Experiência válida
Tudo o que é interessante na vida deve ser sempre por opção.
Não haver nada obrigado definido,
porque é muito engraçado nós termos até o divertimento por obrigatório.
Agostinho da Silva
(Entrevista)
Maury Buchala foi aluno da Universidade de São Paulo na década de 1980, onde esteve sob minha orientação durante os quatro anos do curso de piano, completado de maneira brilhante. Sua vocação não se destinava à vida acadêmica. Quando me pediu aconselhamento, logo após a conclusão do curso, recomendei-lhe Paris, não só pela tradição lá existente, consolidada através dos séculos, como também pelas relações que mantenho até hoje com músicos referenciais da cidade e do país. Maury foi e ficou. O meu desiderato como professor uspiano estruturou-se sempre na formação do músico, em primeiro lugar, e do pianista, a depender de inúmeros fatores.
Vivendo em Paris há quase 30 anos, Maury Buchala desempenha muito bem várias atividades musicais. A formação pianística foi-lhe essencial, pois se graduou com mérito no curso de piano, seu instrumento eleito. Na França, inicialmente estudou com minha dileta amiga e muito boa pianista Odile Robert, mas após quis singrar outros rumos: composição, regência, projetos musicais. Na composição teve em Roger Tessier, fundador do Ensemble l’Itinéraire, um mestre relevante. Saliente-se a abertura que teria no âmbito de sua projeção como compositor e regente quando sob os sólidos aconselhamentos do húngaro Peter Eötvös, que lhe abriria as portas para a atividade como regente, que exerce em vários países da Europa. Como compositor já tem criações de destaque e em seu CD, lançado pelo SESC (Serviço Social do Comércio), alguns gêneros são abordados. O CD foi saudado em França e no Brasil com entusiasmo.
Clique no link para ouvir Maury Buchala comentando suas composições presentes no CD
Estou a me lembrar de uma de minhas visitas a Paris para atividades musicais e de um longo passeio que fizemos pelo Jardin des Tuileries, décadas atrás. Ficou clara para mim a determinação de Maury e também a certeza de que seu destino deveria ser radioso. Atualmente suas visitas ao Brasil são mais frequentes, mercê de atividades ligadas ao SESC em seus projetos culturais. Desenvolve um belo trabalho, que resulta na presença da música erudita junto aos frequentadores da relevante entidade social.
No domingo, dia 30 de Julho, convidou-me para uma sua apresentação no SESC Campo Limpo, a reger a orquestra com base na de Americana e com músicos contratados de outros conjuntos do Estado. Compareci. Não conhecendo a região, para lá não fui dirigindo. Peguei o ônibus para o Terminal Capelinha, a seguir orientação para descer um ponto antes do término. Final da tarde de um domingo gélido. Do Brooklin até a parada em frente ao Shopping Campo Limpo, quarenta minutos. O trajeto, a partir da ponte sobre a aberração denominada Rio Pinheiros, logo após a Av. João Dias, era-me totalmente desconhecido. A cada parada entravam mais passageiros, muitos deles com seus celulares ligados. Alguns, sem a menor discrição, falavam em voz alta nesse monólogo “teatral” para a “audiência” que viajava no veículo. No conjunto, a lembrar um galinheiro. Sotaques regionais diferenciados, assuntos os mais diversos. Preponderando entre as vozes, a de uma cidadã a contar seus males e, logo após, a chorar compulsivamente. Ninguém lhe deu atenção, preocupados com outras conversas. Enfim, ao chegar na parada a anteceder o terminal atravessei inteiramente o Shopping Campo Limpo, gigantesco, mas apinhado, e cheguei em avenida que me levava até o destino proposto.
Esportistas amadores praticavam várias modalidades nas áreas descobertas. Cheguei ao espaço onde a apresentação se daria, encontrei Maury. Sem paredes, cortinas de plástico separavam o local do exterior, o que possibilitava a entrada de sons vindos das quadras esportivas. Contudo, o concerto foi oferecido. O público, constituído por não frequentadores dos concertos oficiais, permaneceu em silêncio durante a apresentação do Concerto nº 3 para trompa e orquestra de Mozart, com Adriano Bueno numa apresentação adequada, da abertura Egmont e da 8ª Sinfonia de Beethoven. No final de cada obra vinham os aplausos entusiastas, calorosos. Público atencioso. Alguns jamais ouviram um Concerto de música clássica ou erudita. Chamou-me a atenção o resultado de uma recomendação de Maury Buchala. Observou de maneira clara que na Sinfonia de Beethoven os ouvintes não deveriam aplaudir entre os andamentos, mas que, se o fizessem, não se importaria. Ninguém aplaudiu durante a apresentação da Sinfonia!!! Como estava sentado entre duas senhoras idosas e de origem bem modesta, causou-me forte impacto a atenção quase que religiosa com que ouviam aquela música completamente desconhecida para elas. Não apenas minhas vizinhas, mas todo o entorno assim procedia. Nenhuma conversa paralela, nenhum saquinho de papel sendo aberto. Os ruídos ficaram unicamente por conta das atividades esportivas.
Meu irmão João Carlos já havia comentado essa atenção de público não habitual, tampouco sofisticado, nessas apresentações que realiza pelo país, verdadeira peregrinação. Apesar de não haver termo de comparação com a quantidade humana incomensurável que presencia eventos de roqueiros vindos d’além mar, trios elétricos baianos e sertanejos descaracterizados que se apresentam em decibéis infernais, potencializando a inexistência qualitativa, o silêncio desse público inusitado pode ser motivo de estudos mais aprofundados. Não poderia residir nesse ato uma retomada de consciência daqueles promotores culturais da música erudita que só pensam nas elites? Quanto aos agentes que promovem os eventos massificados e de baixíssima qualidade musical, com amplo apoio de todas as mídias, nada a fazer.
Maury Buchala está a realizar um belo trabalho. A ponte Paris-São Paulo será benéfica para o SESC e para as audiências diferenciadas da entidade. Comunicando-se com desenvoltura, regendo com muita propriedade, sem exageros, mas com acurada visão estilística, transmitiu suas intenções para a orquestra, que se portou com muita dignidade. Maury Buchala cumpre parte de sua missão como músico inteligente, preparado e multifacetado. O velho professor aplaude.
Maury Buchala was my piano student at Universidade de São Paulo back in the eighties. After getting his degree with excellence, he expressed the wish of studying abroad. Following my advice, Maury went to Paris — where he has been living ever since —, becoming conductor and composer. As a conductor, he performs regularly in Europe and, as a composer, had already one CD recorded in France and released in Brazil, where he performs regularly in cultural events sponsored by SESC (Serviço Social do Comércio). Last July I attended one of his performances conducting works by Mozart and Beethoven. At the end the orchestra won warm applause from an audience not used to classical music. And also from me! Maury Buchala’s musical achievements have filled with pride and emotion his older teacher.