Uma entrevista reveladora

Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias,
é para te regalar e, se possível  for, comover.
Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo
e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que,
por arder, te deslumbra os sentidos.
Miguel Torga
(Prefácio à segunda edição de “Novos Contos da Montanha”)

É bem difícil a exposição por inteiro de um artista que vive sem concessões às suas convicções mais profundas. Na área da composição musical, a não concessão aos ditames da moda  pode acarretar uma série de obstáculos, a influir positiva ou negativamente na criação. Uns criam no recolhimento, a esperar que o post mortem vanglorie suas obras – lembremo-nos de Arthur Honegger, que profetizava que a primeira qualidade de um compositor é estar morto -, outros perdem o estímulo. Os que sobrevivem, com galhardia singram mares tranquilos.

Na correspondência que mantenho com o notável compositor português Eurico Carrapatoso, solicitei ao amigo a entrevista que concedera em 2014 para o flautista Paulo Ferreira, aluno da ESPROARTE – Escola Profissional de Arte de Mirandela, e que foi integrada na sua monografia de final de curso sobre vida e obra de Carrapatoso. Falara-me desse trabalho acadêmico tempos atrás, mas escrevi-lhe a solicitar a íntegra. Na entrevista, Carrapatoso revela-se por inteiro e suas convicções sobre tendências atuais são expressas sem quaisquer receios quanto à recepção pelos contrários. Recebi-a dias atrás. Pedi-lhe autorização para divulgá-la junto aos meus leitores e fui prontamente atendido: “Como tal, é um texto originado em contexto acadêmico, desvinculado, que o meu bom amigo poderá usar no todo ou em parte, consoante a sua conveniência”. Apenas como lembrete, muitas de suas posições estão próximas das reflexões, constantemente presentes no blog, expressas pelo compositor e pensador francês François Servenière. Sob outra égide, o leitor poderá degustar o belo tratamento da língua portuguesa, com a singularidade de Trás-os-Montes.

(Paulo Ferreira) Quando surgiu o seu gosto pela composição?

(Eurico Carrapatoso) Foi depois de integrar o Coral de Letras da Universidade do Porto, em 1982. Senti um forte entusiasmo pela música de Fernando Lopes-Graça que estava a ser ensaiada. Houve um dia em que me senti compelido a verter no papel uma ideia musical. Começou aí. Foi na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que senti pela primeira vez essa pulsão de inventar música. Foi aí também que, ensaiando o meu voo inicial na escrita de uma singela ideia coral, perdi a minha inocência musical.

Acha que as suas origens transmontanas influenciaram a sua carreira musical? E de que forma?

Sou de matriz rural. Nasci e cresci em Alvites. Recebi uma educação tradicional, no paradigma “Portugal velho” que meus pais tão bem me significaram. Desde cedo que esses valores de honestidade e de carácter enxuto, que são matriciais nos ritmos de vida do campo, se entranharam, acabando necessariamente por condicionar a minha própria mundividência. Por outro lado, o contacto diário com a paisagem transmontana, bela e austera ao mesmo tempo, tão bem cantada na poesia de Miguel Torga, ensinou-me os mistérios do tempo-longo, um dos valores que mais prezo, antídoto precioso com que fui vacinado em garoto e que me deixou incólume ao tempo-curto e manhoso da vida urbana em que vivo desde as minhas universidades. A minha música significa, desde logo, toda a minha aculturação nordestina (entenda-se transmontana, obs. JEM).

O curso em História teve de alguma forma influência nos temas das suas composições?

