Ana Cláudia Assis interpreta repertório desafiador

É necessário insistir sobre fato elementar,
pois o intérprete detém o poder essencial,
entendendo-se que é através dele que a música existe realmente.
Ao negligenciar essa evidência,
corremos o risco de falsear todos os problemas da criação musical.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)

Durante o Simpósio “Fernando-Lopes Graça em retrospectiva”, realizado em Cascais em Dezembro último, tive o prazer de reencontrar amigos e, entre eles, a pianista Ana Cláudia Assis e o compositor João Pedro Oliveira. Ana Cláudia ofereceu-me o CD “Vertentes”, a conter obras de vários compositores contemporâneos que residem em Belo Horizonte, sendo dois visitantes. Buscou Ana Cláudia, através dessa panorâmica, trazer ao ouvinte a contribuição desses criadores de diversas tendências, mas que, na seleção proposta pela pianista, resulta num conjunto coerente.

A criação musical dita de concerto, erudita, seletiva ou clássica tem, em especial a partir da segunda metade do século XX, apresentado multiplicidade de caminhos. As transformações escriturais que ocorreram, mormente após a técnica dodecafônica, o serialismo e, mais tardiamente, o emprego de processos eletroacústicos, entre tantos, possibilitaram a presença de compositores relevantes. Muitos romperam com os padrões do passado. Para outros, a tradição “atualizada” através das conquistas verificadas em todas as áreas, não foi esquecida. Se em Portugal Jorge Peixinho, Emanuel Nunes e João Pedro Oliveira singraram caminhos oriundos de técnicas novas, nem por isso autores como Eurico Carrapatoso e Sérgio Azevedo deixam de despertar muito interesse. Sem contar o grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o maior músico português do século XX, quiçá de sua história. A criação musical só é desinteressante quando as musas não visitam um autor sem talento.

Quanto ao piano, propiciou o instrumento uma série de novos procedimentos técnico-pianísticos – tantos deles oriundos da tradição -, enriquecedores nessa abordagem inusitada, sempre in progress, a que assistimos desde meados do século XX.  Poder-se-ia afirmar que o piano, apesar de recursos extraordinários, tem suas limitações, e o compositor consciente deve entendê-las, adaptando-se ao instrumento.  Nem sempre isso se verifica. Estou a me lembrar de recital que apresentei em Cardiff, no País de Gales (1996), interpretando vários compositores contemporâneos. Tive dois pianos para escolha, pois um terceiro, o melhor, estava praticamente impossibilitado devido a recital na noite anterior de pianista credenciado, que apresentou algumas obras para piano preparado, a interferir diretamente nas cordas e nos martelos, danificando-os de maneira irreversível. A Diretora do Departamento de Música da Universidade de Wales, Profª Caroline Rae, mostrou-se desolada. Lembro-me de meus tempos na USP, quando um duo pianístico, unicamente voltado à música contemporânea, pediu-me para ensaiar na sala em que dava aulas. Cedi com prazer, mas no dia seguinte cinco cordas estavam rompidas e um martelo quebrado. Tranquilamente me pediram novo ensaio, tendo eu recusado peremptoriamente. Em quase três décadas na Universidade, não me lembro de ter quebrado uma corda. Creio que é absolutamente fundamental para um pianista que se dedica à música de nossos dias ter praticado exaustivamente o repertório tradicional. Caso específico de Ana Cláudia Assis.

O CD “Vertentes”, lançado em 2017, tem a produção compartilhada de João Carreño e Gabriel Algusto. Apresenta composições de oito autores, alguns da novíssima geração.  Apesar de formações diferenciadas, constata-se uma possível “identidade” nas linguagens. As 11 faixas, ouvidas na sequência, assim permitem deduzir. Creio ser esse um aspecto positivo a evidenciar, friso, apesar de processos vários empregados pelos oito compositores. João Carreño escreve as notas e afirma: “Vertentes é a realização do desejo de explorar mais a fundo a identidade sonora da cidade que escolhi como minha casa, seus compositores, suas estéticas, seus sons”. Refere-se à cidade de Belo Horizonte. Continua: “Este álbum apresenta uma pluralidade de discursos, formas, estilos e técnicas que, postas em perspectiva através do pianismo lapidado de Ana Cláudia, cartografam os sons da capital mineira. Daqui, vertem obras que delineiam paisagens, exploram sons eletrônicos, remetem a gestualidades e compositores do passado, demarcam um caminho comum e ao mesmo tempo plural compartilhado pelos compositores jovens e por aqueles com carreira consolidada”.

