O blog como respiração

Se a inspiração quiser aparecer, sabe perfeitamente onde há-de me encontrar.
Maurice Ravel

Temos sempre de relativizar cifras. Se considerarmos a música de concerto, clássica ou erudita, espetáculos podem lotar salas e teatros de 1.500 lugares, quiçá 2.000. Um Rock in Rio leva 100.000 pessoas ou muitíssimo mais. Neste caso, música ou associação de tantas parafernálias? A realidade, contudo, é clara. Há blogs que conseguem milhões de acessos diários. Política, esporte, frivolidades têm espaços garantidos nas mentes de legiões. Também transparente realidade.

Após dez anos e seis meses de blogs hebdomadários, que jamais tiveram interrupção, publicados sempre no quinto minuto do sábado, não posso negar estar imbuído de surda alegria. Dos 50 acessos semanais no longínquo mês de Março de 2007 aos 4.000 presentes, foi um crescer a conta-gotas que em nenhum momento alterou meu prazer de escrever. Remonta à juventude esse “instinto”, desde os textos publicados em “O Arauto” do Liceu Pasteur, onde estudava. O grande escritor e poeta Guerra Junqueiro (1850-1923) já tecera metáfora ao afirmar que escrevia “pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma simples fatalidade orgânica”. No meu modesto caso é a respiração, fatalidade orgânica que não precisa de estímulo, ela existe tão somente. A não interrupção, graças às musas que jamais me abandonaram, é decorrência da certeza de que essas figuras etéreas e inspiradoras conhecem a hora determinada onde me encontrar, de madrugada diante do computador. Valho-me de Ravel. E as musas chegam na invisibilidade de suas silhuetas decantadas em prosa e verso e grafadas desde a Antiguidade. Sinto-as presentes, pois o fluxo narrativo jorra de imediato, não sem premeditação. Respirar não pede férias.

Em mais de um blog escrevi sobre respiração e pensamento. Retorno às origens. À mente sempre surgem as ideias para o blog durante treinamentos para as corridas de rua. Vontade, determinação, disciplina, concentração, alegria… Talvez sejam muitas as outras razões. Não seria a respiração cadenciada que me remete ao ritmo e ao atavismo musical? Se o olhar e a audição captam o entorno com atenção, a mente viaja amparada pelas passadas ritmadas. Nas corridas oficiais de rua ignoro temas do blog, pois outras são as atenções, ficando alerta a todo corredor que me ultrapassa, mas também, em menor número, aos que ultrapasso. Bloqueio o nascimento das ideias. Não obstante, solitário no primeiro treino pós blog publicado, naturalmente desce um tema. Organizo-o e nele não mais penso. No treino seguinte retomo-o e estabeleço até a posição dos parágrafos na mente, momento em que uma nova configuração toma vulto. Na primeira madrugada, o post desce inteiramente sem qualquer esforço. Uma breve leitura e transmito-o à nossa vizinha e amiga, Regina Maria. Descobrirá incorreções que o jato da escrita não impede que aconteçam. Na noite seguinte, ao montá-lo com as imagens pertinentes, leio para a minha Regina. Como faz diariamente, chega serenamente enquanto digito, trazendo-me capucino durante o dia e uma maçã, noite avançada. Tem ela, muitas vezes, uma observação que me escapou. Texto publicado, a amiga e professora Jenny Aisenberg, com olhar de lince, comenta o blog semanal e, por vezes, ainda encontrará alguma incorreção. Assessorando-me pois, as musas etéreas e as presentes. O nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald, já profetizava que o pior revisor é o autor e se considerava, nessa tarefa, o pior deles. Sigo a rotina da escrita. Tem ela seus encantos. O acúmulo das décadas nos torna ainda mais rotineiros.

Preferencialmente  privilegio a Música, e aproprio-me do título do livro em homenagem ao poeta e crítico português José Gomes Ferreira (1900-1985), “Música minha antiga companheira desde os ouvidos da infância” (diário e poemas). A seguir, o cotidiano, mais pelo ato presencial, pois nada mais somos do que “observadores peregrinos”, no dizer do filósofo e escritor indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986), que tem lá suas razões ao apontar essa presença volátil do humano sobre a Terra. E vem a literatura, diria, ligação também amorosa. De Março de 2007 até o presente já foram mais de 180 livros resenhados (vide menu: Livros – Resenhas e Comentários, lista). Nesse quesito, se a música está presente, apaixona-me a literatura voltada ao desafio, às aventuras intrépidas e as narrativas de ação, mormente se o autor tiver talento. Sylvain Tesson, o andarilho francês, autonomeado vagabond (trata-se de outro conceito que não o de nossa língua), faz parte de tantos debruçamentos que me impeliram a resenhar seus livros. Portanto, o item “Impressões de Viagens”, também constante no menu, revela admiração inconteste pelas andanças no planeta, apesar de não serem as minhas revestidas de periculosidade, tampouco de intrepidez. Todavia, todas voltadas às atividades musicais, mas que sempre propiciam espaço para a observação.

