Navegando Posts publicados em junho, 2016

Quando arguta sugestão leva a recordações

Se temos de esperar,
que seja para colher a semente boa
que lançamos hoje no solo da vida.
Se for para semear,
então que seja para produzir
milhões de sorrisos,
de solidariedade e amizade.
Cora Coralina (1889-1985)

Durante o VI Simpósio Internacional de Musicologia, que se realizou na cidade de Goiânia entre os dias 13 e 17 de Junho, e tema do blog anterior,  um aluno, que ouvira numa das sessões do Encontro comentários a respeito de minha relação com a cidade desde o final década de 1970, perguntou-me quais seriam essas ligações anteriores. Não lhe respondi no momento e disse que poderia pensar em texto para meu blog. Atendo ao seu questionamento.

Naqueles anos mencionados, após palestras e recital na cidade a abordar a obra para piano de Claude Debussy, apresentação realizada no Musika – Centro de Estudos, no dia 1º de Abril de 1981, recebi convite da competente professora e pianista Glacy Antunes de Oliveira, diretora da escola, para orientar algumas professoras e alunos. Musika desempenhou papel relevante na vida cultural da cidade. Durante dois ou três anos, mensalmente viajava para Goiânia às sextas-feiras à noite para aulas que se prolongavam durante o sábado e o domingo pela manhã. Foi um período muito significativo para mim, pois anualmente me apresentava em recitais interpretando obras relevantes, mas pouco frequentadas.

Lembro-me que me impressionava  a transformação de Goiânia,  inaugurada efetivamente em 1937. Trinta anos após, já era uma  cidade próspera e visível se tornava seu crescimento, mormente para um não habitante. A relação amistosa que mantive com todos os alunos não poderia ser melhor. Tinha imensa alegria no convívio em torno de um piano. Não apenas os ouvia como conversávamos sobre música, apontava leituras importantes e tocava inúmeras obras durante as aulas. Entre os alunos, a competente professora Ana Guiomar Rêgo Souza, que tão bem co-presidiu o VI Simpósio e que desempenha magnífico trabalho frente à Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade de Goiás.

Em não poucos blogs escrevi que priorizo sempre a formação do músico e o pianista, a depender do talento, poderá emergir paralelamente ao seu desenvolvimento como humanista. O amálgama é imperativo.

Cercado pela atenção dos que frequentavam as aulas mensais, não poderia deixar de mencionar um fato curioso, hilariante até, e que é lembrado com humor quando estou em Goiânia. O pai de uma das alunas, fazendeiro e ótimo contador de histórias de caçadas, ofereceu-nos, a todos os que cursavam as aulas, um lauto almoço preparado pela sua dedicada esposa. Ao fim, disse-me que me reservara surpresas. Vieram à mesa amostras de suas caças. Agradeci com negativa diplomática, mas o bom homem fez-me degustar um pouco de cada caça. Tudo em quantidades bem pequenas, não sem antes comentar  como conseguira o feito. Lá estavam amostras dos mais variados animais silvestres de pequeno e de grande porte, várias qualidades de peixes, aves do Araguaia e até jacaré. Mantinha todo o “zoo” em congeladores bem robustos. Pouquíssimas horas antes de meu retorno a São Paulo, já no aeroporto, a fauna se rebelou em minhas entranhas. Inesquecível!!! Após essa experiência, jamais saí de dieta espartana, ou carne ou peixe (um só tipo de cada).

Foram muitos os retornos a Goiânia para recitais e palestras.Propunha sempre uma conversa no Musika e, posteriormente, na EMAC/UFG, sobre o repertório a ser apresentado à noite. Igualmente tenho lembranças duradouras das récitas nos anos 1990 promovidas pela Escola de Música dirigida irmã de Gyovana Carneiro, professora da UFG.  Nos programas, obras referenciais, mas pouco frequentadas. É tão vasto o repertório, e repetem-se prioritariamente as mesmas composições!!! Desde 2007, inúmeros blogs comentam essa situação, que se perpetua entre nossos intérpretes. Raras as exceções que contemplam a obra-prima que, oculta, espera ser revelada. Isso só acontece se lá formos, aos arquivos, às prateleiras de lojas especializadas e, hoje, à internet. O manancial é riquíssimo, inesgotável diria, e apenas aguarda o momento do desvelamento.

