Questionamentos que enriquecem

Existe apenas um canto do universo
que você pode ter certeza de aperfeiçoar,
que é você mesmo.
Aldous Huxley

O afluxo de mensagens a respeito do tema faz-me tecer outras considerações. Se, mormente após a Revolução Industrial, a Humanidade caminha para a especialização, à maneira de uma locomotiva, que do ponto zero pouco a pouco acelera, mais e mais verificamos que a especialização e uma de suas resultantes, o desenvolvimento tecnológico, caminham numa velocidade que só tende a crescer. Em todas as áreas, as transformações a partir da segunda metade do século  XX têm quase impossibilitado a fixação na mente dessas inovações de maneira perene. Impossível conter esse avanço. “Jurássicos” tornaram-se os grandes rolos de fitas de gravação, as fitas-cassete, os dats, assim como os acetatos, os 78 rotações, o long-playing e, fadado ao mesmo destino, o CD. Celulares introduzidos no Brasil há tão poucas décadas são igualmente pertencentes a uma pré-história e vemos, mercê da concorrência predatória na área dos atuais aparelhos, que mais acentuadamente acrescentam-se inovações em espaços de tempo sempre mais estreitos, corrida que obriga o consumidor à atualização imediata, mas que o leva ao desvio do essencial, o ser.

Seria possível entender que a especialização no campo internético tornou-se frenética, a impossibilitar o acompanhamento pelos adultos na idade madura. Matéria assinada por Mariana Nicodemus (“Circuitos digitais: a força dos eSports, competições organizadas de jogos eletrônicos”, O Globo – Sociedade, 13/09/2017) apenas indica a irreversibilidade dessas modalidades sempre “in progress” e que hoje mobilizam 300 milhões de pessoas no planeta. Ligas profissionais, times, ídolos e certames pelo mundo impulsionam essas recentes atividades. Confesso que durante uns 10 minutos estive recentemente a assistir pela tela a um  evento internacional. Comentários de três brasileiros “especialistas”, que irradiavam a “batalha” internética, chegavam aos meus ouvidos como sânscrito ou aramaico, pois não entendia uma só palavra. Era um emaranhado de termos e neologismos das línguas inglesa e portuguesa. Fiquei a pensar na absoluta falta de visão cultural desses comentaristas, dos jogadores frenéticos sentados diante das telas e de um público “robotizado”. Pessoalmente, entendo essas “batalhas” como uma enorme incitação à violência. Há, contudo, quantidade de “especialistas” atualizando diariamente esses jogos!!!

Minha dileta amiga, a renomada gregorianista e regente coral portuguesa Idalete Giga, comenta o último blog: “Este último, Especialização – Um caminho sem volta , é um tema muito interessante e actualíssimo. O pensamento do nosso saudoso filósofo Agostinho da Silva sobre este tema conduz-nos inevitavelmente a uma profunda reflexão…. Hoje , mais do que nunca , caminha-se para uma especialização exagerada. Contudo, o exagero poderia ser menorizado se o especialista (independentemente da “especialização”) fosse possuidor de uma Cultura Geral. Sem Cultura Geral não passamos de seres incompletos, medíocres…intelectualmente falando.

Quando hoje sabemos que tudo tem a ver com tudo, não há Ciência, seja ela qual for, que se  isole, se  feche numa concha, desconhecendo as outras. Há uma distância gigantesca entre o ‘especialista do ouvido esquerdo’ (!) e  o sábio holístico que conhece  o corpo inteiro e a correlação entre os vários órgãos. Neste poderemos confiar”.

Idalete menciona Agostinho da Silva. Valho-me de mais um comentário do notável pensador, ensaísta e poeta português em outro de seus textos: “A grande diferença entre um homem do Renascimento, com seu gênio plural, com sua infinita capacidade de ciência, de arte, de política, de guerra, de violência e de amor, de realidade e de sonho, e nós, especialistas, cada vez  sabendo mais de menos, está em que dentro deles, por um século, o medo se abolira, não o medo de prisões, de feridas ou de mortes, que é esse o menos mau, mas o medo de ser, na plena, na inesgotável riqueza que se é. Não é o ser pintor, ou poeta, ou diplomata ou administrador tão raro e tão estranho que vejamos como um gênio quem o é; o que é raro é saber-se escapar das classificações, fugir ao conforto da ficha profissional e ousar ter as ideias novas em lugar de, para conforto dos governos, levar a vida inteira lavando a poeira de ouro dos grandes mineradores”. Como se aplica seu pensamento à triste realidade brasileira!!! Em outro segmento: “Talvez, no fim de contas, não sejamos uma nação de músicos especialistas, já os há bastantes, mas de condutores de orquestras; talvez se esteja à espera de nossa vitalidade, de nossa disciplina, de nosso gesto de amparo à guia; talvez só isso falte para que harmonias subam a qualquer Deus que seja: e o saber de cada corda, de cada metal, de cada madeira, base de estrado é. Só por ele a ele” (Agostinho da Silva. “Dispersos”. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989, 931 pgs.).

O homem, que permaneceria na História através de suas realizações nos mais variados campos, da Antiguidade aos primórdios do século XX, assistia à passagem do tempo sem sofrer transformações bruscas. Aquilo que o ascendente perpetrava era seguido pelos sucessores de maneira basicamente consensual. A evolução constante, mormente a tecnológica, não permite às gerações mais velhas, que avançam etariamente, acompanhar as incessantes novidades, ao contrário das adaptações constantes das crianças, adolescentes e jovens a esses progressos.

Paradoxalmente, a aceleração tecnológica, mercê de especializações absolutas, provocaria um “desnorteamento” criativo nas artes. Se o rumo tecnológico tem levado à ascensão do consumo, graças às ofertas que se sucedem a todo vapor, na música e na literatura, mais especificamente, dá-se o inverso quanto à criatividade. Qual o compositor hodierno que ultrapassaria a produção qualitativa e soberana, mas também quantitativa, diga-se, de compositores como J.S.Bach (1685-1750), W.A.Mozart (1756-1791), Franz Schubert (1797-1828), como alguns dos tantos exemplos? O mesmo se daria na literatura e a enorme obra de François-Marie Arouet, o grande Voltaire (1694-1778), é exemplo significativo. O andamento, a cada ano mais acelerado, contamina todas as áreas. Um “criador”, se pensar valer-se de seus processos anteriores – algo rigorosamente aceito nos séculos passados -, corre o risco de ser considerado defasado pelos pares. A impossibilidade de renovar-se a cada “criação” impede-o de produzir mais, contrariando na realidade a aceleração que se dá em muitas áreas. Felizmente, correntes conservadoras têm-se insurgido contra “igrejinhas” ou guetos e buscam a harmonização de tendências, algo basicamente impossível na segunda metade do século XX.

Às gerações intermediárias difícil será a adaptação às novas tecnologias. Serão assimiladas superficialmente pelos pertencente à denominada terceira idade, mas que não pairem dúvidas, a aceleração não tem fim previsível. Se num TGV ou num jato a velocidade nos inebria, com as inovações na área da tecnologia acontece o mesmo. Deslumbramento que pode até ser a antevisão do caos. O futuro responderá.

Additional considerations regarding specialization in the modern world, with focus on the unprecedented speed of technological evolution.