Com certeza. A nossa existência é como uma rocha sedimentar. Reconhecem-se-lhe as várias camadas. Se fizesse um corte transversal para colher uma amostra geológica da minha vida, lá estaria bem patente a camada universitária, com claros vestígios de felicidade e de vibrante entusiasmo. A História é, tanto mais, um pêndulo maravilhoso que me ensinou que há dois tempos fundamentais na acção humana: o tempo estrutural (tempo-longo) e o tempo conjuntural (tempo-curto). E ensinou-me a ter uma perspectiva desapaixonada das coisas, a pôr o açaime no modernismo feroz que está a ladrar de castigo desde os anos 50 do século XX, na estéril tentativa de apontar os caminhos da composição, cristalizados no cânone serial segundo os ditames de Darmstadt e do IRCAM. Esta música-poder, que entrou claramente num beco sem saída, e que nos é insistentemente impingida como o fio condutor da história e da estética, é, afinal, mais um maneirismo da história da música, ao qual se seguirá um período clássico cujos contornos, hoje, cada vez mais adivinhamos. Ainda a propósito do cânone serial, cristalizado em música-poder, e que nos é impingido no primeiro campeonato do circuito dos concertos, assisti recentemente a uma ópera de Luca Francesconi na Gulbenkian (“Quartett”), uma produção caríssima, realizada com todos os meios, com luxo asiático mesmo, exsudando gastos sumptuários. A música insistiu durante uma hora e meia nos lugares-comuns dos anos 50. Uma música que parou no tempo. Não diria que é uma música morta. Pior do que isso: é uma música entubada, em estado vegetativo. E foi de tal forma poderosa nos anos 50 e 60 do século XX que adquiriu um seguro de vida que a mantém nesse estado vegetativo até hoje, no 2º decénio do século XXI. Na sequência desta metáfora, o palco da Gulbenkian mais parecia uma sala de operações sofisticada de um hospital de luxo: lá estava o cirurgião-mor com os eléctrodos nas mãos a dizer “CLEAR!”, para fazer mais uma desfibrilação a esta música moribunda. E o coração lá bombou mais uma hora e meia, tendo seguido aquela produção entubada para outro auditório de luxo em Londres, no 1º campeonato do circuito arrepiante desta música-poder, qual temática transilvana.

O facto de ter nascido e visitar frequentemente Trás-os-Montes influencia as suas obras?

Sim. Volto a Trás-os-Montes, à fonte, sempre que posso. Não há água mais saborosa. Não há ar mais puro. E todas as vaidades se dissipam perante a queda a pique sobre o Douro, no Penedo Durão, ali, ao pé de Freixo de Espada à Cinta. A escala colossal do precipício reduz-nos à nossa insignificância. É uma grande lição de humildade.

Enquanto compositor, foi influenciado pelo trabalho de algum nome da música, em particular?

Sim, principalmente pelo exemplo dos compositores que estiveram mais preocupados em escrever música do que em escrever a sua história. A minha principal inspiração, como seria de esperar, vem dos compositores que foram ao arrepio da moda do seu tempo e, por isso, considerados conservadores. Citando dois, entre outros, verdadeiramente importantes: Bach, que mandou a moda da ópera italiana para a casota, e Poulenc, que respondeu à matilha serial com a sua maravilhosa música solar, das músicas mais olímpicas alguma vez escritas, zurzindo o lombo à canzoada com o ferro contundente da beleza.

As suas obras deixam-se influenciar por outras artes, como a pintura, poesia, literatura? Como é essa influência?

Sim. Sou sensível às outras formas de expressão artística. E tenho mesmo algumas peças que partiram de obras muito concretas: “Stigmata”, para violeta e arcos, é uma obra “après une lecture” do quadro de El Greco “O êxtase de São Francisco”; ou a mini-ópera “Marcha fúnebre para o rei Luís II da Baviera”, sobre texto extraído do “Livro do desassossego” de Bernardo Soares; ou a minha obra dilecta, “Magnificat em talha dourada”, inspirada directamente no espaço mágico da Igreja de São Roque, em Lisboa, onde pregou Padre António Vieira e onde o tempo pára; ou, mais recentemente, a “Arca do Tesouro”, sobre o conto de Alice Vieira e o “Pequeno poemário de Pessanha”, sobre poemas extraídos de “Clepsidra”, do grande poeta transmontano Camilo Pessanha, natural do concelho de Mirandela tal como eu, glória maior da poesia simbolista.

Qual é o género de composição que gosta mais de trabalhar?

A matriz essencial à qual regresso sempre, principalmente quando estou desassossegado, é a música coral a-cappella, na pureza das suas quatro linhas. Ali, estamos por nossa conta: uma mão à frente e outra atrás, nus, sem ornamentos, sem os paramentos da vaidade.

De todas as suas composições, há alguma que tenha sido inspirada na sua infância? Qual? De que forma?

Toda a minha obra foi buscar fundo no poço da minha memória dos tempos da infância passada em Alvites: terra de vista ampla sobre a serra de Bornes, Montemel, como era antigamente nomeada. O tempo tinha naquela altura um mamar doce, ao sabor das estações. Vinha o Verão com a canícula, as searas malhadas e onduladas ao vento, a cria envolta em moscas. Vinha o Outono e a sua luz imaculada, por magoados fins de dia. Vinha o Inverno mais a geada, o nevoeiro e as sementeiras a despontar. Vinha a Primavera e o rouxinol, e crescia o cabelo aos freixos e aos negrilhos. Voltava o verão com a canícula, as searas malhadas e onduladas ao vento, a cria envolta em moscas. Tudo isto, toda esta linfa cíclica que banhou a minha infância, desfila na minha música, vertida na matéria incorpórea dos sons.