No plano acadêmico, a participação em várias bancas de pós-graduação trouxe-me a certeza de um singular empenho da UFG no sentido de formar quadro competente de docentes. Sem mencionar nomes dos postulantes, pois poderia esquecer-me de alguns, diria que o convívio à mesa julgadora com as professoras Belkiss Carneiro de Mendonça e Glacy Antunes de Oliveira foi-me sempre muito feliz. Sob o aspecto pianístico, Goiânia mostrava-se em altíssimo nível, mercê da atuação didática das duas professoras titulares da UFG. Mencionaria uma dissertação em especial, a de Othaniel Alcântara Júnior, pois o então bem jovem músico, hoje atuante docente da Instituição, apresentou a edição da magnífica Sonata para violino e piano de Henrique Oswald (1852-1931), muito bem interpretada durante sua defesa. Era mais um passo meritório para o conhecimento, que se faz a cada ano mais presente, da obra de nosso grande compositor romântico.

Foi a primeira vez que participei do Simpósio Internacional de Musicologia em Goiânia. Desde a minha aposentadoria, em 2008, não me fiz convidar para nenhum Encontro no país, mas tinha conhecimento do que se passava nesse campo tão específico. Continuava acentuadamente a me dedicar ao piano, às gravações na Bélgica e às apresentações na Europa, assim como à publicação de artigos e livros, mormente para o Exterior. Convidado, com enorme prazer verifiquei, nesta sexta edição do Simpósio, a maturidade da pesquisa na área musical apresentada e o debate de temas importantes realizado pelos participantes meritosos. Mantivemos convívio em alto nível e tive o prazer de rever colegas e conhecer outros, que já pertenciam ao meu campo de leituras. Como decano entre os docentes, senti sempre uma empatia salutar entre todos, troca de informações de nossa área e alegria de estarmos juntos. Saliente-se a presença dos quatro excelentes professores musicólogos vindos de Portugal, respeitadíssimos no Exterior.

Na abertura do VI Simpósio, a dileta amiga e competente professora Ana Guiomar Rêgo Souza, presidente e coordenadora geral, juntamente com a professora Magda de Miranda Clímaco, disse que eu era o mais antigo a frequentar musicalmente Goiânia e que, possivelmente, o arroz de pequi me tenha seduzido. Essa delícia goiana foi apenas a ponta do iceberg, pois minha relação afetiva com a cidade e amigos músicos da urbe está nas profundidades sólidas da amizade.

I’ve just arrived from the city of Goiania, where I took part in the successful Sixth International Symposium on Musicology. However, my connections with the city date back to the seventies, when I gave a course on Debussy at the local university. In this post, I talk about memories of travels to Goiania, dear friends I have there and the ever increasing maturity of research into music conducted at Universidade Federal de Goiás (UFG).

 

 


VI Simpósio Internacional de Musicologia

O especialismo favorece aquela preguiça de ser homem
que tanto encontramos no mundo,
permite ele, por outro lado,
aproveitar em tarefas úteis
indivíduos que pouco brilhantes seriam no tratamento de conjuntos.
Agostinho da Silva

Foram inúmeras as vezes que estive em Goiânia para atividades musicais, desde a década de 1970. Recitais, palestras e visitas mensais durante uns bons três anos, a fim de curso de piano a alunos e jovens professores da cidade. Poderia afirmar que Goiânia pertence ao meu mundo de afetos. Raízes fincadas.

Foi a primeira vez que fui convidado para o prestigioso Simpósio. Aquiesci com grande alegria, pois programaram um substancioso elenco de temas a ser debatido, assim como recitais durante a semana em questão. Participaria em mesa redonda, minicurso e recital de piano. Agradou-me.

O VI Simpósio Internacional de Musicologia estendeu-se durante a semana de 13 a 17 de Junho. Promovido pela Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, Centro Cultural UFG e Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso/Brasileira/CESEM/FHSC/Universidade Nova de Lisboa, teve na presidência da coordenação geral as professoras Ana Guiomar Rêgo Souza e Magda de Miranda Clímaco (Universidade Federal de Goiás). Registremos as colaborações efetivas de Gyovana Carneiro, Consuelo Quireze Rosa, Othaniel Alcântara Jr. e Robervaldo Linhares Rosa, igualmente professores da mesma Academia. Frise-se, o quadro docente da EMAC corroborou o excelente nível do Simpósio. A sexta edição ratifica a presença já consagrada da UFG no cenário musical e cultural do país. Ilustres professores portugueses abrilhantaram o Simpósio. Mencionemos os nomes de Ana Maria Liberal (ESMAE/CESEM, FCSH-Universidade Nova de Lisboa), Eduardo Lopes (IA/DM Universidade de Évora/ PPG Música UFG), Luisa Cymbron (CESEM/FHCS/UNL) e Paulo Ferreira de Castro (CESEM/FHCS/UNL).

