A pianista Eudóxia de Barros e a revelação por inteiro
A carreira de pianista também é muito difícil.
Há tanta dedicação! Se não houvesse essa vocação,
esse talento, essa vontade, nada seria compensador.
A recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa:
porque, material, certamente não é!
A pessoa se dedica tanto!
É uma experiência espiritual que eleva a pessoa.
A pessoa penetra naquela música,
e fica alheia do mundo por aquele período.
Acaba levitando dentro daquela música.
Maestro Henrique Morelenbaum
O que realmente importa em qualquer biografia
é o que a pessoa sente e não aquilo que fez.
Glenn Gould
Dentro das leituras existentes na ampla área musical destaca-se a biografia. Pode ser escrita pelo autor ou por outro, no caso, através de depoimentos ou material documental. Não poucas vezes a biografia adquire a roupagem de romance e todo o cuidado deve ser tomado para que equívocos não ganhem status de verdade.
Gosto do gênero biografia de músicos, mormente dos pianistas. Jamais as narrativas têm semelhanças, graças às categorias diferenciadas na abordagem. Wilhelm Kempff (1895-1991) narra com sensibilidade seus anos de juventude e cativa pela intensa visão espiritual (“Cette Note Grave – les années d’aprentissage d’un musicien”, Paris, Plon, 1955); Arthur Schnabel (1882-1951) aborda aspectos fundamentais relativos à interpretação e ao período em que viveu (“My life and music”, New York, Dover, 1988); Vladimir Horowitz (1903-1989) explora os muitos aspectos da carreira, comenta sobre pianistas coetâneos, evidencia suas preferências repertoriais (“Evenings with Horowitz” – entrevistas concedidas a David Dubal, New York, Citadel, 1994); Claudio Arrau (1903-1991) discorre sobre sua formação musical, carreira, repertório e, num anexo, tem longo e essencial texto em que aborda o intérprete frente à psicanálise (“Arrau Parle”, – entrevistas concedidas a Joseph Horowitz, Paris, Gallimard, 1985); Heinrich Neuhaus (1888-1964) realiza verdadeira explanação da sua metodologia de ensino, exemplificando processos técnicos, sem abandonar dados concernentes à sua trajetória de pianista e professor (“L’Art du Piano”, Tours, Van de Velde, 1971); György Czifra (1921-1994) e Zhu Xiao Mei (1949- ) viveram experiências traumáticas. Aquele, prisioneiro dos nazistas e, após, de soviéticos durante a segunda grande guerra. Desde a infância, a trajetória pianística gloriosa teria lances dramáticos e, como toda a técnica pianística e a interpretação tiveram a mais absoluta naturalidade, pouco se refere a elas (“Des canons et des fleurs”, Paris, Laffont, 1977). Zhu Xiao Mei viveu a Revolução Cultural na China e descreve com agudeza os “campos de reeducação” onde esteve detida e sua prática digital-pianística sem piano, a visualização de fuzilamentos de seus mestres e todo o longo caminho até chegar a Paris e desenvolver carreira sólida (“La Rivière et son secret”, Paris, Laffont, 2007); Arthur Rubinstein (1887-1982), nas autobiografias “Les jours de ma jeunesse”, de 1973, e “Grand est la vie”, de 1980 (Paris, Laffont) e Magdalena Tagliaferro (1893-1986) em “Quase tudo” (Rio de Janeiro, 1979) permanecem preferencialmente nas exuberantes trajetórias, mas em abordagens nas quais as apresentações e o convívio social preponderam; João de Souza Lima (1898-1982) narra sua rica trajetória como pianista – dileto aluno de Marguerite Long -, maestro, professor e compositor (“Moto Perpétuo”, São Paulo, Ibrasa, 1982); João Carlos Martins (1940- ) esclarece seu envolvimento com a integral de J.S.Bach para teclado e os vários processos pianísticos criados, mercê de infortúnios que sofreu com as mãos (“Conversas com João Carlos Martins” – entrevistas concedidas a David Dubal, São Paulo, Green Forest do Brasil, 1999); Guiomar Novaes (1895-1979) apresenta-se em estudo multidirecionado onde não faltam depoimentos da pianista (“Uma arrebatadora história de amor” por Maria Stella Orsini, São Paulo, Editora C.I, 1992); Glenn Gould (1932-1982) pormenoriza determinação consciente em suas interpretações, tantas delas polêmicas (“Glenn Gould – Uma vida e variações”, contém inúmeros depoimentos colhidos por Otto Friedrich, Rio de Janeiro, Record, 2000); Daniel Barenboim (1942- ), pianista, pensador e maestro, tem na polivalência uma de suas marcas essenciais, evidentes em duas autobiografias (“La musique éveille le temps” e “La musique est un tout”, Paris, Fayard, 2000 e 2008, respectivamente); Marguerite Long (1874-1966), em seus livros sobre três compositores franceses fulcrais, Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, expõe não apenas o convívio com os notáveis músicos, mas aspectos interpretativos deles aprendidos (“Au piano avec Gabriel Fauré”, Paris, Julliard, 1963; “Au piano avec Claude Debussy”, Paris, Julliard, 1960; “Au piano avec Maurice Ravel”, Paris Julliard, 1971). Considere-se que as três obras de grande importância, mas escritas bem tardiamente contêm, por vezes, fatos não comprovados. Seria Janine Weil que, ao escrever uma biografia da legendária pianista e professora, levaria ao leitor sua trajetória de maneira mais totalizante (“Marguerite Long, une vie fascinante, Paris, Julliard, 1969).
