Navegando Posts publicados em janeiro, 2018

Ana Cláudia Assis interpreta repertório desafiador

É necessário insistir sobre fato elementar,
pois o intérprete detém o poder essencial,
entendendo-se que é através dele que a música existe realmente.
Ao negligenciar essa evidência,
corremos o risco de falsear todos os problemas da criação musical.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)

Durante o Simpósio “Fernando-Lopes Graça em retrospectiva”, realizado em Cascais em Dezembro último, tive o prazer de reencontrar amigos e, entre eles, a pianista Ana Cláudia Assis e o compositor João Pedro Oliveira. Ana Cláudia ofereceu-me o CD “Vertentes”, a conter obras de vários compositores contemporâneos que residem em Belo Horizonte, sendo dois visitantes. Buscou Ana Cláudia, através dessa panorâmica, trazer ao ouvinte a contribuição desses criadores de diversas tendências, mas que, na seleção proposta pela pianista, resulta num conjunto coerente.

A criação musical dita de concerto, erudita, seletiva ou clássica tem, em especial a partir da segunda metade do século XX, apresentado multiplicidade de caminhos. As transformações escriturais que ocorreram, mormente após a técnica dodecafônica, o serialismo e, mais tardiamente, o emprego de processos eletroacústicos, entre tantos, possibilitaram a presença de compositores relevantes. Muitos romperam com os padrões do passado. Para outros, a tradição “atualizada” através das conquistas verificadas em todas as áreas, não foi esquecida. Se em Portugal Jorge Peixinho, Emanuel Nunes e João Pedro Oliveira singraram caminhos oriundos de técnicas novas, nem por isso autores como Eurico Carrapatoso e Sérgio Azevedo deixam de despertar muito interesse. Sem contar o grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o maior músico português do século XX, quiçá de sua história. A criação musical só é desinteressante quando as musas não visitam um autor sem talento.

Quanto ao piano, propiciou o instrumento uma série de novos procedimentos técnico-pianísticos – tantos deles oriundos da tradição -, enriquecedores nessa abordagem inusitada, sempre in progress, a que assistimos desde meados do século XX.  Poder-se-ia afirmar que o piano, apesar de recursos extraordinários, tem suas limitações, e o compositor consciente deve entendê-las, adaptando-se ao instrumento.  Nem sempre isso se verifica. Estou a me lembrar de recital que apresentei em Cardiff, no País de Gales (1996), interpretando vários compositores contemporâneos. Tive dois pianos para escolha, pois um terceiro, o melhor, estava praticamente impossibilitado devido a recital na noite anterior de pianista credenciado, que apresentou algumas obras para piano preparado, a interferir diretamente nas cordas e nos martelos, danificando-os de maneira irreversível. A Diretora do Departamento de Música da Universidade de Wales, Profª Caroline Rae, mostrou-se desolada. Lembro-me de meus tempos na USP, quando um duo pianístico, unicamente voltado à música contemporânea, pediu-me para ensaiar na sala em que dava aulas. Cedi com prazer, mas no dia seguinte cinco cordas estavam rompidas e um martelo quebrado. Tranquilamente me pediram novo ensaio, tendo eu recusado peremptoriamente. Em quase três décadas na Universidade, não me lembro de ter quebrado uma corda. Creio que é absolutamente fundamental para um pianista que se dedica à música de nossos dias ter praticado exaustivamente o repertório tradicional. Caso específico de Ana Cláudia Assis.

O CD “Vertentes”, lançado em 2017, tem a produção compartilhada de João Carreño e Gabriel Algusto. Apresenta composições de oito autores, alguns da novíssima geração.  Apesar de formações diferenciadas, constata-se uma possível “identidade” nas linguagens. As 11 faixas, ouvidas na sequência, assim permitem deduzir. Creio ser esse um aspecto positivo a evidenciar, friso, apesar de processos vários empregados pelos oito compositores. João Carreño escreve as notas e afirma: “Vertentes é a realização do desejo de explorar mais a fundo a identidade sonora da cidade que escolhi como minha casa, seus compositores, suas estéticas, seus sons”. Refere-se à cidade de Belo Horizonte. Continua: “Este álbum apresenta uma pluralidade de discursos, formas, estilos e técnicas que, postas em perspectiva através do pianismo lapidado de Ana Cláudia, cartografam os sons da capital mineira. Daqui, vertem obras que delineiam paisagens, exploram sons eletrônicos, remetem a gestualidades e compositores do passado, demarcam um caminho comum e ao mesmo tempo plural compartilhado pelos compositores jovens e por aqueles com carreira consolidada”.

