Uma vida dedicada à Música
A íntima união da oração e da arte,
da melodia e da palavra que canta por si própria,
ou da melodia que canta sem palavras
prolongando para além dela o que a palavra não pode dizer…
tudo é oração e arte,
a qual mais encanta, prende e eleva,
quanto mais perfeita a técnica em que se baseia a sua interpretação.
Júlia d’Almendra
O recente livro do organista Domingos Peixoto, “Júlia d’Almendra e o movimento organístico em Portugal” (Lisboa, By the Book, 2017), presta tributo a uma das mais expressivas figuras da música portuguesa no século XX, Júlia d’Almendra (1904-1992). A presente obra tem preciosas colaborações de Idalete Giga (coordenação da obra) e de Mariana Rosa (coordenação de textos e recolha iconográfica). Em blog bem anterior busquei traçar um pouco do perfil musical e humano da notável gregorianista (vide “Júlia d’Almendra – Uma existência a cultuar a Música”, 19/01/2013).
Domingos Peixoto, professor e organista, realizou trabalho investigativo de imenso valor ao revelar de maneira expressiva parte do grande contributo de Júlia d’Almendra para a Música Portuguesa, mormente nos aspectos essenciais voltados ao canto gregoriano, à pedagogia específica e ao sensível impulso que propiciou à expansão do ensino de órgão em Portugal.
Sabiamente, ao dividir o livro em dez capítulos Domingos Peixoto não deixa de historiar o ensino e a prática organística em Portugal na primeira metade do século XX. Pormenoriza a importância do Conservatório Nacional (Lisboa), instituição na qual seria professor titular de órgão, evidenciando o papel do estabelecimento no cenário português. Mostra-se figura plenamente capacitada para o intento a que se propôs.
O autor, ao definir Júlia d’Almendra como personalidade maior numa verdadeira cruzada, a fim de legar ao país o que havia de mais sedimentado e hodierno em torno do órgão instrumento, comprova o esmero e cuidado da gregorianista no sentido de cercar-se de intérpretes e professores europeus, mormente os da Escola Francesa, promovendo uma verdadeira e profícua “revolução” no que tange à importância do órgão na música sacra. Como consequência, a didática aplicada ao instrumento, a formação de inúmeros organistas e a difusão por todo Portugal da criação específica. Peixoto salienta igualmente a dedicação de Júlia d’Almendra e seu empenho extremado para que nada pudesse impedir esse desenvolvimento.
Ao longo de mais de dez anos de blogs ininterruptos, tenho salientado a importância fundamental da viagem para um jovem que pretenda estudar música em país que preserva tradições e que mantém na excelência o ensino criterioso e a prática interpretativa. É mais fácil para um jovem que estagia por bom período sorver a cultura de um povo. Poderá, ao regressar, tornar-se um “embaixador” cultural do país que o abrigou para aperfeiçoamento. Mais difícil essa “prática diplomática” para um denominado jovem na idade madura, que se desloca além fronteiras para trabalhos acadêmicos, mas impregnado por fatores vários de seu país de origem, que se tornam “amarras” para a absorção mais harmoniosa.
Júlia d’Almendra, nascida em Tráz-os-Montes (Samões-Vila Flôr), pertencia a uma família que cultuava valores voltados à tradição. Pai e irmão prestaram relevantes serviços ao país. Quando viaja para a França, a fim de aperfeiçoamento junto ao Instituto Gregoriano de Paris, fá-lo já a antever a plena atuação vocacionada à música sacra, mais especificamente ao canto gregoriano. Não por acaso, defende com brilhantismo sua tese orientada pelo notável Henri Potiron, em Paris, a versar sobre a figura máxima da música francesa, Claude Debussy, encontrando ecos dos cantos gregorianos, conscientes ou não, na obra debussysta. Exemplos demonstrados por Júlia d’Almendra testemunham essa apreensão por parte de Debussy (d’Almendra, Júlia. Les modes Grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy. Paris: Gabriel Enault, 1950).
