Navegando Posts publicados em setembro, 2017

Generosidade dos leitores

Por mais longe que o espírito alcance,
não vai tão longe quanto o coração.
Provérbio chinês

Comoveram-me as inúmeras mensagens recebidas. Já me referi bem anteriormente às palavras de D. Henrique Golland Trindade, reverendíssimo arcebispo de Botucatu, meu padrinho de crisma, que a uma pergunta que lhe formulei nos anos 1950 a respeito da vaidade, respondeu-me sabiamente: “O santo orgulho é louvável”. Creio que metas periódicas vencidas podem trazer essa sensação, que deve ser entendida naturalmente. Minhas constantes surdas alegrias têm esse componente proferido pelo saudoso prelado.

Bem acima da média foram as mensagens. Arquivo-as carinhosamente. As palavras lisonjeiras estão presentes e, apesar de escrúpulos naturais quanto ao teor dos elogios, servem de força motriz a guiar-me na música e na escrita. Separei onze e-mails, que compartilho com os leitores.

Ricardo Tacuchian, compositor e membro da Academia Brasileira de Música, enviou-me a mensagem: “A espantosa cifra que você alcançou de 1 milhão de acessos a seu blog, sempre dedicado a uma apaixonada militância pelos altos valores da cultura, da arte e da literatura, é uma prova de que ainda existe, entre as pessoas, um potencial, ainda que silencioso, de preservação do que há de mais elevado em nossa tradição. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, o que está escandalosamente decantado em prosa e verso na mídia comercial e seu incondicional espaço à cultura de massa não exclui os anseios de uma outra força de pensamento que não aparece no dia a dia, mas que está latente, consciente ou inconscientemente, na alma de uma parcela significativa da população. Cabe a artistas e intelectuais como você manter viva a fé e os valores que não morreram, mas apenas estão amortecidos. Sua luta é contra a mediocridade, sem nunca atacá-la explicitamente, mas mostrando o outro lado do mundo criativo e solidário em que vivemos. Seu empenho é preservar o elo que liga o passado com novas conquistas do espírito do presente e as expectativas do futuro. Se este elo se rompe a humanidade estará definitivamente perdida. Seu entusiasmo é dividir com os leitores sua rica experiência, conquistada através dos contatos com figuras exponenciais, com os livros que você leu, com as viagens que realizou e pela música que você tirou do esquecimento e nos proporcionou conhecê-la. Você está sempre correndo, objetiva e metaforicamente falando. Com isso aumenta o seu fôlego e o de seus leitores. Precisamos, sim, preservar nossa respiração para enriquecer nosso pensamento e nossa alma. É exatamente o que você faz na vida. Você tem razão: ‘respirar não pede férias’. Assim, até o texto da próxima semana”.

Idalete Giga, gregorianista e Diretora do Centro Ward de Lisboa, encaminhou o e-mail: “Em primeiro lugar quero felicitá-lo pelo seu Blog ter atingido um milhão de acessos em dez anos e meio! Um milhão é muito significativo, sobretudo tratando-se de um Blog que não aborda trivialidades, banalidades que são o comum hoje em dia, não só na Net, mas nos meios de comunicação social em geral. Felizmente, há cada vez mais leitores a procurar outros universos que rejeitam a mediocridade, o escândalo político e/ou sexual  e outras misérias humanas.

Que as suas ideias surjam como límpidas cascatas e que as musas nunca o abandonem para que possa continuar a escrever, sem medos, sem preconceitos, sem o insuportável politicamente correto, os variados e ricos temas que desenvolve semanalmente no seu blog!

José Maria Pedrosa Cardoso, professor da Universidade de Coimbra e musicólogo, enviou a mensagem: “Bravo… bravíssimo! Para ti, querido Amigo… e para a tua comprometida equipa! Admirável capacidade, invejável aplicação, exemplar trabalho. Muitos parabéns! Que possas chegar aos dois milhões, com a mesma possibilidade de admiração da nossa parte. Todos aprendemos uns dos outros, mas de ti aprendemos muito mesmo: com a tua música, que nos regala, com as tuas corridas, que aplaudimos, e com a tua escrita que nos enche as medidas. Até aos sábados todos das nossas vidas”.

