Navegando Posts publicados em outubro, 2017

Iniciativa louvável da pianista Eudóxia de Barros

Escrevi sempre música brasileira,
não por uma atitude deliberada e consciente,
mas por um impulso espontâneo e incoercível.
Osvaldo Lacerda
(depoimento a Vasco Mariz)

A edificação da integral de um compositor é tarefa árdua. Para os que cuidarão do mister, o post mortem de um autor implica um aprofundamento para que nada falte na seleção e avaliação do material. Quando de um segmento extenso da opera omnia, o trabalho tem que se ater também ao nível comparativo com outros gêneros frequentados pelo compositor. Num aspecto mais amplo, a integral possibilita a constatação do desenvolvimento escritural do compositor: assimilação dos ensinamentos recebidos de mestres cultuados presentes em compartimentos da obra, gêneros musicais preferenciais, identificação de modelos recorrentes ou modificados, idiossincrasias relativas a outras tendências coetâneas, ideologia e, como ápice, a detectação do estilo. Um compositor de talento tem seus procedimentos escriturais e, se o passar das décadas possibilita o distanciamento de determinadas “fórmulas”, há sempre elementos que permitem detectar o estilo de um autor qualitativo. Frise-se, o estilo inalienável, atributo detectável em um compositor de mérito, inexiste se faltarem talento e criatividade, pois o conjunto da obra remeterá por consequência à lembrança de tantos outros autores. A partir dessas premissas, reitero posição que defendo, a considerar que o compositor qualitativo deixa suas impressões digitais sobre cada criação. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com a interpretação musical.

O compositor Oswaldo Lacerda (1927-2011) pertence à linhagem que, desde as primeiras décadas do século XX, batalhou pela implementação no país de ideais voltados ao nacional. Música, literatura, artes plásticas aderiram ao movimento nacionalista, obtendo resultados tantas vezes surpreendentes. Na música de concerto, clássica ou erudita, compositores voltaram-se às fontes oriundas das manifestações musicais populares urbanas ou campesinas e apreenderam determinadas constantes existentes na dança, na canção, na rítmica e nos vários gêneros praticados no país, tantos tendo nascedouro n’outras terras. Na efervescência do movimento nacionalista, compositores do passado foram anatematizados. Se os pertencentes ao período colonial, apesar de qualitativos, mantinham-se basicamente defasados quanto ao que se estava a escrever na Europa, foi apenas na segunda metade do século XIX, quando músicos brasileiros viajaram à Europa para aperfeiçoamento, que tivemos uma equiparação com a linguagem musical corrente na Europa (Vide no menu de meu site – www.joseeduardomartins.com -, item Artigos: “Viagem à Europa e a atualização do compositor brasileiro no Segundo Império”). Contudo, todo movimento emergente, em quaisquer áreas, para a eclosão tem necessidade de “eclipsar” a corrente anterior. É dado histórico que sempre se repetiu. Foi apenas a partir do início da segunda metade do século XX que tendências musicais já sedimentadas no hemisfério norte tiveram penetração mais acentuada no Brasil. Não obstante o “choque” das tendências composicionais, a música brasileira continua sua trajetória, a evidenciar autores de mérito nos várias processos criativos.

Considerando-se figuras exponenciais do movimento em prol de uma música voltada ao nacional, tivemos, como exemplos, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1886), Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989). Dos compositores mencionados, Villa-Lobos, um dos grandes mestres do século XX em termos mundiais, teve a seu favor uma característica pioneira em termos da música de concerto no Brasil. Nenhum outro soube desenvolver uma ligação tão ampla com a mídia. Se sua obra persiste no Exterior pela qualidade, muito se deve à sua maneira de saber ser notícia. O mesmo não ocorreria com Mignone, Guarnieri e Santoro.