Como compositor foi alvo de vários prémios. A qual dá mais relevância?

O reconhecimento público daquilo que fazemos é uma experiência grata. Por isso, todos os prémios têm a sua importância, na medida em que são um estímulo a continuar o caminho da nossa autodescoberta, na defesa das nossas convicções.

Poder-nos-ia falar um pouco do seu processo composicional?

Respondo com três citações: uma de Somerset Maugham que afirmou “Before writing, you must square out your paper and you must take measurements”; outra de Picasso: “Primeiro acho. Depois procuro”; finalmente, a resposta de Ravel à mesmíssima questão: “Estou à mesa de trabalho entre as 9:00 e as 12:30. Almoço. Volto à mesa de trabalho, onde estou entre as 14:30 e as 18:30. Se a inspiração quiser aparecer, sabe perfeitamente onde me há-de encontrar”

Muitas são as orquestras nacionais e internacionais que interpretaram as suas obras. Como se sente ao ver o seu trabalho apreciado e divulgado?

A obra musical precisa de um intermediário para acontecer, ao contrário do “David” de Miguel Ângelo ou do quadro “A Virgem dos Rochedos” de Leonardo, obras prontas a serem  fruídas sem mais intermediários. Esta dependência da música da interpretação é uma doce fatalidade, uma montanha russa de emoções, para o bem e para o mal. Para o mal, se a nossa ideia não está bem defendida. Para o bem, se a ideia está lá, conduzindo-nos tantas vezes à plenitude, numa experiência de doce comunhão, sempre que os intérpretes conseguem elevar o texto musical à quintessência. Nestes casos, a obra construída deixa de ser apenas minha. Pertence-lhes também.

Qual é o efeito que espera provocar nas pessoas quando ouvem a sua obra?

O leque da experiência humana: da comoção ao humor, do sacro ao profano, de Eros a Thanatos. E espero, fundamentalmente, libertar o ouvinte do ritual iniciático da exegese do texto musical, quase sempre de mão dada com a irritante bula explicativa distribuída à entrada dos concertos, que nos instrui sobre a forma de montar a obra na nossa cabeça. Insistir nisto? Era o que mais faltava. A arte é para todos. A simples ideia mimada e burguesa de escrever música para um grupo de elite, um público de meia dúzia de happy few entendidos, sempre me causou vómitos.

Tive a honra de interpretar duas obras do mais alto nível musical e interpretativo de Eurico Carrapatoso. As “Six Histoires d’enfants pour amuser un artiste” (sobre poesia de Violeta Figueiredo), apresentadas em 1ª audição do dia 03/11/2011 em Coimbra, e a “Missa sem Palavras – cinco Estudos Litúrgicos -”, interpretada também em 1ª audição em Gent, na Bélgica (04/05/2015) e constante do CD “Éthers de l’Infini”, lançado neste ano pelo selo francês ESOLEM.

This post is the full transcription of an interview given by the outstanding Portuguese composer Eurico Carrapatoso, part of a monograph on Carrapatoso’s works written by flutist Paulo Ferrero. The composer addresses issues of general interest, such as his sources of inspiration, influences that underlay his musical creation, his views on serial music, the recognition of his accomplishments as a composer in Portugal and abroad.

___________________

Comunico ao leitor que em Outubro estarei na UNIBES CULTURAL, em São Paulo, para uma série de palestras com temática inédita: “O intérprete frente à gravação”. Abordarei temas como: preparação de repertório, escolha do local ideal para a gravação, qualidade do piano e competência absoluta do engenheiro de som, após 22 anos de gravações e 23 CDs gravados na Bulgária, Portugal e principalmente na Bélgica. Faixas dos CDs serão ouvidas e fatos pertinentes relatados. As palestras (09, 16 e 23/10, das 19 às 22hs) são direcionadas para músicos, jovens intérpretes que almejam gravar e público que frequenta concertos e atividades afins. No dia, 31/10, apresentarei recital para o público em geral. No programa, obras de Johann Kuhnau, Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, François Servenière, P.I.Tchaikovsky e A.Scriabine. As inscrições poderão ser feitas através do site http://unibescultural.org.br/cursos/viva-a-cidade/interprete-frente-gravacao/710