Domingos Peixoto presta uma inestimável colaboração no sentido de dignificar Júlia d’Almendra, infelizmente não reconhecida como deveria ser em seu país, apesar do hercúleo empenho de sua ex-discípula e excelente gregorianista Idalete Giga. Revela-nos Domingos Peixoto aspectos marcantes nesse leque aberto por Júlia d’Almendra. Entre esses: a sua atuação como administradora, a intensa campanha voltada à divulgação competente da prática organística, a sensível qualidade na escolha dos professores que deveriam atuar nos estabelecimentos por ela criados, o Centro de Estudos Gregorianos (1953), sob o patrocínio do Instituto de Alta Cultura e o posterior Instituto Gregoriano de Lisboa (1976). Consideremos outros aspectos mais que não pertencem ao tema do livro, como o fato de ter introduzido em Portugal o Método Ward (criado por Justine Ward 1879-1975), ter criado a Semana de Canto Gregoriano em 1950, que durante muitos anos realizou-se em Fátima e hoje, em sua 66ª edição, acontece em Viseu sob a direção de Idalete Giga; a criação da revista “Canto Gregoriano”, da qual foi diretora e articulista de mérito, a corroborar a divulgação da música sacra.
Uma das grandes virtudes do livro em apreço terá sido o resultado de intensa pesquisa, a abordar Júlia d’Almendra como criadora das instituições mencionadas, decorrência da acolhida ascendente das Semanas Gregorianas na formação de cantores e regentes corais a partir de 1950. É louvável o empenho de Júlia d’Almendra na organização do Centro Gregoriano de Lisboa, na elaboração curricular e na busca sem trégua dos nomes basilares em cada área do conhecimento específico. Quando faço referência ao fato de um músico, após estágio sedimentado em países onde a cultura erudita é tradição, regressar à sua terra e se tornar um “embaixador” do país que o abrigou, tenho em mente, como exemplo transparente, Júlia d’Almendra. O estágio em França, para elaboração de tese junto ao Instituto Gregoriano de Paris, fê-la admiradora inconteste da cultura musical francesa. Entre as principais escolas organísticas na Europa prepondera a francesa, a marcar decididamente escolhas que d’Almendra faria no futuro como dirigente em Portugal. Professores do Instituto Gregoriano de Paris, do Conservatório Nacional Superior de Paris, da Universidade Sorbonne e da Escola César Franck compuseram o corpo docente do Centro Gregoriano de Lisboa, e mais tarde, do Instituto Gregoriano de Lisboa. Os nomes referenciais em França estiveram em terras lusíadas para apresentações ou permanências mais ou menos longas para cursos específicos. Peixoto enumera-os criteriosamente, a evidenciar contributos individuais marcantes, que corroboraram a edificação de uma escola organística portuguesa. Alguns desses nomes respeitáveis, tantas vezes presentes para regerem cursos durante as Semanas Gregorianas, merecem citação. Primeiramente Édouard Souberbielle (1899-1986), um dos grandes organistas de sua época, e Jean Guillou (1930- ), extraordinário organista e compositor, titular emérito da Igreja de Saint-Eustache, em Paris. Estiveram a ministrar aulas e oferecer recitais Claude Bouglon, Michel Jolivet, Arsène Bedois, André Sierkierski (polonês) e titular do órgão de Saint-Médard em Paris, Pierre Doury e Gaston Litaize. Frise-se que Júlia d’Almendra levaria a Lisboa, para aulas de abertura do ano letivo e posteriores cursos, respeitáveis organistas e musicólogos franceses, como Jacques Chailley (1910-1999), que manteria durante décadas amizade profunda com a ilustre gregorianista portuguesa, Auguste Le Guennant (1881-1972), Norbert Dufourcq (1904-1990), Geneviève de La Salle (1904-1993), Edith Weber (1925- ), Claude Terrase (1925-2008), neto do compositor homônimo, Germaine Chagnol (1926-2014), Pierre Gazin, um dos últimos alunos do legendário Marcel Dupré (1886-1971). Contudo, a figura mais marcante e duradoura para a sedimentação definitiva dos ensinamentos da fabulosa escola francesa de órgão foi sem dúvida Antoine Sibertin-Blanc (1930-2012), que, radicado em Portugal desde 1961, esteve à testa não só dos cursos de órgão como de matérias teóricas (vide blog “Ad Memoriam – Antoine Sibertin Blanc – Um músico na acepção do termo”, 25/03/2017).