Eurico Carrapatoso, compositor português e professor do Conservatório Nacional, escreveu:  Um milhão de acessos! É obra. Tanto brain storm que o meu amigo tem causado pelos quatro cantos do mundo! Invejável, o poder da tua pena, da tua mensagem. Bem hajas pela partilha de um mundo interior tão pleno de luz e de tal relevo no pensamento.
Como diria Sophia de Mello Breyner:

Tem qualquer coisa de mastro
Tem qualquer coisa de sol
Saber que existe sossega
Como no mar o farol

Há qualquer coisa de rude
Em sua beleza extrema
Como saber a crueza
Que há no dentro do poema

Tem qualquer coisa de limpo
Apetece como o sal
Espanta que seja real
Sua perfeição de Olimpo

Flávio Araújo, radialista e articulista esportivo do país, escreveu: “São seus leitores que o felicitam pela qualidade, força e lucidez do que escreve. Que o seu incentivo continue servindo de exemplo para mim e para tantos. Parabéns e obrigadíssimo”.

Marcos Leite, arquiteto e maratonista, comenta: “Parabéns pelo número alcançado!!! Com tantas porcarias enchendo as telas através da internet, seu blog é uma iguaria das mais finas a satisfazer meu apetite de textos agradáveis, cultos e elegantes. E ecléticos também, com a vantagem de eu compartilhar interesse pelos mesmos assuntos que você tão bem aborda e domina”.

Maria Izabel Ramos, nonagenária, amiga que foi de meus pais e das gerações seguintes, tem acompanhado os blogs desde 2007, repassando-os à legião de amigos: “Mais uma vez tenho a grande satisfação de enviar-lhes o sempre esperado blog do nosso amigo, pianista e escritor José Eduardo Martins, no qual estão preciosos comentários sobre sua rica correspondência virtual, que atinge 1.000.000 de acessos. Somos felizes por ser agraciados pela riqueza de seus blogs”.

Lucita Brisa, jornalista, escritora e prima de Regina, escreve: “Um milhão de abraços pelo seu primeiro milhão! E mais um, especial, pelo esmerado texto com que V. nos brindou neste blog comemorativo! Assim continue pelos próximos dez anos e meio – pelo menos!

Gildo Magalhães, professor titular da USP, escreve: “Sensacional o blog sobre seu blogar. Parabéns pelo número redondo, mas também por saber que um blog seu vale mais do que um milhão de tantos outros…. E esperamos pacientemente os dois milhões de acessos!”

Waldenyr Caldas, igualmente professor titular da USP, comenta: “estou feliz por saber que seu blog atingiu esta cifra maravilhosa de 1.000.000 de publicações!!! Acompanho desde o inicio e ja li excelentes posts que você publicou”.

François Servenière, compositor e pensador francês, partner de circa uma centena de posts, estende-se: “É uma honra fazer parte de seus colaboradores regulares. Pergunto-me sempre quais as razões pelas quais escrevo semanalmente, sempre a comentar os seus blogs. Você fala das musas, endossando palavras de meu compositor fétiche, Maurice Ravel. Realmente elas surgem quando nos colocamos à mesa para escrever. Todavia observei que é o mecanismo físico de sentar-se para escrever que faz funcionar o cérebro já predisposto a essa tarefa. O cérebro não é idiota. Ele ativa as funções necessárias solicitadas, exatamente como uma máquina. O indivíduo dá a ordem, as engrenagens começam a funcionar. Espanta-nos sempre a chegada súbita das ideias quando nos colocamos a  trabalhar, na composição como na escrita. Penso que é o reflexo pavloviano, como o que se nos apresenta na insalivação quando vemos um tablete de chocolate.

Alguns itens do seu post despertaram particularmente minha atenção:

- a regularidade diária do cappuccino e da maçã que Regina lhe traz. Digo para mim mesmo ‘que amor!’, no duplo sentido ‘que mulher amorosa’ e que ‘devoção’;

- pensei profundamente no nosso saudoso Luca Vitali, como cada vez que vejo Éthers de l’Infini. Seus sublimes desenhos acompanham doravante a minha vida através do site. Que felicidade tê-lo conhecido, se bem que num espaço temporal tão curto!