A conferência de abertura foi realizada pelo notável professor Paulo Ferreira de Castro (CESEM/FHCS/Universidade Nova de Lisboa) no dia 13: “Compor a várias vozes: aspectos da transtextualidade em Wagner e depois de Wagner”. Seguiu-se debate profícuo. Durante a semana houve a apresentação de temas significativos em cada mesa redonda: Compositores românticos brasileiros; Música popular urbana; Sons da cidade; Mulheres na música: sons e silêncio; Educação musical e musicologia; Conversas de musicólogos. Seguindo a tradição de edições anteriores, a temática da música religiosa até as primeiras décadas do século XIX esteve em pauta. Registremos que houve a atuação efetiva de professores e pós-graduandos nos debates enriquecedores de todos os temas propostos.

Quanto às minhas participações, diria que a mesa redonda “Trio romântico brasileiro – Nepomuceno, Oswald e Miguez” (14/5), com a presença dos professores doutores Luiz Guilherme Goldberg (UFPel), Mônica Vermes UFES) e sob a mediação de Othaniel Alcântara Junior (UFG), buscou não apenas evidenciar identidades entre esses compositores, como realçar o precioso contributo à música brasileira nos vários gêneros preferenciais a cada autor. Na minha intervenção salientei que as obras dos nossos mais significativos românticos estariam rigorosamente equiparadas ao que se escrevia na Europa, nesse caudaloso movimento romântico que se estenderia até as primeiras décadas do século XX. Ficaria claro que nossos músicos praticaram a linguagem vigente por tantos compositores de mérito e estavam distantes das tendências decorrentes do esgotamento da tonalidade, que resultariam numa revolução escritural no século XX. Realcei na minha intervenção que a viagem ao Exterior foi fundamental para a equiparação com as escritas musicais sacralizadas na Europa. Se há imensa dificuldade de inserir no repertório internacional nossa criação musical anterior ao romantismo, não pela qualidade, mas sim por uma defasagem escritural, o mesmo não tem ocorrido com a produção musical romântica brasileira. Creio que essa apreensão poderá, através da divulgação repertorial e interesse dos intérpretes, colocar definitivamente obras do período nos programas internacionais de concerto. Paulatinamente, esse fenômeno está a se produzir. Saliente-se contudo que parte considerável de nossa criação anterior ao romantismo tem sido estudada com afinco por especialistas de mérito. Isso é salutar.

Na noite do dia 14 dei recital inteiramente dedicado à obra para piano de Fernando Lopes-Graça. Propus esse programa, pois acredito que a irmanação das produções criadas em Portugal e no Brasil tem que ser a cada ano mais acentuada. Não basta o discurso e o texto. Há que se ouvir música de mérito. E ela existe nos dois países. A escolha das obras também teve como origem a presença dos distintos professores de universidades portuguesas no importante Simpósio.

Todas as noites, recitais de excelente nível foram apresentados por intérpretes da UFG e por músicos pertencentes aos quadros de várias universidades brasileiras. A agenda ativa impediu-me de assistir a todas as récitas. Não obstante, tive prazer imenso ao ouvir apresentações de mérito: o recital de piano de Diones Correntino que ofertou improvisações e arranjos de músicas populares, evidenciando uma singular habilidade técnico-pianística e sensível apreensão da dinâmica. Igualmente de mérito, o recital de cravo, flauta doce e canto proporcionado pelos músicos: Mário Trilha (cravo – Universidade Estadual da Amazônia), David Figueiredo Castelo (flauta doce – UFG) e Alberto José Vieira Pacheco (canto – UFRJ/CESEM). Belo repertório elástico a se estender de François Couperin (1668-1733) a Edino Krieger (1928- ) e Villani-Côrtes (1930- ). Estiveram em excelente noite. Encerrando o Simpósio houve a apresentação da Banda Pequi em Cena tendo como regente Jarbas Cavendish (UFG). Entusiástica performance.

Dos dias 15 ao 17 realizei curso a abordar a obra para piano de nosso romântico Henrique Oswald (1852-1931). Forma, gênero, interpretação, modelos aceitos, influências. Destas, preponderam três: francesa, italiana e alemã. Evidenciei o tratamento pianístico dado à música de câmara, ao piano intimista e às peças mais virtuosísticas. Apresentei várias dessas criações, inclusive a coletânea Bluettes (1888), constituída de pequenas peças com nomes de flores. Gravei-a na Bélgica, juntamente com outras obras do compositor, para CD a ser editado em 2018. Foi a primeira audição absoluta da obra.