Essa breve panorâmica apreende fatores essenciais para a compreensão do pianista consagrado e do longo caminho percorrido. Cada um aborda, à sua maneira, as causas que o conduziram ao reconhecimento planetário. Contudo, processos do estudo pianístico ficam por vezes nebulosos, pois estaria mais em evidência o todo do aprimoramento.
Em “Valeu a Pena? – Conversando com Eudóxia de Barros”, entrevistas formuladas e colhidas por Rosângela Paciello Pupo (Brasília, Musimed, 2016), a pianista Eudóxia de Barros narra sua trajetória desde a infância e sua vocação insofismável, demonstrada desde os tenros anos, é largamente exposta. Os estudos no Brasil, em França, nos Estados Unidos e na Alemanha deram-lhe base sólida para a carreira escolhida. Apresentou-se com recepção crítica elogiosa, em muitos países europeus, nos Estados Unidos e na América Latina. Carreira consolidada, pois. Contudo seria, como afirma, a sua ligação umbilical ao Brasil que determinaria durante décadas sua afirmação como pianista pátria, nitidamente ratificada. Caminho escolhido, importaria a Eudóxia expor o seu envolvimento com a Música e, ainda mais, com o piano. “Valeu a Pena?” se diferencia das biografias apontadas pela visão “regional” da pianista, voltada preferencialmente para cenário no Brasil, país que apresenta severas deficiências relativas à cultura musical erudita ou clássica. Mostra-se corajosa nesse trabalho dignificante ao levar música de qualidade aos rincões mais afastados do nosso território.
Largamente comenta todos os processos de sustentação nessa dualidade imprescindível para o intérprete, a prática e a apresentação pública. Não sem razão, no raciocínio de Eudóxia a palavra “estudo”, como necessidade imperiosa, está presente em todos os capítulos. Seria ela a chave mestra, verdadeira fixação, que levaria a pianista a se manter ativa durante tantos decênios. Disciplina espartana quanto ao estudo, preparação para as apresentações, preferência repertorial, cotidiano voltado à música, mas também ao vestuário, às relações humanas, à saúde, ao saudoso marido, o compositor Osvaldo Lacerda, e a um verdadeiro “guru”, que ainda ouve seus programas montados para apresentações a cada ano, o maestro Henrique Morelenbaum, reiteradas vezes são mencionados. Rosângela Paciello Pupo, de maneira extremamente organizada, soube orientar as “entrevistas” para que nada pudesse ficar à margem.
Consideraria “Valeu a Pena?” um livro testemunhal de ordem prática. Quantas não são as vezes que Eudóxia de Barros se expõe de maneira confidencial? Dessa assertiva vem parte do interesse do livro. Revelar-se por inteiro, a não ocultar ao leitor pormenores “laboratoriais” rigorosamente íntimos, demonstra certezas, coragem e até possibilita armadilhas. Há retornos constantes a verdadeiros “dogmas” relacionados ao mencionado estudo diário inflexível, a obedecer regras e de preferência com horários fixos; ao estudo permanente com as mãos separadas; à memorização; à colocação de dedilhados em toda a partitura, mais ainda, em cada figura da trama musical; à prática diária da técnica pura; à preparação no dia de recitais e concertos, dela fazendo parte o estudo prolongado a anteceder a apresentação; à carreira como eixo paradigmático primordial em sua vida. Exaustivamente Eudóxia responde às perguntas inteligentes de Rosângela e, em determinadas reflexões sobre música e interpretação, demonstra até franqueza constrangedora. O leitor poderia se perguntar se estaria aí uma falha. Diria que temos em seus depoimentos a mais absoluta sinceridade, o que é raríssimo entre os intérpretes em suas biografias. Essa sinceridade é porosa, faz jorrar em cada página a descoberta de Eudóxia de Barros por inteiro e não seria essa autenticidade um dos aspectos a tornar “Valeu a Pena?” um livro de forte interesse? A ausência desse desnudamento não faria falta em tantas biografias, entre as quais algumas das acima citadas?