- gostei imenso das suas considerações sobre a vida: trabalho, regularidade, exercícios, esporte, atividades cerebrais, família. Logicamente nada a ver com o brilhantismo escancarado cotidianamente pela mídia para os denominados famosos. Mas atenção: o seu trabalho não visa ao imediatismo, ele é seguro e ficará. A superficialidade dos stars e suas mensagens passarão como a poeira levada pelo vento. Nós construímos árvores centenárias e sólidas arquiteturas… Pouco nos importa o número de CDs vendidos ou o número de lugares nas arenas. Conhecemos por acaso os nomes dos que estiveram a representar nos estádios na antiguidade, verdadeiros demiurgos venerados? Não. Mas os dos escritores e filósofos, sim.

Sinto-me feliz de estar em França, mas ao seu lado nestes últimos seis anos de maneira regular. Nós nos conhecemos pela internet em 2007… Verifico a data de meu primeiro e-mail… Vou retomar o fluxo de nossa correspondência no nosso dossier personnel, pois é necessário atualizá-lo. Já ultrapassamos 2.000 páginas de correspondência ininterrupta transatlântica!!!”. (Tradução: JEM)

Agradeço, de coração aberto, a todos os generosos leitores que me escreveram enviando mensagens de estímulo. Sintam-se representados através daqueles que estão presentes neste post.

Many readers congratulated me for reaching 1.000.000 page views. I selected some of the messages received for the post of this week. And once more, thanks to all my readers for stopping by.

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Comunico ao leitor que em Outubro estarei na UNIBES CULTURAL, em São Paulo, para uma série de palestras com temática inédita: “O intérprete frente à gravação”. Abordarei temas como: preparação de repertório, escolha do local ideal para a gravação, qualidade do piano e competência absoluta do engenheiro de som, após 22 anos de gravações e 23 CDs gravados na Bulgária, Portugal e principalmente na Bélgica. Faixas dos CDs serão ouvidas e fatos pertinentes relatados. As palestras (09, 16 e 23/10, das 19 às 22hs) são direcionadas para músicos, jovens intérpretes que almejam gravar e público que frequenta concertos e atividades afins. No dia, 31/10, apresentarei recital para o público em geral. No programa, obras de Johann Kuhnau, Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, François Servenière, P.I.Tchaikovsky e A.Scriabine. As inscrições poderão ser feitas através do site http://unibescultural.org.br/cursos/viva-a-cidade/interprete-frente-gravacao/710

O blog como respiração

Se a inspiração quiser aparecer, sabe perfeitamente onde há-de me encontrar.
Maurice Ravel

Temos sempre de relativizar cifras. Se considerarmos a música de concerto, clássica ou erudita, espetáculos podem lotar salas e teatros de 1.500 lugares, quiçá 2.000. Um Rock in Rio leva 100.000 pessoas ou muitíssimo mais. Neste caso, música ou associação de tantas parafernálias? A realidade, contudo, é clara. Há blogs que conseguem milhões de acessos diários. Política, esporte, frivolidades têm espaços garantidos nas mentes de legiões. Também transparente realidade.

Após dez anos e seis meses de blogs hebdomadários, que jamais tiveram interrupção, publicados sempre no quinto minuto do sábado, não posso negar estar imbuído de surda alegria. Dos 50 acessos semanais no longínquo mês de Março de 2007 aos 4.000 presentes, foi um crescer a conta-gotas que em nenhum momento alterou meu prazer de escrever. Remonta à juventude esse “instinto”, desde os textos publicados em “O Arauto” do Liceu Pasteur, onde estudava. O grande escritor e poeta Guerra Junqueiro (1850-1923) já tecera metáfora ao afirmar que escrevia “pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma simples fatalidade orgânica”. No meu modesto caso é a respiração, fatalidade orgânica que não precisa de estímulo, ela existe tão somente. A não interrupção, graças às musas que jamais me abandonaram, é decorrência da certeza de que essas figuras etéreas e inspiradoras conhecem a hora determinada onde me encontrar, de madrugada diante do computador. Valho-me de Ravel. E as musas chegam na invisibilidade de suas silhuetas decantadas em prosa e verso e grafadas desde a Antiguidade. Sinto-as presentes, pois o fluxo narrativo jorra de imediato, não sem premeditação. Respirar não pede férias.