Finalizando, diria que o VI Simpósio atingiu plenamente seus objetivos. Toda a comissão organizadora merece os mais efusivos parabéns. Goiânia, que teve na figura da grande pianista, professora e saudosa amiga Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), co-fundadora do Conservatório Goiano de Música, hoje Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, a incentivadora mor da música em Goiânia, junto com sua discípula, a também competente pianista e professora Glacy Antunes de Oliveira, ambas professoras titulares da UFG, tem que se ufanar de seu passado e dessa continuação gloriosa, sempre a pensar no melhor para a música de nosso país.

A criança prodígio e o impacto frente ao público

Desde já, nós apreendemos a diferença entre aquele que não pensa e aquele que pensa.
Mesmo diante do mistério, o primeiro diz sempre: “Mas, é bem evidente”.
Mesmo diante da evidência, o segundo diz: “Eu não compreendo nada”.
Jean Guitton
(Nouvel Art de Penser- 1946)

Exatamente há dois anos escrevia blog pertinente à precocidade (vide blog: “A criança prodígio frente à interpretação musical e à vida”, 14/06/2014). Acredito que aspectos fulcrais foram comentados. Abordei, inclusive, o prodígio Pierino Gamba (1936- ), sob o olhar laudatório inicial do crítico musical, ensaísta e poeta português João José Cochofel, que, após poucos anos, em outra apresentação do já adolescente, é mais reservado e escreve: “Mas que estragos não será capaz, antes do desabrochar de todas as faculdades, a má orientação, as medalhas que lhe põem no peito, os focos luminosos que acompanham, os livros e filmes biográficos ou pseudobiográficos que lhe consagram, enfim: toda a adulação de uma máquina de propaganda montada com todos os expedientes comerciais do tempo em que vivemos?”. Passaram-se outros mais anos e, ao vê-lo reger nos seus 26 anos, mostra-se cáustico. Mencionei naquele blog que no futuro, já Piero Gamba, o maestro desenvolveria sólida carreira como regente de orquestras renomadas.

Volto ao tema, após ter ficado hospedado durante a tournée em Portugal em Oeiras, no lar do querido casal Manuela e José Maria Pedrosa Cardoso, ele notável musicólogo. Ao consultar sua rica biblioteca, encontrei um pequeno livro sobre Pierino Gamba que me despertou muito interesse (Isidoro Duarte Santos. “Pierino Gamba – O menino maestro à luz da nova psicologia”. Lisboa, Estudos Psíquicos Editora, 1949).  José Maria emprestou-mo, trouxe-o comigo, e a leitura retrata o instante do acontecido e sua decorrência, resultados dos momentos de impacto que o autor do livro sofreria ao ouvir o miúdo aos 11 anos de idade em vários concertos, a reger orquestra sinfônica em Lisboa.

Inicialmente temos de regressar aos anos 1940-1950. A aparição de um denominado menino prodígio levava multidões aos teatros. Tratava-se de fato raro, a ser amplamente divulgado. No caso de Pierino Gamba, o sucesso que obteve em Portugal e em tantos outros países foi absoluto. Autoridades, realeza, dignatários da Igreja compareciam aos seus concertos. A raridade e a exposição despertavam o fascínio. O livro de Isidoro Duarte Santos traduz exatamente o impacto causado. Insere críticas laudatórias escritas logo após eventos. Apresenta opinião do renomado compositor Ruy Coelho. Duarte Santos enriquece sua publicação consultando médico psiquiatra e espiritualista, respectivamente. Contradiz o depoimento do psiquiatra, que afirma: “E toda gente pergunta: quanto tempo durará esta luz deslumbrante?”. Desfila um sem número de escritores, cientistas, músicos, a tentar argumentação às suas teorias. Chega à explanar a respeito do perispírito para consubstanciar gênio, memória e outras mais áreas polêmicas. Até César Lombroso é mencionado, ao afirmar que “o gênio é degenerescência mental” e que, portanto, esses extraordinários seres não devem ter saúde perfeita, devem ser anormais. Duarte Santos expõe longa lista dos chamados gênios em todas as áreas imagináveis. Cada um em sua categoria de genialidade, extravagância, inspiração e ação. Todo o discurso, a fim de tentar explicar o menino prodígio Pierino Gamba. O autor traz curiosa diferença entre talento e gênio, a partir de observação de Hagen, para o qual o gênio é original. Escreve Duarte Santos: “A inspiração talentosa repete o fato registrado; a do gênio dá origem ao fato inédito. Não repete; inventa ou cria. O talento visa a um objetivo que se esconde a cada passo; o gênio visa a um objetivo inteiramente invisível”. Nesses quase setenta anos passados, por quantos questionamentos passou a palavra gênio?

