recebe do “grande público”. Nunca é demais mencionar a célebre frase francesa épater les bourgeois. Falecido recentemente, Humberto Eco não considerava idiota a legião de seguidores das redes sociais pela internet? Paralelismos? Há que se pensar.

E os compositores barrocos ao piano, questionou-me João Paulo? A nossa extraordinária pianista Antonieta Rudge (1885-1974), em opinião recolhida pelo ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016), faria menção às escolhas interpretativas no repertório barroco para teclado: “Lembro-me de minha professora de piano, a grande Antonieta Rudge – tive este privilégio – me dizendo que podemos tocar Bach em qualquer andamento, qualquer instrumento, de qualquer jeito, porque a música está na partitura, na sua escrita, no pensamento musical. Sua Arte da Fuga nem especifica a instrumentação. São as notas escritas no papel que devem soar na nossa mente” (“Viver sua Música”, 2014). No que se refere ao andamento, desde que se escolha um determinado, certamente.  Seria o insigne François Lesure (1923-2001) que nos ensinaria com sábias palavras: “não é o instrumento que assegura aprioristicamente a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”.

Desde minha gravação da integral para tecla de Jean-Philippe Rameau executada ao piano, reitero em textos que a única tradição válida de toda a extensa criação para cravo entre os séculos XVII-XVIII vem da transmissão oral mestre-aluno, a ter como instrumentos pianoforte, inicialmente, e piano a seguir. Prolongou-se do final do século XVIII afora, pois o instrumento cravo ficou no ostracismo. Nenhum compositor que permaneceu na história escreveu para cravo durante o século do silêncio para o cravo. Essa tradição da escuta tem certamente ingredientes que podem, por vezes, alterar os tempi, mas não a essência de conquistas inalienáveis obtidas pela interpretação das obras escritas para teclado nos século XVII e XVIII executadas ao piano, como agógica, acentuações, legato e dinâmica, esta última soberana na interpretação, pois possibilitou a oitiva elástica. A afirmação de Antonieta Rudge, mencionada acima, vem ao encontro dessa liberdade que se pode dar à interpretação, desde que elementos básicos da tradição não sejam aviltados. Em situação também próxima, Daniel Barenboim escreveria: “É necessário ser muito rigoroso com aqueles tendentes ao excesso de liberdade, mas de mostrar-se bem livre com aqueles que não têm a imaginação para sê-lo” (“La musique est un tout”, 2014).

Durante mais de meia hora ficamos a conversar. João Paulo finalizaria suas compras no supermercado e eu, as minhas, já a pensar num tema para o blog.

A chat with a friend was the starting point of this post, a reflection upon some aspects of musical interpretation, in particular that of the same pieces played by different performers and how unlike they may sound. In my view, the performer is free to breathe new life into a work since the basic elements of tradition and the composer’s intentions are not betrayed.