Roberto Victorio abre o CD com a Sonata II (2017). Obra plena de possibilidades, “a partir da utilização e do intercâmbio de duas notações: proporcional e relativa”, segundo o autor. Nessa criação, como na maior parte das outras composições do CD, fiquei atento ao timbre sonoro, capacidade da exploração dos sons nas mais distintas camadas dinâmicas, e que, ao meu ver, é uma das constantes das obras do CD, mercê, frise-se, da qualidade da intérprete.

João Pedro Oliveira, professor titular da Universidade de Aveiro (Portugal) e da UFMG, é organista de formação e compositor de consagrada trajetória. Apresenta a obra Frozen… (Fred, Ferenc, Franz), realizando uma curiosa e bem solucionada prospecção do universo de três grandes compositores do passado: Chopin (Noturno em si bemol menor), Liszt (Rapsódia nº 2) e Schubert (lied Der Leiuermann). Apreende a contento “fragmentos” que remetem esporadicamente aos inspiradores, mas com engenhosa “metamorfose”. “Como se a música se congelasse”, afirma o autor.

A última tarde de verão, de Rafael Felício, traz resultados de interesse. Consegue amalgamar a interferência direta nas cordas do piano e utiliza igualmente sons eletrônicos. Considerem-se os efeitos de pedal em matizes de cuidadoso equilíbrio. Felício comenta que “a obra se constrói ganhando corpo e movimento sempre com o princípio de derivar um material do outro”.

Fui colega de Marcos Branda Lacerda na Universidade de São Paulo. Etnomusicólogo e compositor, Branda Lacerda tem vasto acervo de informações, pois sua tese de doutorado, defendida na Alemanha, abordou a música de Benin, na África. Curiosamente, Blue Notes, dedicada à pianista, é criação bem sofisticada que apreende várias culturas, não se descartando, consciente ou inconscientemente, segmentos que fazem lembrar determinados eteres próprios a Debussy.

Por um triz meus tímpanos não se romperam no início dessa criação de muito interesse. Creio que o piano, apesar de complexo, fica realmente minimizado, mercê da “avalanche” de sons eletrônicos flutuando entre os extremos da dinâmica. Levy Oliveira, em Por um triz, mantém tensão permanente durante todo o desenrolar da obra e a interação piano-eletrônica estabelece um amplo sentido de espacialidade.

Eduardo Campolina participa com Dois movimentos para piano solo. Como afirma, a obra bipartida tem “caráter contrastante no molde lento-rápido, muito comum na tradição ocidental”. O contraste não elimina, antes evidencia, a impressão digital do autor, possuidor de estilo definido.

Dubitável questiona os limites entre a precisão escrita e o improviso, o papel da intérprete como coautora de uma obra e a singularidade de cada interpretação de uma mesma peça”, considera João Carreño, compositor e produtor do CD. Estou a me lembrar de Três Estudos do notável H.J.Koellreutter que me foram dedicados, sendo o pianista o coautor. Essa configuração jamais permite a apresentação de uma obra construída graficamente na leitura realizada por intérpretes diferentes. Transfigura-se a partir da soberana presença da “matriz”. Carreño e a coautora obtiveram boa solução para Dubitável.

Sérgio Freire compôs De terras e raios, conseguindo resultados surpreendentes nessa transição a compreender a finitude dos sons do piano e a continuidade através dos sons eletrônicos. Essas transições estão muito bem pensadas e permitem reflexões a respeito da duração. O processo de De terras e raios propõe “sobrevida” ao discurso pianístico de maneira engenhosa.

Uma realização de mérito. Ana Cláudia Assis tem contribuído decisivamente na divulgação do repertório contemporâneo. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e pianista respeitada, merece os maiores elogios pela contribuição valiosa que proporciona através do CD “Vertentes”.

Ao ser copiado, o link levará à breve apresentação do CD “Vertentes”, com explicações de alguns compositores e da intérprete:

https://www.youtube.com/watch?v=4HCjq_5EbIE

On the CD “Vertentes”, with contemporary classical music written by Belo Horizonte-based composers in the stunning performance of Ana Claudia de Assis, Brazilian pianist who is specialist in contemporary music interpretation and Associate Professor at UFMG – Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais in the city of Belo Horizonte.