Sob outra égide, basicamente inexiste nas biografias mencionadas o autoelogio. Por questões éticas, de modéstia – ou ausência dela -, de foro íntimo, dificilmente um intérprete em texto faz referência às suas qualidades. Eudóxia, não como vanglória, frise-se, mas como necessidade de expor suas virtudes, revela essa franqueza que pode ser apreendida como vontade de transmitir aos seus incontáveis ouvintes qualidades que eles já tinham captado e que o documental escrito apenas solidifica em suas mentes. Proliferam os superlativos voltados à excelência das oitavas, da velocidade, da compreensão e do fraseado, da memória. Todas essas exaltações transcorrem normalmente e Eudóxia transmite o que ela sente, entende e assiste ao verificar suas facilidades frente ao teclado. Quem teria essa coragem? Quanto à memória, não poucas vezes ressalta ser inadmissível a interpretação tendo-se à frente a partitura em recital solo. Nesse aspecto, entendo o conceito passível de interpretação. Nem todos tem a memória de Eudóxia e, como narra em “Valeu a Pena?”, há todo um científico trabalho para se decorar uma obra. Contudo, tem-se de ver caso a caso. O grande Sviatoslav Richter (1915-1997) confessaria que, nas últimas décadas da vida, apresentava-se com partitura à frente. Assim procedeu tardiamente Roberto Szidon (1941-2011), dessa maneira habitualmente desempenha brilhante carreira o pianista português Arthur Pizarro (1968- ). Certamente todos tiveram ou têm as obras absolutamente digeridas e a presença da partitura serve certamente como um conforto, a fim de que nada de anormal possa ocorrer. Apenas isso. Sabe-se que ela lá está. Assisti a um sem número de excelentes pianistas na Bélgica interpretando ou integrais ou recitais com obras diversas com a partitura como ajuda. Pessoalmente, mormente nestes últimos anos, assim procedo. O grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro já afirmava que “o tempo é insubornável”.
Uma das qualidades inalienáveis de Eudóxia, exposta com insistência, é o culto à música brasileira. Revela inquestionável missão, cruzada sem trégua a que se dedica desde jovem, não apenas a cultuar compositores consagrados, como Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1986), Camargo Guarnieri (1907-1993) e seu discípulo e marido da pianista, Osvaldo Lacerda (1927-2011), mas também autores que eram desconhecidos do grande público. Dedicou-se igualmente ao repertório pátrio semi-erudito, clássico-ligeiro na visão de seu até hoje conselheiro musical, o Maestro Henrique Morelenbaum. Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935) tiveram suas obras estudadas, interpretadas e propagadas pelos mais distantes rincões do país. Contam-se às centenas as cidades brasileiras visitadas pela pianista nessa hercúlea tarefa. Do clássico-ligeiro ao popular tem-se um passo e Eudóxia demonstraria em sua carreira intrínseca intimidade com a música de Zequinha de Abreu (1880-1935) ou com grupos que praticam o chôro, os denominados Chorões. Polivalência relativa à música brasileira, do erudito ao popular.
Não tendo trilhado carreira acadêmica, Eudóxia faz críticas ao trabalho dentro da universidade e suas obrigações. Crê que a sobrecarga intramuros impeça o desenvolvimento de uma carreira como a que empreendeu.
Um longo capítulo apresenta situações hilariantes pelas quais a pianista passou ao longo da carreira. Tem muita graça, realmente diverte o leitor.
Apêndices apresentam o enorme repertório de Eudóxia de Barros. Verifica-se que, após perpassar parcela das composições sacralizadas e comuns a todos os pianistas, mais e mais ela revelou esse notável trabalho voltado aos compositores brasileiros. Um mérito indiscutível. Também sua larga discografia, críticas recebidas no Brasil e no Exterior e uma instigante entrevista de seu conselheiro musical – Maestro Henrique Morelenbaum – que descreve o perfil pianístico de Eudóxia, complementam o copioso livro. Serve o depoimento do ilustre músico para evidenciar esse entendimento profícuo estabelecido entre ambos.
“Valeu a Pena?” é obra obrigatória na biblioteca de músicos e leigos, mormente dos estudantes que terão em mãos um verdadeiro vade mecum voltado ao cotidiano pianístico, do estudo à apresentação pública, a ratificar in adendo, com letras maiúsculas, a imperiosa dedicação e disciplina para que objetivos sejam atingidos. Essas palavras apenas corroboram o caminho meritório e consagrado da pianista Eudóxia de Barros.
Today’s post addresses the book “Valeu a Pena?”, a series of conversations between the Brazilian pianist Eudóxia de Barros and journalist Rosângela Paciello Pupo. With honesty and candor, Eudóxia talks about a lifetime devoted to music: the discipline required for her daily piano practice, performance preparation routines, the importance of playing from memory, choice of repertoire, recordings, her option for the promotion of Brazilian composers since the beginning of her career. In my opinion, a mandatory reading for music lovers and in special for students, since it makes clear that nothing can be accomplished without practice, discipline and hard work.