A criança prodígio e o impacto frente ao público

Desde já, nós apreendemos a diferença entre aquele que não pensa e aquele que pensa.
Mesmo diante do mistério, o primeiro diz sempre: “Mas, é bem evidente”.
Mesmo diante da evidência, o segundo diz: “Eu não compreendo nada”.
Jean Guitton
(Nouvel Art de Penser- 1946)

Exatamente há dois anos escrevia blog pertinente à precocidade (vide blog: “A criança prodígio frente à interpretação musical e à vida”, 14/06/2014). Acredito que aspectos fulcrais foram comentados. Abordei, inclusive, o prodígio Pierino Gamba (1936- ), sob o olhar laudatório inicial do crítico musical, ensaísta e poeta português João José Cochofel, que, após poucos anos, em outra apresentação do já adolescente, é mais reservado e escreve: “Mas que estragos não será capaz, antes do desabrochar de todas as faculdades, a má orientação, as medalhas que lhe põem no peito, os focos luminosos que acompanham, os livros e filmes biográficos ou pseudobiográficos que lhe consagram, enfim: toda a adulação de uma máquina de propaganda montada com todos os expedientes comerciais do tempo em que vivemos?”. Passaram-se outros mais anos e, ao vê-lo reger nos seus 26 anos, mostra-se cáustico. Mencionei naquele blog que no futuro, já Piero Gamba, o maestro desenvolveria sólida carreira como regente de orquestras renomadas.

Volto ao tema, após ter ficado hospedado durante a tournée em Portugal em Oeiras, no lar do querido casal Manuela e José Maria Pedrosa Cardoso, ele notável musicólogo. Ao consultar sua rica biblioteca, encontrei um pequeno livro sobre Pierino Gamba que me despertou muito interesse (Isidoro Duarte Santos. “Pierino Gamba – O menino maestro à luz da nova psicologia”. Lisboa, Estudos Psíquicos Editora, 1949).  José Maria emprestou-mo, trouxe-o comigo, e a leitura retrata o instante do acontecido e sua decorrência, resultados dos momentos de impacto que o autor do livro sofreria ao ouvir o miúdo aos 11 anos de idade em vários concertos, a reger orquestra sinfônica em Lisboa.

Inicialmente temos de regressar aos anos 1940-1950. A aparição de um denominado menino prodígio levava multidões aos teatros. Tratava-se de fato raro, a ser amplamente divulgado. No caso de Pierino Gamba, o sucesso que obteve em Portugal e em tantos outros países foi absoluto. Autoridades, realeza, dignatários da Igreja compareciam aos seus concertos. A raridade e a exposição despertavam o fascínio. O livro de Isidoro Duarte Santos traduz exatamente o impacto causado. Insere críticas laudatórias escritas logo após eventos. Apresenta opinião do renomado compositor Ruy Coelho. Duarte Santos enriquece sua publicação consultando médico psiquiatra e espiritualista, respectivamente. Contradiz o depoimento do psiquiatra, que afirma: “E toda gente pergunta: quanto tempo durará esta luz deslumbrante?”. Desfila um sem número de escritores, cientistas, músicos, a tentar argumentação às suas teorias. Chega à explanar a respeito do perispírito para consubstanciar gênio, memória e outras mais áreas polêmicas. Até César Lombroso é mencionado, ao afirmar que “o gênio é degenerescência mental” e que, portanto, esses extraordinários seres não devem ter saúde perfeita, devem ser anormais. Duarte Santos expõe longa lista dos chamados gênios em todas as áreas imagináveis. Cada um em sua categoria de genialidade, extravagância, inspiração e ação. Todo o discurso, a fim de tentar explicar o menino prodígio Pierino Gamba. O autor traz curiosa diferença entre talento e gênio, a partir de observação de Hagen, para o qual o gênio é original. Escreve Duarte Santos: “A inspiração talentosa repete o fato registrado; a do gênio dá origem ao fato inédito. Não repete; inventa ou cria. O talento visa a um objetivo que se esconde a cada passo; o gênio visa a um objetivo inteiramente invisível”. Nesses quase setenta anos passados, por quantos questionamentos passou a palavra gênio?