Em mais de um blog escrevi sobre respiração e pensamento. Retorno às origens. À mente sempre surgem as ideias para o blog durante treinamentos para as corridas de rua. Vontade, determinação, disciplina, concentração, alegria… Talvez sejam muitas as outras razões. Não seria a respiração cadenciada que me remete ao ritmo e ao atavismo musical? Se o olhar e a audição captam o entorno com atenção, a mente viaja amparada pelas passadas ritmadas. Nas corridas oficiais de rua ignoro temas do blog, pois outras são as atenções, ficando alerta a todo corredor que me ultrapassa, mas também, em menor número, aos que ultrapasso. Bloqueio o nascimento das ideias. Não obstante, solitário no primeiro treino pós blog publicado, naturalmente desce um tema. Organizo-o e nele não mais penso. No treino seguinte retomo-o e estabeleço até a posição dos parágrafos na mente, momento em que uma nova configuração toma vulto. Na primeira madrugada, o post desce inteiramente sem qualquer esforço. Uma breve leitura e transmito-o à nossa vizinha e amiga, Regina Maria. Descobrirá incorreções que o jato da escrita não impede que aconteçam. Na noite seguinte, ao montá-lo com as imagens pertinentes, leio para a minha Regina. Como faz diariamente, chega serenamente enquanto digito, trazendo-me capucino durante o dia e uma maçã, noite avançada. Tem ela, muitas vezes, uma observação que me escapou. Texto publicado, a amiga e professora Jenny Aisenberg, com olhar de lince, comenta o blog semanal e, por vezes, ainda encontrará alguma incorreção. Assessorando-me pois, as musas etéreas e as presentes. O nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald, já profetizava que o pior revisor é o autor e se considerava, nessa tarefa, o pior deles. Sigo a rotina da escrita. Tem ela seus encantos. O acúmulo das décadas nos torna ainda mais rotineiros.

Preferencialmente  privilegio a Música, e aproprio-me do título do livro em homenagem ao poeta e crítico português José Gomes Ferreira (1900-1985), “Música minha antiga companheira desde os ouvidos da infância” (diário e poemas). A seguir, o cotidiano, mais pelo ato presencial, pois nada mais somos do que “observadores peregrinos”, no dizer do filósofo e escritor indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986), que tem lá suas razões ao apontar essa presença volátil do humano sobre a Terra. E vem a literatura, diria, ligação também amorosa. De Março de 2007 até o presente já foram mais de 180 livros resenhados (vide menu: Livros – Resenhas e Comentários, lista). Nesse quesito, se a música está presente, apaixona-me a literatura voltada ao desafio, às aventuras intrépidas e as narrativas de ação, mormente se o autor tiver talento. Sylvain Tesson, o andarilho francês, autonomeado vagabond (trata-se de outro conceito que não o de nossa língua), faz parte de tantos debruçamentos que me impeliram a resenhar seus livros. Portanto, o item “Impressões de Viagens”, também constante no menu, revela admiração inconteste pelas andanças no planeta, apesar de não serem as minhas revestidas de periculosidade, tampouco de intrepidez. Todavia, todas voltadas às atividades musicais, mas que sempre propiciam espaço para a observação.

Em vários blogs comemorativos mencionei a opção pela não inclusão de qualquer propaganda em meu blog. É possível que tal atitude decorra da total idiossincrasia que tenho pela sanha publicitária que desrespeita o momento do leitor, que obviamente é a leitura. Este, ao buscar um texto nos portais, é assaltado por infinidade de anúncios de toda sorte. A leitura é constantemente interrompida para que o visitante passe a deletar ao alto uma propaganda imensa, dos lados uma quantidade de outras que, em poucos segundos, são substituídas por outras mais. No centro, a reinar, um áudio qualquer precedido por outra longa publicidade. Ao ler textos na busca de noticiários ou artigos, geralmente plenos de erros gramaticais, o mouse “passeia”, a eliminar essa invasão publicitária, cujo teor sequer tem interesse. Seria esse um teste elementar para a eliminação de inimigos nesses jogos internéticos idiotizados tão em moda? Esse absoluto desrespeito tem se acelerado. Não poderia ser essa atitude, hoje “normatizada”, uma das nítidas tendências à distração do leitor, pois tudo passa a ser efêmero e a concentração se estiola. Sistematicamente perdem-se dados preciosos da Cultura: observação criteriosa, reflexão, assimilação, o gosto pela literatura cuidada e pela Música qualitativa.