Os aprofundamentos de Domingos Peixoto conduzem o leitor às contribuições trazidas por músicos de outros países, mormente da Itália. Júlia d’Almendra receberia uma das maiores honrarias do Vaticano, a Medalha “Pro Ecclesia et Pontifice”, distinção atribuída pelo Cardeal Montini, futuro Papa Paulo VI, em 1953, pelo empenho de d’Almendra em favor da divulgação da música sacra em Portugal.
Domingos Peixoto, em seu precioso livro, aborda com precisão os programas dos cursos de órgão ofertados pelas entidades dirigidas por Júlia d’Almendra no decorrer das décadas e posteriormente debruça-se sobre o órgão que a gregorianista mantinha em sua morada à Rua d’Alegria, 25, 1º andar. Vai às origens do projeto, à difícil adaptação no apartamento, qualidades e problemas do instrumento e seu destino final.
“Júlia d’Almendra e o movimento organístico em Portugal” é livro obrigatório para todos que buscarem o conhecimento maior do ensino e da divulgação do órgão em Portugal na segunda metade do século XX. Gerações são tributárias do esforço maiúsculo de Júlia d’Almendra.
A título final, diria que cheguei a interpretar alguns corais e Prelúdios e Fugas de Bach no órgão existente na residência de Júlia d’Almendra, pois durante dez anos ficava sempre hospedado em sua morada, quando de meus recitais em Portugal. O instrumento já apresentava problemas que foram se acentuando, mas Júlia ouvia a sorrir essas obras excelsas. Nossa amizade, que se iniciou em torno de Claude Debussy – Júlia prefaciaria meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982) - prolongar-se-ia até os últimos dias da notável gregorianista (1992). No Centro de Estudos Gregorianos apresentei-me sempre a tocar obras de Debussy, Estudos (integral), suítes, peças avulsas e La Boîte à Joujoux. Presente aos recitais, o notável organista Antoine Sibertin-Blanc, o ilustre crítico Humberto d’Ávila e Idalete Giga. Nosso relacionamento, na época das cartas manuscritas e dos correios morosos (ainda o são no Brasil), renderia mais de 40 missivas de Júlia d’Almendra e outras tantas minhas, assim como cartões postais. Chamava-me sempre de irmão em Debussy. Hoje essas cartas estão depositadas no Centro Ward de Lisboa. Poucos meses antes de sua morte, sabedora de meus aprofundamentos em Debussy, nosso sempre tema para conversas, levou-me à sua rica biblioteca e me ofereceu todos os livros preciosíssimos sobre o mestre francês escritos na primeira metade do século XX, que adquirira durante seus estudos em Paris. Lembro-me sempre da Julinha, assim a tratava, com muitas saudades. Uma figura histórica na cultura musical portuguesa, rigorosamente impecável. Vida inteiramente dedicada à Música, sem quaisquer outros interesses.
This post is an appreciation of the book “Júlia d’Almendra e o Movimento Organístico em Portugal” that has just been released (Lisbon, By the Book, 2017). Written by organist Domingos Peixoto, it pays tribute to Júlia d’Almendra, one of the greatest musical figures of the 20th century in Portugal thanks to her actions to boost the teaching of organ music at her time. Author Domingos Peixoto, piano and organ teacher at the National Conservatory of Lisbon, is up to the task. The book is mandatory reading for those who want to know more about the history of organ music in Portugal in the second half of the last century and about Júlia d’Almendra, expert in Debussy and Gregorian chant, who so far has not received in her country the recognition a professional with her accomplishments would deserve, despite the Herculean efforts of her follower Idalete Giga, current director of the Centro Ward de Lisboa, founded by Júlia d’Almendra.