Quanto à memória, o autor cita a entrevista que o pai do menino maestro concedeu ao “Diário de Notícias”, de Lisboa, assistida por Pierino, que se lembraria até do número de palavras repetidas por seu progenitor, tentando mostrar a evidência da memória prodigiosa voltada às obras orquestrais, pois o garoto regia sem partituras. Argumentação para a teoria a envolver vidas anteriores,  entenda-se reencarnação proposta por algumas religiões e seitas. Escreve que sua convicção “prova que o cérebro não é sede da memória e que esta se encontra nos recessos do perispírito, esse mediador plástico que modela os corpos e sobrevive às alterações orgânicas. Mais prova também que não há uma vida, mas muitas vidas encadeadas entre si, como elos de infinita corrente, os quais dão carácter de veracidade à lei de causa e efeito que rege o mundo e o mundo moral”.

Duarte Santos, nessa intenção absoluta de explicar o menino prodígio que foi Pierino, extrapola para a metafísica e expõe suas “certezas” a respeito de Vida e Além. É nítida a vontade de explicar o menino maestro como sendo resultado de reencarnação.

A leitura do livro possibilita entender o impacto que pode causar a aparição, no caso, de um ser com dons acima do natural. O fascínio é nítido. Evidencia igualmente que a pouca circulação da comunicação, até as décadas apontadas, ventilava raros miúdos prodígios, não apenas na área musical. Eles continuam a existir, agora às toneladas, mormente vindos do Extremo-Oriente. O YouTube aí está a apresentar inúmeras crianças superdotadas, assim como outras consideradas prodígios apenas pelo círculo familiar. No primeiro caso, há interesse em vê-las, apesar de sempre se saber que se está a ouvir o talento, é lógico, mas fundamentalmente a interpretação transmitida pelo professor e assimilada pela criança. Quanto ao segundo caso, verdadeiras aberrações inundam o YouTube.

Isidoro Duarte Santos, leigo em música, espiritualista convicto, ficou seduzido e seu livro é um pleno testemunho dessa inteira submissão à regência do miúdo Pierino Gamba. Prosta-se ao impacto fulminante que sofreu. Seria correto entender que parte considerável dos meninos prodígios acaba sucumbindo a cobranças futuras, quase impossíveis de serem satisfeitas para um tipo de público “leigo e cativo”. O psiquiatra Barahona Fernandes, mencionado por Duarte Santos, afirma, receoso sobre o futuro desses “meteoros”: “Perecerá de esgotamento, estiolará à força de explorado em ininterruptas exibições, degenerará em banalidade com a maturação da idade?”. Como bem afirmava minha mestra, a lendária pianista e professora Marguerite Long, “nada resiste ao trabalho”. Compreenda-se que disciplina, estudo aprofundado, concentração e “desligamento” de um passado pleno de incenso, que poderia tê-lo feito sucumbir, levou Piero Gamba, no futuro, a ser reconhecido como regente de reais méritos na Europa, Austrália e Américas, tendo gravado com Luciano Pavarotti e o violinista Ruggiero Ricci, entre tantos mais. Prossegue o desempenho de carreira como regente e professor de direção orquestral. Reside atualmente nos Estados Unidos.

Levas de prodígios continuarão a aparecer. Contudo, o carisma da criança prodígio teria desaparecido com o advento da internet, pois o YouTube tudo aceita. A quantidade banaliza, dificulta a seleção e o superdotado em tenra infância é admirado, mas continuaria ainda a ser reverenciado como outrora? Dos milhares de prodígios que surgem no Extremo Oriente, apenas uma quantidade pequena deles, anos após, já basta para inundar o Ocidente em Concursos Internacionais de Instrumento. Destacar-se-ão uns poucos. A neblina ocultará aqueles que, pelos mais variados motivos, tiveram de ficar pelo caminho. Razões estimulantes como a cultura abrangente, a orientação musical segura e o fundamental apoio da família, que deveria sempre buscar o burilamento do talento em direção à maturidade, poderão conduzir a criança prodígio, livre das amarras, à plena realização.

This post is about a book I’ve just finished reading about Pierino Gamba, the child-prodigy who has conducted great orchestras at a very early age. It was written in 1946 by Isidoro Duarte Santos, under the impact of the concerts starred by Pierino, then just a child. The author conceives curious theories to explain Pierino’s mastery, which he sees as something supernatural. As an adult, the conductor became Piero Gamba, who built a solid reputation as conductor and teacher, but away from the spotlight. I believe today, with the web jam-packed with young geniuses showcasing their talents in different fields, a wonder like Pierino Gamba would hardly achieve special attention in the media.