Camargo Guarnieri formaria uma plêiade de alunos de talento que professaram posteriormente seus ensinamentos, adaptando-os às suas próprias linguagens, mas conservando o culto ao nacional. Foram muitos os que seguiram carreiras meritórias. Dentre eles, destacaria Almeida Prado (1943-2010), que deve a Guarnieri a sólida formação, mas que singraria outras tendências, mormente após estudos em Paris com os notáveis Olivier Messiaen e Nadia Boulanger. Osvaldo Lacerda foi certamente o discípulo mais fiel, a dar continuidade aos princípios apreendidos de seu grande mestre, Camargo Guarnieri, um dos maiores compositores das Américas. Lacerda permaneceu durante toda a existência confiante na causa direcionada à música brasileira, nessa investigação sem tréguas às raízes pátrias. Um de seus atributos foi a coerência, característica inalienável que o levou a jamais se desviar de preceitos em que acreditava. Sob outra égide, foi teórico e professor conceituado.

Osvaldo Lacerda se reservou o direito de não buscar publicidade. O seu distanciamento dos holofotes, mercê igualmente da figura humana desprovida de presunção, tornaria a divulgação da obra bem mais econômica. Mario Vargas Llosa observa no livro “La Civilización del espectáculo” que, sem a mídia, a manifestação artística tem sérias dificuldades.

A pianista Eudóxia de Barros (vide blog “Valeu a pena?”, 19/11/2016) pautou sua brilhante carreira no resgate incessante do repertório pátrio. Fê-lo através de inúmeras gravações e centenas de recitais pelo Brasil. Viúva do compositor Oswaldo Lacerda, Eudóxia elaborou longo projeto visando à gravação da integral para piano do compositor (“Obra integral para piano de Osvaldo Lacerda”. São Paulo, Instituto Alberione, 2017). São seis CDs interpretados por sete pianistas.

Escolhidos os intérpretes, a cada indicado ficaram reservadas obras esparsas de diversas coletâneas, por vezes em peças sequenciais. Eudóxia contemplou igualmente para a integral a produção para piano a quatro mãos. Foram convidados para o projeto: Maria José Carrasqueira, Paola Tarditi, Paulo Gori, Renato Figueiredo, Sylvia Maltese e Valdilice de Carvalho. Eudóxia de Barros tem participação em um número bem maior de obras por motivos claros, pois foi a intérprete essencial de Osvaldo Lacerda, apresentando suas criações por todo o território brasileiro.

Das coletâneas tem-se Brasilianas, peças de média dificuldade cujo cerne é a visita aos mais variados gêneros musicais brasileiros. São 48 pequenas composições muito bem elaboradas, divididas em 12 cadernos de quatro, escritas para piano solo, sendo 12 para piano a quatro mãos. Cromos é outra coletânea constituída por 20 peças, compartimentadas em cinco cadernos. Há, por parte de Lacerda, preocupação igualmente didática, mas em Cromos o compositor busca despertar a imaginação do pianista. Sonatas para cravo ou piano (versão pianística), Sonatas em homenagem a Scarlatti e Sonatinas pertencem a outro segmento. Ponteios, tão a gosto de seu mestre Camargo Guarnieri, pertencem ao catálogo, assim como Valsas, Prelúdios, Toadas, Suítes Miniaturas, Suítes e peças características para o ensino elementar, Estudando piano. Invenções a duas vozes e uma série de outros grupos de peças compõem a produção para piano.

Se basicamente todas as criações mencionadas têm um cunho didático, considere-se que Osvaldo Lacerda, nos 12 Estudos, demonstra o absoluto domínio do técnico-pianístico. Todo o conjunto esteve sob a interpretação competente e transcendente de Eudóxia de Barros, que mantém em seu repertório a importante coleção.

