Congraçamento durante treino e episódio a não ser esquecido

Um dos privilégios concedidos àqueles que evitaram morrer jovens
é o direito abençoado de ficarem velhos.
A honra do declínio físico está esperando,
e você precisa se acostumar com essa realidade.
Haruki Murakami

Participei de cinco provas da São Silvestre, tradicional corrida da cidade. De 2008 a 2012 estive a correr com muita alegria. Em 2011 mudaram novamente o trajeto e comumente estão a direcioná-lo para vias outras, a depender de intenções ou interesses mediáticos e de dirigentes. Mudanças de horários foram várias, da lendária chegada à meia noite ao período da tarde e, mais recentemente, à plena manhã do dia 31 de Dezembro. A mística desapareceu definitivamente. São bem claros os interesses dos meios televisivos!!! A prova da tarde conflitava com a festa que se realiza na Av. Paulista horas após, mas com o povo chegando bem cedo para as festividades de cunho “artístico” bem duvidoso.

Em 2012 participei pela última vez da hoje descaracterizada São Silvestre, com número de participantes a cada ano maior, tantos sem inscrições. A maioria só começa realmente a correr após dois ou três quilômetros, mercê das dezenas de milhares de atletas amadores, pois são pouquíssimos os de ponta. Um corredor a menos como veemente protesto, milhares d’outros que superlotam as ruas e avenidas para gáudio de promotores e da mídia.

Em blog sobre a São Silvestre no início de 2013 escrevia: “Após cinco participações na corrida de São Silvestre, a mais tradicional do Brasil, deixarei de frequentá-la. A morte do cadeirante Israel Cruz Jackson de Barros (31/12/2012), que poderia ter sido evitada fosse conservada a descida harmoniosa da Avenida da Consolação, e não a imposição da perigosa e íngreme descida da rua Major Natanael, verdadeira ‘pirambeira’, evidenciou o descompromisso com a razão primordial do evento, a corrida como congraçamento e não para satisfazer interesses ‘estranhos’. Denunciara o percurso num blog no início de 2012, a anteceder ao infausto acontecimento, mas os ouvidos da organização mantiveram-se tampados (vide blog “Corrida de São Silvestre e Equívocos – Quando interesses estranhos Sobrepõem-se à Alegria de Milhares”, 07/01/2012). Mencionei  nesse post o preceito latino abyssus abyssum invocat (abismo a chamar outro abismo)”. Nada a fazer.

É lamentável que o herói, que desapareceu por absoluta falta de previsibilidade de organizadores despreparados, tenha sido esquecido. Morrer durante uma corrida acontece desde o primeiro maratonista, Pheidippides, que sucumbiu ao correr cerca de 35km até Atenas para anunciar a vitória contra os persas na célebre batalha de Maratona em 490 a.C. Rarissimamente  acontece, mas corredores sem acompanhamento médico e técnico estão sujeitos a sofrer ataque cardíaco fulminante. Contudo, a morte do cadeirante Israel Cruz Jackson de Barros não poderia ter acontecido. Durante as duas corridas da São Silvestre que realizei a descer a rua Major Natanael, uma delas durante chuva torrencial, vi corredores caírem, tropeçarem ou escorregarem. Um absurdo que continuará até que alterem novamente trajetos e horários. Israel  Jackson deveria ser homenageado a cada corrida, mas esse ato implicaria a permanente revelação da falta de prudência da organização.

Pertenço a uma equipe organizada, a Corre Brasil, dirigida pelo dedicado Professor Augusto César Fernandes de Paula, assessorado pela esposa Val e boa equipe. Já treinamos a subir o Pico de Jaraguá, a percorrer o Caminho do Sal, antiga rota de terra daqueles que, no período colonial, subiam a Serra do Mar para abastecer de sal os povoados do alto da região, posteriormente cortada pela antiga estrada asfaltada São Paulo-Santos. Todos os anos, a Corre Brasil realiza em Dezembro, treinos simulados para os que desejam participar da Corrida de São Silvestre, na qual estão inscritos inúmeros integrantes da equipe. Com amigos corredores percorremos com entusiasmo esse trajeto durante o “treinão”. Outras equipes fazem o mesmo. Todavia, por princípio irrevogável, não desço a Major Natanael, a pirambeira trágica, mas sim a Avenida da Consolação, com declive prazeroso. Dou algumas voltas pelo Theatro Municipal, desço até o Largo do Paissandu e daí passo novamente pelo Theatro, viaduto do Chá, Faculdade de Direito e, após leve descida, enfrento a subida da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, lenda que está na mente do povo. Jornalistas e narradores há décadas teimam em defini-la como um enorme desafio. Lendas são transmitidas através da oralidade e essa consolidou-se, tornando-se temida no imaginário popular. Dosando-se passadas e respiração, o aclive é percorrido sem quaisquer problemas. Foi a décima vez que subi a Brigadeiro e a cada ano, apesar do avanço etário, esse trecho me parece mais familiar, mormente se subimos no treinamento -  sempre em um domingo – na contramão pela via do ônibus, com plena visibilidade, o que permite, com tranquilidade, passarmos para a calçada, essa temerária. É lógico que, para os atletas de ponta que desenvolvem velocidades admiráveis, principalmente os quenianos, etíopes, marroquinos e outros africanos, é nessa subida que se dá a diferença entre eles e os comuns mortais durante a São Silvestre. Curiosamente, nesse treino, como desci a Avenida da Consolação, realizei um menor trajeto e, ao subir a Brigadeiro, fui ultrapassado por um queniano que participou do ensaio. Como um bólido desapareceu segundos após com suas passadas largas, suas pernas finas e um DNA surpreendente. Encontrei-o no final e, sorridente, disse-me que fizera o percurso em tempo não muito maior do que seus compatriotas, com os quais correrá no dia 31. Realmente!!!

Ao final do simulado houve a confraternização de todos os integrantes da Corre Brasil, com distribuição de medalhas, sucos, sorvetes e muita alegria. Ao longo de dez anos a correr, nessa atividade amadora como tantas outras, jamais vi uma só discórdia, um só gesto que não fosse aquele voltado ao espírito esportivo, ao congraçamento e à qualidade de vida.

Que esse espírito seja o vigente neste 2018 que está a nascer. Num país eivado de criminalidades de toda a ordem, do batedor de carteira ou de celular aos poderosos empreiteiros e políticos que não chegam a esquentar suas celas nas prisões, mercê da infinidade de recursos que tornam felizes advogados do ramo, assim como da prepotência de magistrados das altas cortes que os libertam e dos indultos presidenciais (sic), os momentos de felicidade espontânea que sentimos nesses congraçamentos ligados às corridas de rua, mesmo que passageiros, tornam-se um bálsamo. Comecei a participar das provas de rua aos 70 anos. Já lá se vão 155 corridas!

Apesar desses últimos 13 anos em que a corrupção extrapolou os mais inimagináveis limites, saudemos 2018. Haverá esperanças para um Brasil a sofrer de “amoralidade endêmica” por parte daquelas figuras que se multiplicaram, mormente na vida política e empresarial? São tantas as incertezas… Continuemos a acreditar em dias melhores para o país.

In the last post of the year random thoughts wander through my mind: my love of running — the interaction with fellow runners, the rush of hormones that relieve stress and make me happier —, the new route of the traditional St. Sylvester Road Race held in São Paulo every 31 December, Brazil corruption scandals and our long road of unmet expectations.