 

 

 


Posições diferenciadas em torno da feitura composicional

A obra é inicialmente um criador. Deus não existe que através do mundo que ele criou,
o Papai Noel que pelos presentes que distribuiu,
o compositor que pelas obras que foram escritas.
Ora, o que é um verdadeiro artista criador
senão aquele que conjuga o controle do instinto,
a evidência do estilo, a recusa das soluções fáceis e, sobretudo,
a originalidade na utilização de meios
(mais do que os meios eles mesmos) com uma afetividade profunda?
Mas sem a técnica, e se apenas a afetividade existir, a obra não existe”.
Serge Nigg (1945-2008)
(o primeiro compositor a escrever obra dodecafônica em França)

O blog anterior suscitou posicionamentos diversos quanto à escrita musical de nossos dias. É natural que assim seja e entendo salutar posições por vezes antagônicas sobre a matéria. Creio que só deve ser descartado o pensamento unitário, radical, a ver uma só verdade. O velho adágio “pior do que não ter lido nenhum livro é a leitura de apenas um livro”. Portanto, recebi posicionamentos de leitores, assim como de Maury Buchala, que me enviou opiniões de músicos respeitados.

Como intérprete a percorrer repertório que tem origem no século XVIII até as correntes hodiernas, entendo que o acúmulo das décadas fez-me avaliar a boa escrita e o talento, assim como a má escrita e a mediocridade. Naquele século há muitas obras que não se sustentaram por falta de embasamento escritural e pela ausência do talento. Daí meu empenho, in conditio sine qua non, de revelar determinados autores quase esquecidos, mas profundamente merecedores de maior divulgação. Daí minha vontade de, entre os 23 CDs gravados no Exterior, em três deles ter privilegiado especialmente compositores contemporâneos com linguagens diversas: o CD New Belgian Studies (Bélgica – De Rode Pomp, 2004), a conter 10 autores belgas atuais, o CD “Estudos Brasileiros” (Brasil, Academia Brasileira de Música, 2006), a privilegiar oito compositores pátrios e o CD “Éthers de l’Infini” (França – Esolem, 2017), a abrigar quatro criadores de três países diferentes, França, Portugal e Bulgária. Os CDs com as integrais de Estudos de Alexandre Scriabine e Claude Debussy (Bélgica – De Rode Pomp, 2002 e 2006, respectivamente) deram início ao aprofundamento nesse gênero musical tão complexo, o Estudo.

Estou a me lembrar do saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Um episódio, já mencionado em blog bem anterior, fez-me pensar numa observação arguta de Luca tão logo entramos numa galeria que apresentava mostra de pintores contemporâneos abstratos. De longe destacou algumas poucas obras de mérito, descartando a maioria. Perguntei-lhe sobre sua aferição da qualidade. Explicou-me técnica e criatividade e a ausência desses atributos em muitos expositores nessa mostra. Serenamente percorremos os corredores e disse-lhe que na música se dá o mesmo, quando da apreciação de alguém versado na matéria. Nas duas áreas das Artes a mídia tem papel preponderante e o incenso pode ser sentido tanto para os meritosos precedidos pela fama como para a mediocridade, a depender de julgamentos tantas vezes estranhos. Nada a fazer.

Admiro a escrita musical competente, oriunda sobretudo de alguns centros de estudos do hemisfério norte. Diria apenas que há outras tendências, baseadas nas estruturas tradicionais. Contudo, há uma paradoxal desproporção quando da avaliação de projetos composicionais pelos institutos de fomento, tanto em nossas terras como bem acima da linha do Equador. Aqueles voltados às tendências “progressistas” – e nelas incluiria a música a partir de sons eletrônicos – recebem as maiores benesses, apesar de, no todo, resultarem em audiências pequenas. Um de seus adeptos já teria confessado em entrevista que se trata de música ainda destinada a guetos. Contudo, aos que professam tendências mais tradicionais, essas verbas de incentivo mostram-se nulas ou minguadas e não é difícil constatar que o apoio dos Institutos de fomento destina-se basicamente às linhas de composição “progressistas”. Não incentivam a linguagem estruturada na tradição, escrita essa professada na atualidade por muitos músicos de inegável valor. Esse é fato real. Como mencionei, apenas a falta de técnica e de talento não deve ser prestigiada. Quanto à linguagem praticada por compositores de diversos credos, posições dogmáticas são perniciosas sob todos os aspectos. Não obstante elas existem, hélas.