Duas figuras não poderiam deixar de estar presentes nessa surda alegria, Magnus Bardela e François Servenière. Não fosse Magnus, possivelmente jamais teria a ideia de ter um blog. Já relatei várias vezes o fato de que o amigo certo dia me questionou a respeito de provável feitura de um blog. Hesitei no início, mas Magnus montou meu blog no dia 2 de Março de 2007, sem que na realidade soubesse eu de sua intenção, e me disse sorrindo: “Agora é só começar”. Ainda hoje, quando tenho algum problema técnico banal com meu blog, socorro-me junto a Magnus que, quase sempre, de sua morada soluciona essas dúvidas.  Confesso que nos meus 79 anos não mais tenho disposição para acompanhar a mutação “genética” constante da tecnologia. François Servenière, pensador e compositor de imenso talento, desde 2011 participa ativamente de meu blog. Seus comentários inteligentes, de um verdadeiro pensador, passeiam pelos mais variados temas que vão sendo publicados semanalmente. Não há uma só semana em que não me escreva, a comentar o novo blog. Quantos não foram os Ecos publicados após post que particularmente o interessou, com respostas reflexivas extraordinárias. Um autêntico partner.

Mencionaria por último Luca Vitali (1940-2013), imenso artista plástico e designer que faz parte de meu universo de afetos. Quantos não foram os posts por ele ilustrados. Sinto saudades das leituras que fazia ao meu saudoso amigo, artista absoluto que captava minha intenção e, sem que eu pedisse, um ou dois dias após me enviava um desenho singular. Almoçávamos todas as terças-feiras no mesmo lugar. Sua morte repentina, em Abril de 2013, fez-me durante alguns meses ter a sensação de que ele iria chegar para o almoço a sorrir, trazendo consigo suas ideias pictóricas destinadas a seus magníficos desenhos e telas. Luca, Servenière na França e eu formávamos um trio que cultuava as artes sem quaisquer outros interesses. Servenière e eu prosseguimos, e a concretização sonora da Série Cósmica de Luca seria traduzida na composição dos Études Cosmiques para piano, que tive a alegria de interpretar e gravar (selo francês ESOLEM, 2017).

Música, literatura e corridas preenchem meu cotidiano. Juntam-se às outras e decisivas dádivas, família e amigos. Meu profundo agradecimento ao leitor que me tem acompanhado nesse caminhar. Quantos não são aqueles que semanalmente, através do e-mail, enviam-me palavras de estímulo. Esse apoio faz bem e continuarei a escrever. Até quando…

This week my blog reached 1.000.000 visitors, leading me to reflect on the pleasure of posting an entry every week and on how proud I am of such a large following. In this post I recall the subjects that are dear to me and the friends that give me support backstage. My thanks for all who helped me reach such a milestone.

 

 


Uma entrevista reveladora

Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias,
é para te regalar e, se possível  for, comover.
Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo
e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que,
por arder, te deslumbra os sentidos.
Miguel Torga
(Prefácio à segunda edição de “Novos Contos da Montanha”)

É bem difícil a exposição por inteiro de um artista que vive sem concessões às suas convicções mais profundas. Na área da composição musical, a não concessão aos ditames da moda  pode acarretar uma série de obstáculos, a influir positiva ou negativamente na criação. Uns criam no recolhimento, a esperar que o post mortem vanglorie suas obras – lembremo-nos de Arthur Honegger, que profetizava que a primeira qualidade de um compositor é estar morto -, outros perdem o estímulo. Os que sobrevivem, com galhardia singram mares tranquilos.