Osvaldo Lacerda compôs três obras que ratificam seu domínio escritural: Cinco variações sobre Escravos de Jó, Oito variações e fuga sobre um tema de Camargo Guarnieri e Variações sobre Mulher rendeira. A segunda, sobre o tema inicial da Dança negra, de Guarnieri, é de cuidada construção e magnificamente interpretada por Sylvia Maltese. Igualmente, as Variações sobre Mulher rendeira têm um tratamento contrastante e diversificado, sendo executadas também com plena qualidade por Renato Figueiredo. Pormenorizo-me na forma Tema e Variações pelo fato de que estudei com Camargo Guarnieri suas Variações sobre um tema nordestino para piano e orquestra, em 1958. Disse-me o ilustre mestre que a forma tema e variações era uma das mais complexas e nela revelava-se por inteiro a qualidade de um compositor. Logo após viajava para Paris e acabei não tocando essa excelente obra, que conservo e que me foi presenteada por Guarnieri numa dupla cópia heliográfica, pois a orquestra está reduzida para um segundo piano. Contudo, já em Paris, acompanhei no segundo piano por duas vezes a notável pianista, colega e amiga Yara Bernette (1920-2002), que estudara também com meu professor José Kliass, pois a pianista solaria a composição nos Estados Unidos e ainda não a apresentara anteriormente. Camargo Guarnieri escreveu-me a respeito da passagem de Bernette por Paris para essas repetições, antes de estrear as Variações… em Rochester, nos USA, aos 27 de Abril de 1961.

Após essa “variante”, destaque-se a participação expressiva do duo pianístico formado por Sylvia Maltese e Paola Tarditi. Absoluto entendimento das 12 Brasilianas para piano a quatro mãos. Uma interpretação referencial.

Maria José Carrasqueira, Paulo Gori e Renato Figueiredo têm atuação marcante na integral em criações diversificadas das várias coletâneas, assim como, em um menor número de peças, Valdilice de Carvalho.

A obra para piano de Osvaldo Lacerda tem importância na formação básica de um jovem pianista brasileiro. De média dificuldade e com finalidade basicamente didática, ela apreende os principais gêneros, ritmos, danças, canções e folguedos pátrios, imprescindíveis para o conhecimento maior de nossas fontes musicais. Os 12 Estudos e os Temas e Variações têm outro nível de dificuldade e destinação, ratificando para a opera omnia para piano um conjunto harmonioso.

Apenas uma ressalva, que não desmerece o hercúleo projeto e as participações dignas dos pianistas. As muitas coletâneas, algumas seccionadas, poderiam estar, separadamente, sempre a cargo de um só intérprete, pois teríamos maior unidade. Todavia, a presente integral despertará certamente interesse por parte de estudantes, pianistas e estudiosos.

Eudóxia de Barros e todos os pianistas que compreenderam a extensão do projeto, e a ele se dedicaram com afinco, desprendimento e afeto, estão de parabéns. Não há melhor condição para se conhecer a trajetória de um compositor, sua evolução e seu estilo do que o conhecimento da opera omnia. Nas últimas décadas tem sido esse o caminho traçado no hemisfério norte no que concerne às integrais. Elas são determinantes para quaisquer avaliações mais acuradas. Sob outra égide, a complementar o projeto, o substancioso e longo texto que enriquece o conhecimento da integral para piano e o pensamento de Osvaldo Lacerda. Preciso, didático e analítico ao abordar cada peça de todo o conjunto, constituído pelos seis CDs. Um belo contributo. Deve-se a elaboração a Antônio Ribeiro, compositor e ex-aluno de Osvaldo Lacerda.

This post addresses the recording of the Brazilian composer Oswaldo Lacerda’s complete works for piano, a box with six CDs. Throughout his life, Lacerda (1927-2011) remained faithful to musical nationalism, exploring Brazilian musical genres, rhythms, dances, songs and harmony, using them as inspiration to create a sound of his own as a composer. The gigantic task of recording his opera omnia for piano was coordinated by his widow and also pianist, Eudóxia de Barros, who invited other six pianists: Maria José Carrasqueira, Paola Tarditi, Paulo Gori, Renato Figueiredo, Sylvia Maltese and Valdilice de Carvalho. An album to be celebrated, since it keeps alive for the Brazilian culture the valuable contribution of this important composer.


 

Obras de Ricardo Tacuchian para dois pianos, piano a quatro mãos e piano solo

E mar vai em voo aberto
já pássaro aventureiro para as descobertas.
Maria Isabel Oswald Monteiro

Entre os compositores brasileiros atuantes, Ricardo Tacuchian se destaca. Se o talento é indispensável, some-se o número considerável de composições, a abranger mais de 250 títulos. As apresentações das obras de Ricardo Tacuchian atingem a marca significativa de dois milhares no Brasil e no Exterior, possivelmente inédita por compositor pátrio atuante. Quanto à discografia, tem Tacuchian cerca de 100 fonogramas distribuídos em aproximadamente 50 CDs, sem contar os existentes nos antigos LPs. A literatura sobre a obra e a estrutura musical por ele proposta é vasta. Como didata, foi Professor Titular da UFRJ e da UNIRIO. Tem atuado igualmente como regente.  Sua trajetória é sólida, irrepreensível.