Das mensagens recebidas, salientaria inicialmente a do compositor e pensador francês François Servenière, tantas vezes com posições a enriquecer Ecos de blog anterior. Escreve: “Concordo com o post precedente e apenas uma qualidade pode unir as duas entidades de artistas, a sinceridade”. Servenière, voltado a uma linguagem com fortes raízes na tradição, no jazz e na improvisação, apesar de ter conhecido e praticado conteúdos da vertente dominante composicional em França, comenta: “Nossas composições, as de Maury e as minhas, num espelho. Duas escolas de pensamento em comparação, dois modos de expressão ambivalentes, que vão no mesmo caminho de trabalho sensível da apreensão íntima da sociedade; no entanto, duas expressões radicalmente diferentes”. Conclui: ” Na França ainda há forte influência do legado deixado pela escola de Pierre Boulez. Humana, espiritual e artisticamente, essa tendência me deixa frio como gelo, apesar de admirar o domínio escritural incontestável no caso específico das obras de Maury”.

Maury Buchala enviou-me três curtas mensagens de músicos saudando o CD. O renomado compositor Jorge Antunes escreve: “Parabéns pela bela resenha de seu ex-professor. Aproveito para dizer que também ouvi o CD e fiquei impressionado. Gostei bastante das tuas obras, todas muito bem estruturadas e com detalhismo admirável na construção dos pequenos objetos sonoros”. Alexandre Rosa, contrabaixista da OSESP, felicita-o: “Parabéns, bela e merecida crítica deste seu excelente trabalho”. A soprano belga Françoise Vanecke saúda e rememora: “Bravo! Bravo! Conheço pessoalmente José Eduardo Martins!”. Em 1995, Françoise e eu apresentamos, em recital na cidade de Gent, o Poemetto Lirico “Offelia”, de Henrique Oswald. O músico Philippe Hurel e o ótimo violinista Francesco D’Orazio felicitam calorosamente Maury Buchala pela realização de “Portrait”.

Por fim uma “mensagem oral”. Encontrei velho amigo ao passar pelo Largo de São Bento no Centro Histórico de São Paulo. Após cumprimentos, Alfredo diz-me diretamente não entender e não gostar da música de “laboratório”, pois lera o post e ouvira várias obras de Maury através do Youtube. Tínhamos algum tempo e fomos a um café próximo. Uma sua frase, “essa música não tem sentimento”, serviu para que eu lhe explicasse que a prática da escuta leva a entendê-la, possivelmente não sob esse prisma de cunho bem romântico, dos sentimentos, da emoção – “langage du coeur”, nas palavras bem anteriores de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) -, mas através de uma compreensão racional e que, como intérprete, apesar de ter minhas nítidas preferências, e essas são voltadas à música tradicional que para nós, pianistas, remonta ao repertório do século XVIII, ainda sob a égide do cravo, ao me debruçar sobre repertório bem contemporâneo sinto prazer de estudar a trama escritural e as possibilidades sonoras novas. Concordei com ele no sentido de que a música muito bem escrita do Maury Buchala não é para o grande público. Há longo caminho até que a escuta majoritária chegue realmente a apreciá-la. Ao menos nossa conversa de uns bons 15 minutos deve ter servido para reflexão, pois, ao se despedir, Alfredo disse sorrindo: “vou pensar no que você me disse, professor” (num tom bem jocoso, diga-se).

O que podemos imaginar da música do amanhã? O repertório voltado à tradição já deu provas de imanência. Da contemporaneidade, quem subsistirá? Quais obras conseguirão ultrapassar a arrebentação, essas ondas próximas à praia que, vencidas, levam ao grande oceano, à perenidade. Não seria a discussão meramente ideológica um entrave para que a obra, seja qual for a tendência, flua com naturalidade? O embate a partir de ideias pré-estabelecidas pelos “contendores” não levaria a criação, seja qual for a tendência, ao impasse?

Duas frases famosas de Claude Debussy (1862-1918), neste ano em que se comemora o centenário de sua morte: “La musique doit humblement chercher à faire plaisir, l’extrême complication est le contraire de l’art” e “N’écoute les conseils de personne, sinon du vent qui passe et nous raconte les histoires du monde”.

The previous blog (on Maury Buchala’s CD “Portrait”) received much feedback, with some messages holding opposing views on contemporary trends in classical music composition. I believe diversity of opinions is welcome. As a pianist, though I cannot deny my preferences for the traditional piano repertoire, the one recognized as excellent over a long period of time, I’ve always tried to be open to new musical languages, as far as I see in them talent and quality. But will they stand the test of time?