Na correspondência que mantenho com o notável compositor português Eurico Carrapatoso, solicitei ao amigo a entrevista que concedera em 2014 para o flautista Paulo Ferreira, aluno da ESPROARTE – Escola Profissional de Arte de Mirandela, e que foi integrada na sua monografia de final de curso sobre vida e obra de Carrapatoso. Falara-me desse trabalho acadêmico tempos atrás, mas escrevi-lhe a solicitar a íntegra. Na entrevista, Carrapatoso revela-se por inteiro e suas convicções sobre tendências atuais são expressas sem quaisquer receios quanto à recepção pelos contrários. Recebi-a dias atrás. Pedi-lhe autorização para divulgá-la junto aos meus leitores e fui prontamente atendido: “Como tal, é um texto originado em contexto acadêmico, desvinculado, que o meu bom amigo poderá usar no todo ou em parte, consoante a sua conveniência”. Apenas como lembrete, muitas de suas posições estão próximas das reflexões, constantemente presentes no blog, expressas pelo compositor e pensador francês François Servenière. Sob outra égide, o leitor poderá degustar o belo tratamento da língua portuguesa, com a singularidade de Trás-os-Montes.

(Paulo Ferreira) Quando surgiu o seu gosto pela composição?

(Eurico Carrapatoso) Foi depois de integrar o Coral de Letras da Universidade do Porto, em 1982. Senti um forte entusiasmo pela música de Fernando Lopes-Graça que estava a ser ensaiada. Houve um dia em que me senti compelido a verter no papel uma ideia musical. Começou aí. Foi na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que senti pela primeira vez essa pulsão de inventar música. Foi aí também que, ensaiando o meu voo inicial na escrita de uma singela ideia coral, perdi a minha inocência musical.

Acha que as suas origens transmontanas influenciaram a sua carreira musical? E de que forma?

Sou de matriz rural. Nasci e cresci em Alvites. Recebi uma educação tradicional, no paradigma “Portugal velho” que meus pais tão bem me significaram. Desde cedo que esses valores de honestidade e de carácter enxuto, que são matriciais nos ritmos de vida do campo, se entranharam, acabando necessariamente por condicionar a minha própria mundividência. Por outro lado, o contacto diário com a paisagem transmontana, bela e austera ao mesmo tempo, tão bem cantada na poesia de Miguel Torga, ensinou-me os mistérios do tempo-longo, um dos valores que mais prezo, antídoto precioso com que fui vacinado em garoto e que me deixou incólume ao tempo-curto e manhoso da vida urbana em que vivo desde as minhas universidades. A minha música significa, desde logo, toda a minha aculturação nordestina (entenda-se transmontana, obs. JEM).

O curso em História teve de alguma forma influência nos temas das suas composições?

Com certeza. A nossa existência é como uma rocha sedimentar. Reconhecem-se-lhe as várias camadas. Se fizesse um corte transversal para colher uma amostra geológica da minha vida, lá estaria bem patente a camada universitária, com claros vestígios de felicidade e de vibrante entusiasmo. A História é, tanto mais, um pêndulo maravilhoso que me ensinou que há dois tempos fundamentais na acção humana: o tempo estrutural (tempo-longo) e o tempo conjuntural (tempo-curto). E ensinou-me a ter uma perspectiva desapaixonada das coisas, a pôr o açaime no modernismo feroz que está a ladrar de castigo desde os anos 50 do século XX, na estéril tentativa de apontar os caminhos da composição, cristalizados no cânone serial segundo os ditames de Darmstadt e do IRCAM. Esta música-poder, que entrou claramente num beco sem saída, e que nos é insistentemente impingida como o fio condutor da história e da estética, é, afinal, mais um maneirismo da história da música, ao qual se seguirá um período clássico cujos contornos, hoje, cada vez mais adivinhamos. Ainda a propósito do cânone serial, cristalizado em música-poder, e que nos é impingido no primeiro campeonato do circuito dos concertos, assisti recentemente a uma ópera de Luca Francesconi na Gulbenkian (“Quartett”), uma produção caríssima, realizada com todos os meios, com luxo asiático mesmo, exsudando gastos sumptuários. A música insistiu durante uma hora e meia nos lugares-comuns dos anos 50. Uma música que parou no tempo. Não diria que é uma música morta. Pior do que isso: é uma música entubada, em estado vegetativo. E foi de tal forma poderosa nos anos 50 e 60 do século XX que adquiriu um seguro de vida que a mantém nesse estado vegetativo até hoje, no 2º decénio do século XXI. Na sequência desta metáfora, o palco da Gulbenkian mais parecia uma sala de operações sofisticada de um hospital de luxo: lá estava o cirurgião-mor com os eléctrodos nas mãos a dizer “CLEAR!”, para fazer mais uma desfibrilação a esta música moribunda. E o coração lá bombou mais uma hora e meia, tendo seguido aquela produção entubada para outro auditório de luxo em Londres, no 1º campeonato do circuito arrepiante desta música-poder, qual temática transilvana.