A criação para piano é uma das mais frequentadas por Ricardo Tacuchian. A qualitativa produção tem como fundamento essencial uma concepção técnico-composicional por ele criada na década de 1980, o “Sistema T”. Através dele, Tacuchian permeia suas composições numa  convivência possível entre tonal e atonal, sempre a ter em mente o controle das alturas. Outros mecanismos enriquecem sua teoria. Na  obra para piano detecta-se a elaboração cuidadosa, seu Sistema conduz a variedades de processos da linguagem pianística que, sem abdicar da soberana impressão digital do autor, enriquecem a escritura que utiliza em tantas oportunidades preceitos consagrados da pós-modernidade. Diria que Tacuchian entende as composições para piano como obras individuais que pouco se reportam às colagens, muito utilizadas por autores quantitativos. É certo que determinadas fórmulas podem fazer lembrar outras precedentes, mas quase sempre apresentadas sob outro olhar.

A obra para piano de Ricardo Tacuchian é considerável. Duas Sonatas, várias coletâneas com características diferenciadas, inúmeras peças avulsas. O CD “Água-Forte” tem como característica essencial a diversidade, que conduz o ouvinte da obra mais simples à mais complexa. Em todas detecta-se o pleno domínio não apenas da técnica composicional, como igualmente o conhecimento dos incontáveis processos do técnico-pianístico.

O CD “Água-Forte” contém composições para dois pianos, piano a quatro mãos e piano solo, interpretadas pelo duo Grosman-Barancoski (Rio de Janeiro, A Casa Discos). O CD tem início com  Grafite (2015) para piano a quatro mãos e, como tantas outras criações de Tacuchian, tem inspiração nas artes plásticas. Água-Forte (2006), que dá nome ao CD, inspira-se na técnica empregada também nas artes plásticas, impressão de desenhos em placa de metal gravada e processos subsequentes para a conclusão. Nos tantos segmentos Tacuchian apresenta uma série desses “desenhos”, alguns recorrentes. A obra emprega o mencionado Sistema T.

Estruturas Gêmeas (1978), para piano a quatro mãos, integra a série de oito peças das Estruturas para vários grupos instrumentais. Talvez a mais experimental de todo o CD, pois Tacuchian visita inúmeros processos técnico-pianísticos muito empregados no período. Como expresso no texto que acompanha o CD, “A obra é um lamento em memória da morte da compositora Esther Scliar, a quem é dedicada. Os dois pianistas, sentados lado a lado, diante do mesmo piano, simbolizam gêmeos, como o compositor se sentia, espiritualmente, em relação à sua colega Esther Scliar”.

Impressiona na obra de Tacuchian o sentido da observação. O visual lhe é importante, vital, respiração autêntica. Tapeçaria (2011), para piano solo, apresenta Miriam Grosman como intérprete. Impregnada de tantas imagens pertencentes ao acervo mental do compositor, a obra busca resgatar emoções que permearam a feitura da arte ancestral da tapeçaria. Diversificada em seus segmentos, Tapeçaria é uma das mais líricas criações de Tacuchian, por vezes interceptada por blocos de acordes dissonantes e arpejos que resultam como fluidez desses acordes.

Azulejos (2011), para piano solo, é executada por Ingrid Barancoski. Tacuchian volta-se às impressões causadas pela arte da azulejaria, que data da Antiguidade. Não se descarte a impressão que lhe deve ter causado essa manifestação artística em Portugal, país tão frequentado por Tacuchian, e a aplicação no Brasil Colônia dessa arte que nos foi transmitida pelo portugueses. Tem-se outra obra plena de segmentos, criando uma admirável construção que leva ao equilíbrio.