Instigante CD de Maury Buchala

A entidade musical apresenta estranha singularidade de revestir dois aspectos,
de existir passo a passo e distintamente sob duas formas
separadas uma da outra pelo silêncio do vazio.
Essa natureza particular da música conduz sua vida própria
e sua atuação na ordem social,
pois ela supõe duas categorias de músicos: o criador e o intérprete.
Igor Stravinsky

O que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro.
Agostinho da Silva

Em dois blogs abordei a figura do compositor, pianista e regente Maury Buchala (vide blogs “Concerto para público não convencional” e “Ecos de…”. 12/08 e 19/08/2017, respectivamente). Maury Buchala mora há décadas em Paris e, mais recentemente, tem visitado o Brasil com certa constância para reger concertos sob a égide do Serviço Social do Comércio (SESC). Comentara nos blogs mencionados o CD “Portrait” unicamente com suas obras, mas só recentemente tive o grato prazer de ouvi-lo inteiramente mais de uma vez.

Nos textos anteriores trato do perfil de Maury Buchala, um de meus ex-alunos mais brilhantes na Universidade de São Paulo (década de 1980) e que atenderia, através de carreira consolidada, àquilo que sempre foi o meu único desiderato, formar o músico e não apenas o pianista. Maury expandiu  sua visão musical e do mundo e hoje é uma realidade inquestionável.

As obras constantes do CD “Portrait” foram gravadas em Paris no ano de 2015 por um dos mais renomados conjuntos de música contemporânea da Europa, o Ensemble Court-Circuit. As quatro faixas de “Portrait” ratificam a criatividade e o virtuosismo escritural de Maury, mercê do talento e da formação sólida que adquiriu em Paris. Torna-se essencial transcrever o curto texto introdutório do grande compositor e saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016) ao apresentar o CD:

“Maury Buchala, de uma nova geração de compositores brasileiros pós Manifesto Música Nova, define-se hoje alinhando-se definitivamente com os compositores que no momento levam o estruturalismo ‘neue Musik’ às últimas consequências de complexidade formal.

Sua música é vigorosa e surpreendente em sua meticulosa organização. Maury vive em Paris, o que pode explicar em parte a direção musical que sua música tomou, de extrema, implacável preocupação com o som, sua forma, construção minuciosa em seus mínimos detalhes, dentro de uma tradição europeia que vem de Webern até Pierre Boulez.

Impressionante seu domínio absoluto da construção do som violinístico, da linguagem mais nova destes últimos tempos, o que poderá ser ouvido e constatado nesta cuidadosíssima interpretação do grupo parisiense Court Circuit”.

As obras que integram “Portrait” evidenciam pleno domínio da escritura instrumental por parte de Buchala. Não se descarte impressão que permanece de “lembranças” de sons eletrônicos, tantas são as incursões do autor no ambiente sonoro amplamente desenvolvido nas últimas décadas, nesse caminho empreendido por compositores oriundos das várias Escolas especializadas acima do Equador. Recordo-me de entrevista que realizei em 1989 com o notável compositor mexicano Mario Lavista (1943- ) para a “Revista Música” da USP (Maio 1990), da qual fui editor durante 17 anos. Mantivemos conversa a respeito de sua composição  Reflejos para quarteto de cordas, obra que  provoca essa “impressão” de permanência nos sons eletrônicos, pois na década de 1970 Lavista já buscava explorar possibilidades novas para os instrumentos tradicionais, mormente, no caso específico de Reflejos, criação que evidencia verdadeira incursão no universo dos harmônicos. O campo dos harmônicos estendendo-se à massa instrumental é ilimitado. Para Maury, como observaria em recente mensagem que recebi: “Meu material harmônico tem origem em Schoenberg, sobretudo nas Variações opus 31, onde o direcionamento do som ou harmonia é bem inesperado, vejo esta obra como uma pintura abstrata. Esta peça de Schoenberg é uma referência para mim, me fez entender a direcionalidade que desejava instaurar na minha música”. Com prazer verifico, quase trinta anos após a entrevista com o grande compositor Mario Lavista, que a  preocupação de Buchala, apesar de direcionada diferentemente, preocupa-se com a acústica dos instrumentos, sendo o Concerto para violino e conjunto orquestral prova inconteste, tanto na parte reservada ao solista como nas outras, destinadas aos músicos do “Ensemble Court Circuit”. Em diálogo internético recente, Maury informou-me que  “As pesquisas na música eletrônica ou sons eletrônicos tiveram uma influência muito grande no desenvolvimento da minha escrita musical e, por consequência, na construção das texturas. Um outro dado muito importante foi a pesquisa da direção harmônica ou do som, o direcional que faz com que a gente perca a previsão do caminho esperado. Sem este dado (direcional na construção harmônica), minha música ficaria, acredito, muito convencional”. Creio ser essa postura essencial do compositor atento e que se aprofunda nesse campo inesgotável, o som. Claude Debussy (1862-1918), um dos maiores compositores de todos os tempos, já não afirmaria em carta a Bernardo Molinari (06/10/1915):  “Que beleza há na música ‘apenas ela’, sem parti pris”. Questiona  se “o total de emoção que ela contém pode ser encontrado em qualquer outra arte”, finalizando com contundência: “estamos ainda na ‘marche harmonique‘ e raros são aqueles a quem basta a beleza do som”. Ao leitor não músico diria que “marche harmonique” corresponde à repetição de um acorde, como exemplo, em “degraus” ascendentes ou descendentes obedecendo a uma sequência regular.