Quanto à memória, o autor cita a entrevista que o pai do menino maestro concedeu ao “Diário de Notícias”, de Lisboa, assistida por Pierino, que se lembraria até do número de palavras repetidas por seu progenitor, tentando mostrar a evidência da memória prodigiosa voltada às obras orquestrais, pois o garoto regia sem partituras. Argumentação para a teoria a envolver vidas anteriores,  entenda-se reencarnação proposta por algumas religiões e seitas. Escreve que sua convicção “prova que o cérebro não é sede da memória e que esta se encontra nos recessos do perispírito, esse mediador plástico que modela os corpos e sobrevive às alterações orgânicas. Mais prova também que não há uma vida, mas muitas vidas encadeadas entre si, como elos de infinita corrente, os quais dão carácter de veracidade à lei de causa e efeito que rege o mundo e o mundo moral”.

Duarte Santos, nessa intenção absoluta de explicar o menino prodígio que foi Pierino, extrapola para a metafísica e expõe suas “certezas” a respeito de Vida e Além. É nítida a vontade de explicar o menino maestro como sendo resultado de reencarnação.

A leitura do livro possibilita entender o impacto que pode causar a aparição, no caso, de um ser com dons acima do natural. O fascínio é nítido. Evidencia igualmente que a pouca circulação da comunicação, até as décadas apontadas, ventilava raros miúdos prodígios, não apenas na área musical. Eles continuam a existir, agora às toneladas, mormente vindos do Extremo-Oriente. O YouTube aí está a apresentar inúmeras crianças superdotadas, assim como outras consideradas prodígios apenas pelo círculo familiar. No primeiro caso, há interesse em vê-las, apesar de sempre se saber que se está a ouvir o talento, é lógico, mas fundamentalmente a interpretação transmitida pelo professor e assimilada pela criança. Quanto ao segundo caso, verdadeiras aberrações inundam o YouTube.

Isidoro Duarte Santos, leigo em música, espiritualista convicto, ficou seduzido e seu livro é um pleno testemunho dessa inteira submissão à regência do miúdo Pierino Gamba. Prosta-se ao impacto fulminante que sofreu. Seria correto entender que parte considerável dos meninos prodígios acaba sucumbindo a cobranças futuras, quase impossíveis de serem satisfeitas para um tipo de público “leigo e cativo”. O psiquiatra Barahona Fernandes, mencionado por Duarte Santos, afirma, receoso sobre o futuro desses “meteoros”: “Perecerá de esgotamento, estiolará à força de explorado em ininterruptas exibições, degenerará em banalidade com a maturação da idade?”. Como bem afirmava minha mestra, a lendária pianista e professora Marguerite Long, “nada resiste ao trabalho”. Compreenda-se que disciplina, estudo aprofundado, concentração e “desligamento” de um passado pleno de incenso, que poderia tê-lo feito sucumbir, levou Piero Gamba, no futuro, a ser reconhecido como regente de reais méritos na Europa, Austrália e Américas, tendo gravado com Luciano Pavarotti e o violinista Ruggiero Ricci, entre tantos mais. Prossegue o desempenho de carreira como regente e professor de direção orquestral. Reside atualmente nos Estados Unidos.

Levas de prodígios continuarão a aparecer. Contudo, o carisma da criança prodígio teria desaparecido com o advento da internet, pois o YouTube tudo aceita. A quantidade banaliza, dificulta a seleção e o superdotado em tenra infância é admirado, mas continuaria ainda a ser reverenciado como outrora? Dos milhares de prodígios que surgem no Extremo Oriente, apenas uma quantidade pequena deles, anos após, já basta para inundar o Ocidente em Concursos Internacionais de Instrumento. Destacar-se-ão uns poucos. A neblina ocultará aqueles que, pelos mais variados motivos, tiveram de ficar pelo caminho. Razões estimulantes como a cultura abrangente, a orientação musical segura e o fundamental apoio da família, que deveria sempre buscar o burilamento do talento em direção à maturidade, poderão conduzir a criança prodígio, livre das amarras, à plena realização.

This post is about a book I’ve just finished reading about Pierino Gamba, the child-prodigy who has conducted great orchestras at a very early age. It was written in 1946 by Isidoro Duarte Santos, under the impact of the concerts starred by Pierino, then just a child. The author conceives curious theories to explain Pierino’s mastery, which he sees as something supernatural. As an adult, the conductor became Piero Gamba, who built a solid reputation as conductor and teacher, but away from the spotlight. I believe today, with the web jam-packed with young geniuses showcasing their talents in different fields, a wonder like Pierino Gamba would hardly achieve special attention in the media.