Este verão eles chegaram (2012), para piano solo, é interpretada por Miriam Grosman e encerra o CD. Tacuchian dedica a criação a seu neto, Eduardo Lamy Tacuchian. Temos uma obra singela e deliciosa. Sempre tive a convicção de que o grande mestre se mostra através da obra de síntese, despojada, livre de qualquer artifício. Assim procederam tantos mestres do passado. O despojamento, sob outro aspecto, proporciona à criança ou ao jovem o conhecimento do estilo. Quando na universidade, para os alunos de piano complementar que se destinavam à composição, dava sempre essas miniaturas de grandes autores para que, através delas, pudesse ser detectada a essência essencial do compositor, o estilo. Com Este verão eles chegaram Tacuchian enriquece a literatura específica. São 10 pequenas joias.

Louvem-se as intérpretes Ingrid Barancoski e Miriam Grosman pelo magnífico contributo à nossa discografia. Espero que brevemente essas obras possam estar à disposição do público através do YouTube. Merecem ser divulgadas extensamente.

Tive a honra de ser dedicatário de três criações para piano solo de Ricardo Tacuchian: Il fait de Soleil (1985), Avenida Paulista (1999) e In Memoriam a Lopes-Graça (2006), as duas primeiras constantes do CD “Estudos Brasileiros para Piano” (Rio de Janeiro, ABM) e a terceira apresentada em recitais em Portugal. Obras consistentes, que demonstram a competência e a versatilidade de Tacuchian. Avenida Paulista pode ser ouvida através do YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg

This post addresses the CD Água Forte with new works by the outstanding Brazilian composer and conductor Ricardo Tacuchian. His discography includes more than 100 recordings and his compositions have been performed in Brazil, the Americas and Europe. The  CD presents pieces  for two pianos, piano four hands and solo piano played by the Duo Grosman-Barancoski. As said in the CD booklet, the works presented “constitute yet another precious contribution by Ricardo Tacuchian to the Brazilian piano repertoire”.


Atitudes frente à existência

… Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Fernando Pessoa
(versos do “Poema em Linha Reta”)

Novamente o post anterior teve recepção a promover opiniões de interesse. Posições limites existem e, entre elas, várias intermediárias. O artista voltado intensamente à mídia, não podendo passar um dia sem que alguma notícia sobre suas performances aconteça, contrasta com atitudes daqueles que apenas focalizam seu trabalho, conhecendo o papel da mídia, mas sabedores de todas as implicações para que algo seja divulgado. Outros tempos aqueles em que o mercantilismo não invadira tantas penas. Graças a essa última postura, figuras mais reservadas, quando eventualmente dão entrevistas, mantêm certos receios. Espontaneamente não buscam a mídia. Há que se considerar nesse item aquele entrevistador despreparado para o mister. Infelizmente ele existe e todo o mal estará feito. Louvem-se os raros culturalmente aptos. No extremo oposto há o artista “eremita”, que sob nenhuma hipótese se aproxima da mídia. Esse estaria a produzir uma arte destinada a si próprio. Fecha-se e aguarda que o post mortem lhe faça justiça

Pareceria claro que a vocação narcisista tende a sedimentar-se com o passar dos anos, podendo exacerbar-se a depender das circunstâncias. Em uma das entrevistas colhidas ao longo, intérprete voltado ao holofote proclama peculiaridades de sua presença frente à plateia. Essas “substanciam” a identidade aceita doravante pelo público. Percebe-se que a necessidade imperiosa, nessa busca frenética pela notoriedade, faz com que tantos, em tantas áreas, utilizem-se de fórmulas as mais heterodoxas para o reconhecimento. Algumas características desse permanente “ator” estariam na peculiaridade do traje a evidenciar de maneira excêntrica sua “personalidade”; no viver o cotidiano, onde o sensacionalismo está sempre à espreita; no desempenhar sua atividade panfletariamente. Já abordamos, em blog bem anterior, o gesto exagerado como elemento chamariz de um público ávido pelo inusitado artificial. Numa outra área “artística”, a somatória dessas características apontadas compõe o caldo grosso. O público-leitor das inúmeras colunas de nível deplorável nos portais internéticos e frequentador de tantos programas televisivos alimenta a falta de cultura de eleitos e de seus entrevistadores, dedicando às “celebridades” a idolatria que apenas agrava o próprio vazio interior do “artista” e, por consequência, daquele que o cultua. Realmente, aprofundamo-nos num abismo cultural sem fundo previsto.