Eindrücke para violoncelo solo (2007), na interpretação de Alexis Descharmes, abre o CD. A criação apresenta-se como uma série de fragmentos ou motivos que lhe conferem unidade. Obra de dificuldade por vezes acrobática, alterna motivos diversos, líricos e virtuosísticos, que “aparentemente” se interligam.

Tre espressioni, para trio de cordas (2010), evidencia a impressão digital da obra anterior. Contudo, há amplificação que se dá na textura, quando procedimentos inusitados estão criteriosamente inseridos na escrita para as cordas. Considere-se o emprego dos sons tradicionais e de outros novos, e que recebem explicação do autor: “Chamo de sons reais (com altura fixa e mais tradicionais) e virtuais (sem altura fixa, os novos sons)”. Sob outra égide, não poderíamos considerar as Tre espressoni como um tríptico de Estudos para as cordas?

O termo Partita foi utilizado no século XVIII para também designar Suíte.  J.S.Bach é exemplo nessa designação. Trata-se da reunião de várias peças formando um conjunto, geralmente de danças contrastantes. Maury Buchala, ao compor a Partita para piano, trio de cordas e flautim / flauta baixo (2008), recria abstratamente essas “danças”, desfocadas de quaisquer ligações com o passado a não ser na imanência do termo Partita e na diversidade,  sendo que naquela, de uma fase do período barroco, fixada em danças contrastantes e, na concebida por Maury, plena de encaixes que se articulam através de seus segmentos mais tranquilos ou agitadíssimos. É Buchala que afirma ter empregado na Partita, em determinados momentos da obra, duas linguagens: modal para o piano e atonal para as cordas.

O Concerto para violino (2015) é obra recentíssima, a exigir do violinista e do conjunto orquestral todas as possibilidades. Obra de envergadura, apresenta riqueza estrutural, conhecimento instrumental absoluto por parte do compositor e ousadia. A interpretação do violinista virtuose Francesco D’Orazio é extraordinária, como também o é o desempenho do Ensemble Court Circuit sob a regência de Jean Deroyer. Composição de extrema dificuldade.

Saliente-se o esmero da produção como um todo. A qualidade inquestionável de Maury Buchala, um nome exponencial nessa corrente estruturalista que desfruta de prestígio num segmento específico da criação musical, somada à qualidade absoluta do Ensemble Court Circuit, que acolheu as composições de Buchala, valorizando ao extremo as partituras, resultam num dos mais importantes registros fonográficos realizados por compositor brasileiro. Louve-se o Serviço Social do Comércio (SESC), que previu a contribuição insofismável para o conjunto da cultura musical brasileira com o lançamento do CD “Portrait”, aliás magnificamente apresentado graficamente.

Ao acessar o YouTube o leitor encontrará comentários de Maury Buchala sobre as obras constantes do CD “Portrait”. Clique aqui para assistir.

A few comments on the excellent CD “Portrait”, recorded in Paris and released in Brazil by SESC Record Label, with works by the composer, pianist and conductor Maury Buchala. As mentioned before, Maury — now living in Paris — was one of my most brilliant students at Universidade de São Paulo back in the eighties and this CD just confirms his talent. The pieces of the CD have been recorded by the Parisian “Ensemble Court-circuit”, one of Europe’s most prestigious ensembles with strong commitment to contemporary music. The launch of this CD is a welcome initiative by SESC (Serviço Social do Comércio) in São Paulo, helping to foster the Brazilian art scene.