Roberto Victorio abre o CD com a Sonata II (2017). Obra plena de possibilidades, “a partir da utilização e do intercâmbio de duas notações: proporcional e relativa”, segundo o autor. Nessa criação, como na maior parte das outras composições do CD, fiquei atento ao timbre sonoro, capacidade da exploração dos sons nas mais distintas camadas dinâmicas, e que, ao meu ver, é uma das constantes das obras do CD, mercê, frise-se, da qualidade da intérprete.

João Pedro Oliveira, professor titular da Universidade de Aveiro (Portugal) e da UFMG, é organista de formação e compositor de consagrada trajetória. Apresenta a obra Frozen… (Fred, Ferenc, Franz), realizando uma curiosa e bem solucionada prospecção do universo de três grandes compositores do passado: Chopin (Noturno em si bemol menor), Liszt (Rapsódia nº 2) e Schubert (lied Der Leiuermann). Apreende a contento “fragmentos” que remetem esporadicamente aos inspiradores, mas com engenhosa “metamorfose”. “Como se a música se congelasse”, afirma o autor.

A última tarde de verão, de Rafael Felício, traz resultados de interesse. Consegue amalgamar a interferência direta nas cordas do piano e utiliza igualmente sons eletrônicos. Considerem-se os efeitos de pedal em matizes de cuidadoso equilíbrio. Felício comenta que “a obra se constrói ganhando corpo e movimento sempre com o princípio de derivar um material do outro”.

Fui colega de Marcos Branda Lacerda na Universidade de São Paulo. Etnomusicólogo e compositor, Branda Lacerda tem vasto acervo de informações, pois sua tese de doutorado, defendida na Alemanha, abordou a música de Benin, na África. Curiosamente, Blue Notes, dedicada à pianista, é criação bem sofisticada que apreende várias culturas, não se descartando, consciente ou inconscientemente, segmentos que fazem lembrar determinados eteres próprios a Debussy.

Por um triz meus tímpanos não se romperam no início dessa criação de muito interesse. Creio que o piano, apesar de complexo, fica realmente minimizado, mercê da “avalanche” de sons eletrônicos flutuando entre os extremos da dinâmica. Levy Oliveira, em Por um triz, mantém tensão permanente durante todo o desenrolar da obra e a interação piano-eletrônica estabelece um amplo sentido de espacialidade.

Eduardo Campolina participa com Dois movimentos para piano solo. Como afirma, a obra bipartida tem “caráter contrastante no molde lento-rápido, muito comum na tradição ocidental”. O contraste não elimina, antes evidencia, a impressão digital do autor, possuidor de estilo definido.

Dubitável questiona os limites entre a precisão escrita e o improviso, o papel da intérprete como coautora de uma obra e a singularidade de cada interpretação de uma mesma peça”, considera João Carreño, compositor e produtor do CD. Estou a me lembrar de Três Estudos do notável H.J.Koellreutter que me foram dedicados, sendo o pianista o coautor. Essa configuração jamais permite a apresentação de uma obra construída graficamente na leitura realizada por intérpretes diferentes. Transfigura-se a partir da soberana presença da “matriz”. Carreño e a coautora obtiveram boa solução para Dubitável.

Sérgio Freire compôs De terras e raios, conseguindo resultados surpreendentes nessa transição a compreender a finitude dos sons do piano e a continuidade através dos sons eletrônicos. Essas transições estão muito bem pensadas e permitem reflexões a respeito da duração. O processo de De terras e raios propõe “sobrevida” ao discurso pianístico de maneira engenhosa.

Uma realização de mérito. Ana Cláudia Assis tem contribuído decisivamente na divulgação do repertório contemporâneo. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais e pianista respeitada, merece os maiores elogios pela contribuição valiosa que proporciona através do CD “Vertentes”.

Ao ser copiado, o link levará à breve apresentação do CD “Vertentes”, com explicações de alguns compositores e da intérprete:

https://www.youtube.com/watch?v=4HCjq_5EbIE

On the CD “Vertentes”, with contemporary classical music written by Belo Horizonte-based composers in the stunning performance of Ana Claudia de Assis, Brazilian pianist who is specialist in contemporary music interpretation and Associate Professor at UFMG – Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais in the city of Belo Horizonte.