Vontade e determinação se sobrepondo a temores

Em outros tempos, o país onde eu estava me encantou.
Não obstante, o espetáculo da natureza não é tão bom para os agitados.
A situação apenas reforça minha convicção do vazio e da impotência.
Gustave Flaubert
(“Lettres inédites à Tourgueneff”)

Retornando à pergunta arguta do amigo Rafael sobre a duração da permanência de um músico no Exterior, mas sempre a visar ao aperfeiçoamento, teríamos de considerar fatores que se estendem do genético à inquebrantável determinação consciente. Permanecer, ainda na juventude, fora de seu país não é fácil, mormente se o jovem estiver distante de tudo que possa lembrar a vivência em seu lar. Na juventude da idade madura – expressão utilizada pelo médico e psicanalista Elliot Jaques (1917-2003) – poderíamos considerar como menos turbulento um estágio longo no estrangeiro, principalmente se para aprofundamento acadêmico. Trata-se de ruptura breve ou não, raramente definitiva, pois nessa categoria já há o pressuposto de que raízes foram fincadas no país de origem, como trabalho e formação de nova família.

O caso específico do compositor e regente Maury Buchala é raro. Após finalizar o curso de quatro anos na Universidade de São Paulo sob minha orientação, seguiu para a França aconselhado por mim e lá permanece até hoje, estando a construir edificante carreira. A grande maioria dos jovens músicos que segue para regiões acima do Equador retorna após bolsas findas, necessidade imperiosa ou mesmo por desinteresse em prosseguir vivendo em circunstâncias não tão confortáveis como as do país de origem, mas principalmente pelo fato da imensa concorrência que sofrerá dos músicos nativos. É fato.

De conhecimento público a ida para a Espanha de um famoso jogador de futebol, que inclusive chegou a realizar jogos pela seleção brasileira. Poucos meses após retornou ao Brasil, a dizer que não se acostumou com a comida local, sentindo falta dos preparos culinários de sua progenitora. Tinha qualidades e poderia ter carreira meritória na Europa. Conheci jovens músicos de talento que assim procederam, nem tanto pela gastronomia pátria, mas pelas saudades, tantas vezes o grande empecilho para uma carreira almejada que se pode estiolar.

A certa altura Rafael – morador na minha cidade bairro -, aguçou-me a dizer que deveria mencionar minha história naquele autoexílio necessário para a formação. Confesso que a reflexão sobre esse passado longínquo ainda se dará neste espaço, pois terá de ser compartimentada em episódios que me marcaram. Poderia apenas mencionar fato relacionado à antecipação de meu regresso, após alguns anos em Paris, por motivos absolutamente inusitados que um dia narrarei. Perguntei hesitante à minha lendária mestra Marguerite Long (1874-1966) sobre meu futuro. Segurou-me as mãos e serenamente me disse que não mais precisaria de um guia, pois os ensinamentos transmitidos e apreendidos estavam sedimentados em minha mente. Doravante, segundo Mme Long, só dependeria de denodo, dedicação, disciplina, concentração, ampliação de repertório e muita, mas muita leitura. Fez-me bem e o regresso foi mais esperançoso. Estava para completar 24 anos.

Se considerarmos a permanência no Exterior de um jovem ou de um autoexilado nessa juventude da idade madura, há diferenças sensíveis. No primeiro caso, a influência do país em que deverá permanecer por tempo variável é decisiva. Dificilmente esse jovem deixará de captar profundamente novas culturas, costumes e preferências. Já abordei o tema em posts bem anteriores.  Se para o jovem que permanece tempo apreciável no Exterior marcas inalienáveis ficarão para sempre, tornando-o um “embaixador” cultural do país que o abrigou, basicamente o mesmo não ocorre com aqueles que se dirigem aos países acima do Equador para desenvolver trabalhos acadêmicos. Observei, ao longo de minhas décadas na Universidade, que para esses impressões ficam, mas que a influência será menos intensa, por vezes supérflua e, não raras vezes, tratada pejorativamente, mercê, talvez, daquilo que vulgarmente é entendido como “cabeça feita”. Capta-se a cultura de outros povos, mas a  estrutura mental sofre impactos não tão profundos concernentes àquilo que se está condicionado a ver e sentir. Comprovei-o através de vários testemunhos colhidos.

No campo preciso da Música, o retorno voluntário precoce ao Brasil traz uma série de problemas que poderão influenciar a trajetória futura do jovem. A formação incompleta tem consequências imprevisíveis. Utilizando-me de metáfora, estou a me lembrar de observação expressa no livro referencial de Heinrich Neuhaus (1888-1964), “L’Art du Piano” (Tours, Van de Velde, 1971). Escreve o notável pianista e professor russo sobre observação feita a um aluno: “Imagine que você tenha de ferver água em uma caçarola. Será necessário colocá-la sobre as chamas e não retirá-la antes da fervura. Todavia, você a deixa chegar a uma temperatura de 40 ou 50 graus, mas apaga o lume para fazer outra coisa qualquer. Mais tarde você se lembra da caçarola, acende o fogo novamente, esquecendo-se de que a água teve tempo de esfriar. Você recomeça a operação várias vezes, devido aos afazeres, e enfim se dá conta de que tempo precioso foi perdido”.  O regresso sem a formação adequada desestruturará a análise abalizada de uma partitura para a interpretação final. E todo o equívoco se concretiza. O fogo teria sido apagado prematuramente. Haveria neste caso outra chance de acendê-lo? Essa assertiva tem implicações na mente, pois o intérprete sentir-se-á inseguro, dado o fato de que algo na sua formação foi interrompido por determinada razão. Mais grave se não perceber que isso ocorre, pois consequências de estudos abortados serão sentidas pelo profissional incompleto. Numa ampliação dessa volta precoce, caso dedique-se simultaneamente ao magistério, mesmo que resultados aparentemente satisfatórios surjam, a essência poderá estar maculada. Experts na matéria saberão que lacunas existem. Sob outra égide, grande parte dos que buscam o aperfeiçoamento fora do país esquecem-se da formação cultural. Diria, numa metáfora não muito lisonjeira, que nesse caso é como se o jovem utilizasse viseiras. Interpelei diversos recém saídos da juventude que regressaram prematuramente e que jamais foram a um museu, tampouco exposições e que sequer tinham lido um romance ou relatos históricos e biográficos. Sem contar aqueles que não buscaram outras áreas musicais, como teoria e análise. Podem tornar-se hábeis instrumentistas, o que soa até pejorativamente. Nada a fazer a não ser lamentar.