O facto de ter nascido e visitar frequentemente Trás-os-Montes influencia as suas obras?

Sim. Volto a Trás-os-Montes, à fonte, sempre que posso. Não há água mais saborosa. Não há ar mais puro. E todas as vaidades se dissipam perante a queda a pique sobre o Douro, no Penedo Durão, ali, ao pé de Freixo de Espada à Cinta. A escala colossal do precipício reduz-nos à nossa insignificância. É uma grande lição de humildade.

Enquanto compositor, foi influenciado pelo trabalho de algum nome da música, em particular?

Sim, principalmente pelo exemplo dos compositores que estiveram mais preocupados em escrever música do que em escrever a sua história. A minha principal inspiração, como seria de esperar, vem dos compositores que foram ao arrepio da moda do seu tempo e, por isso, considerados conservadores. Citando dois, entre outros, verdadeiramente importantes: Bach, que mandou a moda da ópera italiana para a casota, e Poulenc, que respondeu à matilha serial com a sua maravilhosa música solar, das músicas mais olímpicas alguma vez escritas, zurzindo o lombo à canzoada com o ferro contundente da beleza.

As suas obras deixam-se influenciar por outras artes, como a pintura, poesia, literatura? Como é essa influência?

Sim. Sou sensível às outras formas de expressão artística. E tenho mesmo algumas peças que partiram de obras muito concretas: “Stigmata”, para violeta e arcos, é uma obra “après une lecture” do quadro de El Greco “O êxtase de São Francisco”; ou a mini-ópera “Marcha fúnebre para o rei Luís II da Baviera”, sobre texto extraído do “Livro do desassossego” de Bernardo Soares; ou a minha obra dilecta, “Magnificat em talha dourada”, inspirada directamente no espaço mágico da Igreja de São Roque, em Lisboa, onde pregou Padre António Vieira e onde o tempo pára; ou, mais recentemente, a “Arca do Tesouro”, sobre o conto de Alice Vieira e o “Pequeno poemário de Pessanha”, sobre poemas extraídos de “Clepsidra”, do grande poeta transmontano Camilo Pessanha, natural do concelho de Mirandela tal como eu, glória maior da poesia simbolista.

Qual é o género de composição que gosta mais de trabalhar?

A matriz essencial à qual regresso sempre, principalmente quando estou desassossegado, é a música coral a-cappella, na pureza das suas quatro linhas. Ali, estamos por nossa conta: uma mão à frente e outra atrás, nus, sem ornamentos, sem os paramentos da vaidade.

De todas as suas composições, há alguma que tenha sido inspirada na sua infância? Qual? De que forma?

Toda a minha obra foi buscar fundo no poço da minha memória dos tempos da infância passada em Alvites: terra de vista ampla sobre a serra de Bornes, Montemel, como era antigamente nomeada. O tempo tinha naquela altura um mamar doce, ao sabor das estações. Vinha o Verão com a canícula, as searas malhadas e onduladas ao vento, a cria envolta em moscas. Vinha o Outono e a sua luz imaculada, por magoados fins de dia. Vinha o Inverno mais a geada, o nevoeiro e as sementeiras a despontar. Vinha a Primavera e o rouxinol, e crescia o cabelo aos freixos e aos negrilhos. Voltava o verão com a canícula, as searas malhadas e onduladas ao vento, a cria envolta em moscas. Tudo isto, toda esta linfa cíclica que banhou a minha infância, desfila na minha música, vertida na matéria incorpórea dos sons.