Regressando à música erudita, clássica ou de concerto, há aquele que se serve da música para, apesar da presença do talento, fixar uma imagem singular. O que pareceria também evidente é a ausência quase absoluta em sua fala durante entrevista da essência essencial da obra que ele interpreta. Comentei em blog passado o excepcional livro de Wilhelm Kempff (1895-1991), no qual o grande pianista aborda sua juventude (vide Cette note grave – les années d’apprentissage d’un musicien. Paris, Plon, 1955. 03/10/2009). Em toda a narrativa há o culto à criação musical e a juventude se amalgama amorosamente à música, suas estruturas e interpretação. Poder-se-ia acrescentar, no caso, a Música como Missão.

Separei duas mensagens, uma com forte dose de humor, mas a bem traduzir realidades. São tantas as notícias rigorosamente inúteis e frívolas publicadas ad nauseam nos portais de grande frequência, narrando as “entranhas” das vidas vazias de tantos daqueles denominados “famosos”, que o arquiteto Marcos Leite, com agudeza, escreve: “Mais uma vez perspicaz e acertando na mosca. Sucesso fazem as moçoilas de coxas grossas que contam nas entrevistas o segredo de quantas horas de academia por dia para ficarem ‘fortinhas e definidas’; mas incapazes de ler uma pauta ou distinguir uma nota musical. Faça- as usar saias longas e serão esquecidas pela plebe ignara”.

O compositor e pensador francês François Servenière está sempre atento aos blogs, o que muito me honra. Escreve:
“Passo ao seu artigo. Você descreve o real. Adorei particularmente o último parágrafo: ‘Servir à música ou dela servir-se’. Torna-se evidente que obter a celebridade interpretando um texto de compositor consagrado pela história, mesmo que bem difícil, a fim de chegar mais rapidamente ao pináculo e após, em letras grandes, fazer inserir seu nome como intérprete, relegando ao compositor e sua obra caracteres pequenos… o que dizer? Inútil criticar essas práticas odiosas e pouco respeitosas com o pensamento do mestre criador absoluto pelo necessário controle das flatulências do ego. Inútil falar ou denunciar, pois essas vaidades pairam no grotesco e no ridículo. O mais grave é que esses stars tratam aqueles que se insurgem como invejosos!!! Certo, a celebridade é um olimpo desejado que poucos atingem!!! Certo… Mas quantos (todos, salvo exceções) usam métodos absolutamente abjetos para se manter no pináculo. Sim, há exceções como Barenboim, que graças ao talento incrível, um denodo sem trégua ao serviço da arte (em Berlin, na semana passada, diretamente por canal a cabo, ouvi a 9ª de Beethoven, extraordinariamente interpretada por ocasião de reabertura de instituição após reformas), realiza proezas magníficas sem qualquer gesto supérfluo. Uma verdadeira e autêntica glória esse músico descomunal”. Resenhei dois livros de Daniel Barenboim neste espaço (vide La musique Éveille le Temps, 17/09/2011 e La Musique est un Tout, 25/10/2014). Barenboim conceitua permanentemente. Haveria a necessidade de se autoelogiar? Não o faz, felizmente.

Servenière finaliza a mencionar “antigo ministro francês, amigo de Pierre Boulez, que telefonava regularmente aos periódicos para estar sempre na lista das personalidades pesquisadas quanto à notoriedade. Aliás, Boulez tem seu lado essencialmente político, fato que podia ser sentido em sua música. A história fará o seu trabalho” (tradução JEM).

Importa saber distinguir. Não é difícil. Geralmente, cada categoria de artistas vem precedida de pormenores da personalidade. Ao público julgar, se tiver o bom senso de separar o músico atuante de sua persona fora da atuação musical.

Today I publish two messages received from readers with interesting views on the topics addressed last week: hollow headed egocentric performers who use their art form just for the sake of being admired and the celebrity culture in the consumer society.