A depender das circunstâncias, há o momento do regresso. São muitos motivos a determinar para o jovem a reintegração ao solo pátrio. Objetivos concluídos com curso determinado que chega a termo, dificuldade de manter-se no Exterior por meios próprios após curso findo, a crença no bom aprendizado que o alicerçará para a vida, a esperança em poder difundir o que aprendeu buscando, com as bases adquiridas, o autodesenvolvimento. Exemplos existem de músicos que se integram nesse grupo e que desenvolvem trajetórias muito dignas. Para os que retornam bem embasados, diria, o cozimento a que se refere Heinrich Neuhaus chegou a termo sem interrupção.

A permanência definitiva no Exterior não é comum. Pressupõe várias etapas até a tomada de decisão. Essas raridades, assim poderíamos designar, após conclusão de vários cursos, sentem que ainda falta mais. Por vezes, sem bolsas, encontram na própria atividade de músico oportunidades para a continuação de seus desempenhos. Apenas para mencionar os mais jovens, diria que o excepcional Luiz de Godoy esteve sob minha orientação pianística na USP, onde se graduou brilhantemente. Tributa reconhecimento às nossas aulas, louvando igualmente, com emocionada ênfase, o Professor Renato Figueiredo, da Escola Municipal de Música, seu mestre não só de piano, mas de vida. Findo seu curso na USP, esteve a estudar na Europa e, após concurso, tornou-se regente do mundialmente conhecido “Meninos Cantores de Viena”, tudo a indicar que permanecerá no Exterior (vide blog “Luiz de Godoy – A realização maior de um músico de imenso talento”, 24/12/2016). Sérgio Monteiro, um dos mais importantes pianistas do Brasil, aperfeiçoou-se no Exterior e hoje é professor na Universidade de Oklahoma. Comentei neste espaço algumas de suas ótimas gravações (vide blogs: “Obras para piano de Henrique Oswald” e “Transcrições para piano de Poemas Sinfônicos de Liszt”, 07/11/2015 e 18/02/2017, respectivamente). Há outros exemplos significativos de jovens que foram aceitos pelo mérito no mercado dificílimo da Europa ou dos Estados Unidos.

A pergunta do amigo Rafael tinha como origem o blog sobre Maury Buchala. Foi e ficou na França, após longo aperfeiçoamento com alguns dos mais importantes músicos da composição e da regência do país europeu. Sentiu que seu destino prendia-o a Paris. Com sacrifício venceu barreiras e hoje tem seu nome respeitado como compositor de raro talento e regente que está a desempenhar igualmente um trabalho social meritório, no caso, a ponte França-Brasil, tendo como patrocinador o SESC. Maury Buchala nunca teve a intenção de se dedicar à vida acadêmica. Talvez essa atitude, voluntária e inalienável, tenha-lhe proporcionado uma liberdade rara em seu desempenho como músico. O ilustre compositor e musicólogo belga André Souris (1899-1970) já observava que “integrantes da Academia ficaram totalmente surdos a toda música que flui naturalmente”. Referia-se à composição em seu magnífico livro “Conditions de la Musique et autres récits” (Université de Bruxelles, CNRS-Paris, 1976). Maury foi um de meus mais brilhantes alunos na USP. O notável musicólogo francês François Lesure (1922-2001), ao ouvi-lo em São Paulo tocando alguns Estudos de Chopin, ficou impressionado com as suas interpretações.

Para os que ficaram no Exterior e que frequentemente visitam o Brasil para o desdobramento de suas atividades, verifica-se que a qualidade de suas atuações, alicerçada no talento, denodo e  competência, resultou afirmativamente. Essas fixações no Exterior, neste período completamente à deriva da cultura como um todo no Brasil, são salutares. Os breves, mas constantes retornos à nossa terra não deixam de ser possibilidade de “injeção” de ideias novas e benéficas ao nosso país. É sempre profícua a vazão do conhecimento dos que permanecem no Exterior, pois não só possibilita o arejamento musical, como também incentiva jovens à missão que pensam abraçar.

Para qualquer das situações apontadas – breve permanência, estágio prolongado ou fixação definitiva – apenas uma verdade poderá conduzi-los ao desiderato: a ligação amorosa com a Música. Não sem razão, Jean-Cristophe, herói do romance homônimo de Romain Rolland (1866-1944), diria no seu leito de morte ao se referir à Música que acompanha toda a saga: ” Nós partiremos juntos, minha amiga. Fique comigo até o fim!”

On the difficulties faced by students and young professionals who leave their native countries for further qualification abroad and the determination and talent of those few who do set roots overseas, working hard to find a niche in the highly competitive US and European  markets.