Como compositor foi alvo de vários prémios. A qual dá mais relevância?

O reconhecimento público daquilo que fazemos é uma experiência grata. Por isso, todos os prémios têm a sua importância, na medida em que são um estímulo a continuar o caminho da nossa autodescoberta, na defesa das nossas convicções.

Poder-nos-ia falar um pouco do seu processo composicional?

Respondo com três citações: uma de Somerset Maugham que afirmou “Before writing, you must square out your paper and you must take measurements”; outra de Picasso: “Primeiro acho. Depois procuro”; finalmente, a resposta de Ravel à mesmíssima questão: “Estou à mesa de trabalho entre as 9:00 e as 12:30. Almoço. Volto à mesa de trabalho, onde estou entre as 14:30 e as 18:30. Se a inspiração quiser aparecer, sabe perfeitamente onde me há-de encontrar”

Muitas são as orquestras nacionais e internacionais que interpretaram as suas obras. Como se sente ao ver o seu trabalho apreciado e divulgado?

A obra musical precisa de um intermediário para acontecer, ao contrário do “David” de Miguel Ângelo ou do quadro “A Virgem dos Rochedos” de Leonardo, obras prontas a serem  fruídas sem mais intermediários. Esta dependência da música da interpretação é uma doce fatalidade, uma montanha russa de emoções, para o bem e para o mal. Para o mal, se a nossa ideia não está bem defendida. Para o bem, se a ideia está lá, conduzindo-nos tantas vezes à plenitude, numa experiência de doce comunhão, sempre que os intérpretes conseguem elevar o texto musical à quintessência. Nestes casos, a obra construída deixa de ser apenas minha. Pertence-lhes também.

Qual é o efeito que espera provocar nas pessoas quando ouvem a sua obra?

O leque da experiência humana: da comoção ao humor, do sacro ao profano, de Eros a Thanatos. E espero, fundamentalmente, libertar o ouvinte do ritual iniciático da exegese do texto musical, quase sempre de mão dada com a irritante bula explicativa distribuída à entrada dos concertos, que nos instrui sobre a forma de montar a obra na nossa cabeça. Insistir nisto? Era o que mais faltava. A arte é para todos. A simples ideia mimada e burguesa de escrever música para um grupo de elite, um público de meia dúzia de happy few entendidos, sempre me causou vómitos.

Tive a honra de interpretar duas obras do mais alto nível musical e interpretativo de Eurico Carrapatoso. As “Six Histoires d’enfants pour amuser un artiste” (sobre poesia de Violeta Figueiredo), apresentadas em 1ª audição do dia 03/11/2011 em Coimbra, e a “Missa sem Palavras – cinco Estudos Litúrgicos -”, interpretada também em 1ª audição em Gent, na Bélgica (04/05/2015) e constante do CD “Éthers de l’Infini”, lançado neste ano pelo selo francês ESOLEM.

This post is the full transcription of an interview given by the outstanding Portuguese composer Eurico Carrapatoso, part of a monograph on Carrapatoso’s works written by flutist Paulo Ferrero. The composer addresses issues of general interest, such as his sources of inspiration, influences that underlay his musical creation, his views on serial music, the recognition of his accomplishments as a composer in Portugal and abroad.

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Comunico ao leitor que em Outubro estarei na UNIBES CULTURAL, em São Paulo, para uma série de palestras com temática inédita: “O intérprete frente à gravação”. Abordarei temas como: preparação de repertório, escolha do local ideal para a gravação, qualidade do piano e competência absoluta do engenheiro de som, após 22 anos de gravações e 23 CDs gravados na Bulgária, Portugal e principalmente na Bélgica. Faixas dos CDs serão ouvidas e fatos pertinentes relatados. As palestras (09, 16 e 23/10, das 19 às 22hs) são direcionadas para músicos, jovens intérpretes que almejam gravar e público que frequenta concertos e atividades afins. No dia, 31/10, apresentarei recital para o público em geral. No programa, obras de Johann Kuhnau, Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, François Servenière, P.I.Tchaikovsky e A.Scriabine. As inscrições poderão ser feitas através do site http://unibescultural.org.br/cursos/viva-a-cidade/interprete-frente-gravacao/710