Em vários blogs comemorativos mencionei a opção pela não inclusão de qualquer propaganda em meu blog. É possível que tal atitude decorra da total idiossincrasia que tenho pela sanha publicitária que desrespeita o momento do leitor, que obviamente é a leitura. Este, ao buscar um texto nos portais, é assaltado por infinidade de anúncios de toda sorte. A leitura é constantemente interrompida para que o visitante passe a deletar ao alto uma propaganda imensa, dos lados uma quantidade de outras que, em poucos segundos, são substituídas por outras mais. No centro, a reinar, um áudio qualquer precedido por outra longa publicidade. Ao ler textos na busca de noticiários ou artigos, geralmente plenos de erros gramaticais, o mouse “passeia”, a eliminar essa invasão publicitária, cujo teor sequer tem interesse. Seria esse um teste elementar para a eliminação de inimigos nesses jogos internéticos idiotizados tão em moda? Esse absoluto desrespeito tem se acelerado. Não poderia ser essa atitude, hoje “normatizada”, uma das nítidas tendências à distração do leitor, pois tudo passa a ser efêmero e a concentração se estiola. Sistematicamente perdem-se dados preciosos da Cultura: observação criteriosa, reflexão, assimilação, o gosto pela literatura cuidada e pela Música qualitativa.

Duas figuras não poderiam deixar de estar presentes nessa surda alegria, Magnus Bardela e François Servenière. Não fosse Magnus, possivelmente jamais teria a ideia de ter um blog. Já relatei várias vezes o fato de que o amigo certo dia me questionou a respeito de provável feitura de um blog. Hesitei no início, mas Magnus montou meu blog no dia 2 de Março de 2007, sem que na realidade soubesse eu de sua intenção, e me disse sorrindo: “Agora é só começar”. Ainda hoje, quando tenho algum problema técnico banal com meu blog, socorro-me junto a Magnus que, quase sempre, de sua morada soluciona essas dúvidas.  Confesso que nos meus 79 anos não mais tenho disposição para acompanhar a mutação “genética” constante da tecnologia. François Servenière, pensador e compositor de imenso talento, desde 2011 participa ativamente de meu blog. Seus comentários inteligentes, de um verdadeiro pensador, passeiam pelos mais variados temas que vão sendo publicados semanalmente. Não há uma só semana em que não me escreva, a comentar o novo blog. Quantos não foram os Ecos publicados após post que particularmente o interessou, com respostas reflexivas extraordinárias. Um autêntico partner.

Mencionaria por último Luca Vitali (1940-2013), imenso artista plástico e designer que faz parte de meu universo de afetos. Quantos não foram os posts por ele ilustrados. Sinto saudades das leituras que fazia ao meu saudoso amigo, artista absoluto que captava minha intenção e, sem que eu pedisse, um ou dois dias após me enviava um desenho singular. Almoçávamos todas as terças-feiras no mesmo lugar. Sua morte repentina, em Abril de 2013, fez-me durante alguns meses ter a sensação de que ele iria chegar para o almoço a sorrir, trazendo consigo suas ideias pictóricas destinadas a seus magníficos desenhos e telas. Luca, Servenière na França e eu formávamos um trio que cultuava as artes sem quaisquer outros interesses. Servenière e eu prosseguimos, e a concretização sonora da Série Cósmica de Luca seria traduzida na composição dos Études Cosmiques para piano, que tive a alegria de interpretar e gravar (selo francês ESOLEM, 2017).

Música, literatura e corridas preenchem meu cotidiano. Juntam-se às outras e decisivas dádivas, família e amigos. Meu profundo agradecimento ao leitor que me tem acompanhado nesse caminhar. Quantos não são aqueles que semanalmente, através do e-mail, enviam-me palavras de estímulo. Esse apoio faz bem e continuarei a escrever. Até quando…

This week my blog reached 1.000.000 visitors, leading me to reflect on the pleasure of posting an entry every week and on how proud I am of such a large following. In this post I recall the subjects that are dear to me and the friends that give me support backstage. My thanks for all who helped me reach such a milestone.