Chapecó-Medellín, amálgama da solidariedade

Imortais somos porque o tempo é consubstancial do eterno.
Agostinho da Silva

Deixei que os dias escoassem. Assisti aos inúmeros noticiários e às pungentes homenagens prestadas aos 71 mortos na tragédia aérea na Colômbia, que vitimou não apenas a equipe de futebol da Chapecoense, mas também sua comissão técnica, dirigentes da agremiação, jornalistas, convidados e tripulação. Como milhões de brasileiros e colombianos, fui tomado pela emoção. O poeta Luiz Guimarães Junior (1844-1898), no famoso soneto “Visita à casa paterna”, já apregoava “Resistir quem há-de?”.  O desaparecimento repentino  de toda uma valorosa equipe de futebol impactou o mundo. São poucos os acidentes aéreos a vitimar um time esportivo inteiro. Através das décadas, contam-se nos dedos. A comoção planetária, graças à força das comunicações instantâneas, dimensionou ainda mais o ocorrido, pois tudo era apresentado hic et nunc. A fatalidade que se abateu sobre a equipe da  cidade de Chapecó (210.000 habitantes) foi pranteada em todos os países que praticam o futebol. Fundada em 1973, a Associação Chapecoense cresceu com disciplina, vontade, dedicação e fé em seus propósitos. Da última série do Campeonato Brasileiro (D), chegaria à série B e, ao adentrar o seleto grupo da série A, mantém-se com galhardia desde 2013, a melhorar a cada ano seu posicionamento. É fato que a população inteira da cidade torce com entusiasmo pelo time, que tem levado a admiração a todo o Brasil, mercê das façanhas que se acumulam. A campanha nesta última Copa Sul Americana de Futebol demonstrou que os bravos jogadores não se intimidaram diante de equipes do continente bem mais credenciadas. O time granjeou respeito. Foi derrotando adversários potencialmente mais fortes e se fortalecendo moralmente. Faltavam-lhe dois jogos para a possível grande conquista. O adversário, Atlético Nacional de Medellín, atual campeão da Taça Libertadores da América e, possivelmente, o melhor time do momento na América do Sul, deveria ser um contendor a levar maiores chances de vitória, sem quaisquer garantias porém, pois a Chapecoense sempre lutou com um imenso destemor, além de ter sido orientada por um experiente técnico, Caio Junior, igualmente falecido no acidente.

A final, que seria disputada na cidade de Medellín (circa 2.200.000 habitantes), na Colômbia, tinha um significado especial para os habitantes da aprazível Chapecó, pois pela primeira vez a Chapecoense disputaria a final de um campeonato internacional. Quis o destino que essa probabilidade fosse adiada e novamente a agremiação terá de travar árduas batalhas em campo para a difícil escalada em busca do nível dos sonhos.

Acompanhei toda a homenagem que o Clube Atlético Nacional de Medellín prestou à Chapecoense. Preparada a manifestação no Estádio Atanasio Girardot, da cidade colombiana, em pouco mais de 24 horas, o que se viu foi algo único e extraordinário. Àquele que desconhecesse o tributo prestado, ficaria a impressão de que tudo fora preparado meses antes. Manifestação espontânea, organizadíssima. Tendo assistido ao longo das décadas a inúmeras aberturas de Olimpíadas ou Copas do Mundo de Futebol, jamais vi e senti, no gênero, emoção maior. Cerca de meia hora após o início, comovido, disse à Regina que estávamos a ver o ineditismo a toda prova, colocando nossa sensibilidade no limite do possível. A cerimônia transcorria e autoridades se revezavam nos pronunciamentos, intermediados por desfile fúnebre da Guarda Nacional, apresentação da Orquestra de Câmara de Medellín, presença dos jogadores do Atlético Nacional, da Comissão Técnica e dos dirigentes, em profunda homenagem póstuma. Balões brancos voaram às alturas após serem soltos por crianças, paulatinamente, a lembrar cada jogador, comissão técnica, jornalistas, dirigentes e tripulação, anunciados pela linda e sensível apresentadora. Convidado, o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, José Serra, muito aplaudido, leu seu breve discurso, interrompendo-o várias vezes, tomado pela mais intensa emoção. Falando em espanhol – esteve asilado no Chile durante a ditadura militar -, ao final disse com a voz embargada que jamais em sua vida pública presenciara algo igual. O Ministro jamais poderia pensar que, durante uns bons minutos, os 40.000 presentes gritariam “Dá-lhe Chape”. Realmente, algo indescritível!!!   A Chapecoense e o Brasil estarão eternamente gratos ao país limítrofe por esse ato de solidariedade.

O futebol continua a ser uma das paixões de grande parte da humanidade. Algumas das principais equipes da Europa têm adeptos em todo o planeta, como Real Madri, Barcelona, PSG e Manchester United, entre outros. Um fabuloso esquema comercial, que envolve ingressos para os eventos, televisionamento, material esportivo e tantos outros itens, faz com que enorme cadeia ligada, por vezes, a estranhos propósitos, macule o verdadeiro ideal em torno da bola. As manifestações globais a envolver uma desconhecida equipe em termos mundiais, a Chapecoense, evidenciaram que, dentro da engrenagem diretiva ligada ao futebol, algo voltado à esperança e à solidariedade ainda dá mostras de existir.

Fiquemos apenas com esse lado positivo. A tragédia coletiva, a extrair de cada ser o sentimento humanístico que deveria guiá-lo em todos os atos da existência. As tragédias individuais cotidianas passam sempre ao largo. São tantas e servem apenas para vinhetas de noticiário, logo esquecidas. Chapecó e seu povo cresceram neste Brasil tão pleno de violência diária, de incompreensão e desigualdades. Oxalá a partir desse terrível acidente e da grande e inesquecível solidariedade do povo colombiano, que esteve sempre presente, possamos refletir mais sobre nossa extrema fragilidade frente ao imponderável e, no âmbito do futebol, entender o time adversário não como um inimigo, combatente a ser esmagado, mas como um oponente que se apresenta com os mesmos desideratos de vitória. Toda a irmanação vivida durante a semana, até que os corpos do infortúnio descessem às sepulturas, tem de ser uma luz de esperança para o futebol, ainda repleto dessas torcidas organizadas, chaga absoluta. Só poderíamos almejar que o exemplo vindo do amálgama das lágrimas e da chuva torrencial, no longo evento na Arena Condá, em Chapecó, durante as cerimônias fúnebres, jamais seja esquecido e que ilumine como um farol, mesmo com luz tênue, o caminho do entendimento. É necessário acreditar, ainda.

On the crash of the chartered flight near Medellín (Colombia) in which almost all players and coaching staff of the Chapecoense soccer team from Brazil, newsmen and crew members have been killed, the touching and extraordinary tribute to the victims held in Medellín and the display of solidarity among the sporting community in Brazil and throughout the world.